quinta-feira, 17 de abril de 2008

Se não consegues derrotá-los, junta-te a eles

Deve ser este o lema deste Governo no que diz respeito aos paraísos fiscais. O Jornal de Negócios dá conta da intenção do Governo em legalizar «trusts» - fundos que gerem os recursos de outrém como património autónomo. Ao confiar o meu património a um «trust», deixo de ter os direitos e obrigações legais sobre ele. Ou seja, o meu património deixa de contar para efeitos fiscais. O Governo, ao mesmo tempo que dá uma ajuda ao nosso «pobrezinho» sistema bancário, legaliza assim uma forma de evasão que claramente beneficia os mais ricos, únicos com acesso a esta forma de investimento.

A esquerda italiana em estado de choque I

Depois do fascismo e da guerra, o país estruturou-se em torno a dois eixos - a Igreja Católica e o Partido Comunista. Ambos tinham uma presença difusa na vida dos italianos que se identificavam com cada um dos pilares. De um lado a missa, os padres e o Papa, as organizações de paróquia, os programas de férias, o sindicato católico e o partido da Democracia Cristã. Do outro lado as casas do povo, as festas locais e nacionais do L’Unità, os lideres do partido e a memória de Gramsci, a URSS como referência (ainda que crítica), a CGIL como grande confederação sindical e o PCI como força política sem paralelo na Europa Ocidental.

O PCI era demasiado grande para ser ignorado, capturando o espaço político que noutros lados foi ocupado pela social-democracia. A ideia de estar sempre afastado do poder, apesar da força eleitoral e social que detinha, foi-se tornando difícil de digerir pelos seus dirigentes. Primeiro tentaram um compromisso histórico com a DC de Aldo Moro. Com o assassinato deste, e face ao crescimento dos socialistas nos anos 80, a opção do PCI foi aproximar-se paulatinamente do centro político. Já fora assim com a adesão ao chamado ‘eurocomunismo’, ainda mais com a auto-dissolução do próprio partido e a criação do Partido Democrático de Esquerda em 1990.

Mas mesmo isto não foi suficiente para atingir os objectivos dos líderes comunistas reformados. Até porque a vida política do país entrava então em completa convulsão - 40 anos de coligações entre democracia-cristã e socialistas (ou quaisquer outros que evitassem a necessidade de acordo com o PCI) conduzira a níveis de corrupção insustentáveis, até em Itália. O resultado foi a operação 'Mãos Limpas' e o desaparecimento dos outros dois principais partidos do país: PSI e DC desagregavam-se e, a par da transformação do PCI em PDS, deixavam os italianos num estado de orfandade política, criando espaço para afirmação de outros projectos políticos. Estavam criadas as condições para o surgimento de Berlusconi (e a sua 'anti-política' Forza Italia), a Liga Lombarda (independentistas xenófobos) e os ex-fascistas reciclados da Alianza Nazionale. Chegam ao poder em 1994, deixando a esquerda em estado de choque. Pelos vistos, foi só o início.

Um ano depois

Este blogue nasceu a 17 de Abril. Vamos continuar por cá. Obrigado aos leitores, aos comentadores e aos blogues que acharam que valia a pena discutir o que por aqui se dizia. Relembro apenas o que escrevemos há um ano atrás: «Os dilemas trágicos que os indivíduos têm de enfrentar em resultado da falta de recursos e de poder tornam-se visíveis num belo filme italiano a que este blogue roubou o nome. Não somos cineastas, mas economistas. Acreditamos que a economia, como o cinema, pode ser um ‘desporto de combate’. Temos partidos e ideologias diferentes e divergentes, mas convergimos no que hoje importa. Pleno emprego, serviços públicos, redistribuição da riqueza e do rendimento, controlo democrático da economia fazem parte do caminho que queremos percorrer. Recusamos e combatemos as 'evidências' e mitos que alimentam o actual consenso neoliberal. Acreditamos que o mercado sem fim é a ideologia transponível do nosso tempo. Mas uma coisa reconhecemos aos nossos adversários e a F. Hayek, o seu grande ideólogo: ‘nada é inevitável na existência social e só o pensamento faz que as coisas sejam o que são’. Este blogue é portanto um espaço de opinião de esquerda, socialista e que pretende desafiar o actual domínio da direita na luta das ideias. Pedalemos então!».

Um ano

quarta-feira, 16 de abril de 2008

A precariedade desqualifica

O Banco de Portugal (BP) veio hoje reconhecer que a precariedade nunca foi tão elevada em Portugal e que há um recurso excessivo aos contratos a termo. As consequências são perversas porque a precariedade «afecta negativamente as decisões de investimento em formação e educação por parte das empresas e dos trabalhadores». O BP diz mais: «esta situação é mais grave dado afectar os mais jovens e, portanto, aqueles com maior propensão a investir em educação e formação» (Rui Peres Jorge no Jornal de Negócios). É por estas e por outras que é imprescindível limitar o alcance e a duração destas formas contratuais. Um ano no máximo. Nem mais um dia.

Liberalização financeira e crise

Até há relativamente pouco tempo, só alguns economistas heterodoxos, com conhecimento de história económica e das dinâmicas do capitalismo realmente existente, defendiam que os processos de liberalização financeira tendem a gerar um acréscimo da turbulência. A realidade das últimas três décadas confirmou as suas «previsões de padrões». No final dos anos noventa, o Banco Mundial, com Joseph Stiglitz como economista-chefe (antes de ser alvo de uma purga), começou a publicar estudos onde se podia ler: «as crises financeiras tornaram-se mais frequentes desde o início dos anos oitenta» e isto «tem sido associado ao aumento dos fluxos internacionais de capitais - especialmente fluxos privados - para os países em desenvolvimento e à crescente integração desses países nos mercados financeiros internacionais». O FMI, timidamente, começou a dizer a mesma coisa. Sem mudar as suas prescrições. Agora, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff (ex-economista-chefe do FMI) publicaram um estudo na série de documentos de trabalho do NBER que dá «uma visão panorâmica de oito séculos de crises financeiras». Um dos resultados: «os períodos de elevada mobilidade de capital produziram repetidamente crises bancárias, não só nos anos noventa, mas historicamente». A liberalização tende a gerar um aumento da instabilidade sistémica. Martin Wolf do Financial Times, o meu economista liberal preferido, tem toda a razão: «A concorrência não funciona bem na finança. Os ‘produtos’ da indústria financeira são promessas para um futuro incerto, vendidas como sonhos que se podem transformar em pesadelos». John Maynard Keynes, John Kenneth Galbraith ou Hyman Minsky não diriam melhor.

Contra a Filantropia

Quando começam a aparecer as primeiras perversidades das fundações caritativas multimilionárias (como a Gates Foundation), vale a pena lembrar cinco breves razões para ser crítico da filantropia (retiradas daqui):

1- Legitima e cristaliza a crescente desigualdade na distribuição do rendimento.

2- Corrói a democracia. Por que devem ser os mais ricos a definir as prioridades sociais? Devem ser os governos eleitos, impondo sistemas fiscais realmente progressivos, a decidir.

3- Impõe atitudes pró-mercado, com consequências não esperadas. A Fundação Gates é um bom exemplo.

4- Na forma como é muitas vezes condicionada (p.e. obrigação de compra de determinados produtos e serviços), a filantropia não passa de marketing.

5- Ao ocuparem o espaço público e mediático, estas fundações enfraquecem os movimentos sociais de base.

The Kills na Casa da Música

Um dos concertos do ano.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Autópsia da «esquerda moderna»

Vale a pena ler o artigo de Jorge Bateira - economista, investigador universitário e um dos dinamizadores da corrente «opinião socialista» do PS. Foi publicado no número de Abril do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa. Intitula-se «Autópsia a um reformismo iluminado» e procura analisar criticamente a lógica das transformações em curso em muitos sectores da administração pública e apontar algumas das causas para o seu insucesso. Acho que a estratégia do Ministério da Educação, antes da luta dos professores ter lançado as bases para um acordo, ilustra bem o que Jorge Bateira tem em mente. É a melhor reflexão que eu li nesta área. Fico com vontade de ver o tema desenvolvido num trabalho de maior fôlego. Algumas pistas: (1) o discurso do combate aos supostos grupos de interesse assenta no pressuposto de que o oportunismo egoísta é o padrão de comportamento dominante nas organizações públicas; (2) este discurso, sobretudo quando é vertido em sistemas de avaliação e de monitorização, tende a ter efeitos perversos: «os sistemas de gestão que pressupõem o oportunismo generalizado acabam por estimular o tipo de comportamento que visam combater»; (3) a mobilização das motivações intrínsecas dos profissionais - por exemplo, nas áreas da saúde e da educação -, essencial para um bom desempenho, é bloqueada pela obsessão com o controlo burocrático de quem não concebe a possibilidade da cooperação autónoma para atingir objectivos de interesse público; (4) gera-se uma mentalidade dirigista que assume que o centro político tem todas as soluções e que se trata apenas de as impor com voluntarismo combativo de cima para baixo; (5) o conhecimento, disperso pela administração pública, é desvalorizado e não é incorporado no desenho das nova soluções. Bateira conclui, assinalando que este modelo não é original e reflecte problemas ideológicos e impasses mais vastos na social-democracia, versão social-liberal. Temos muito que discutir. Até porque a esquerda socialista tem a obrigação de apresentar alternativas robustas que revitalizem o serviço público e as lógicas não-mercantis que o suportam.

Debates à esquerda

A Corrente de Opinião Socialista do PS no Porto vai organizar um interessante ciclo de debates sobre políticas públicas. O primeiro é já no próximo sábado. O Nuno Teles do Ladrões de Bicicletas será um dos oradores: os contornos de uma política económica de esquerda focada no pleno-emprego e no combate às desigualdades. Aqui fica o programa do ciclo (clicar para ampliar):

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Teoria económica para todos os gostos

Através da Alternatives Economiques cheguei a este breve artigo sobre os efeitos da maior precarização do trabalho no desemprego. Os autores revêem a literatura na área da teoria económica mais ortodoxa para chegar a três grandes conclusões: 1- Nesta literatura não existe qualquer análise macroeconómica dos benefícios da estabilidade no emprego no crescimento económico (acesso ao crédito e à habitação, formação profissional, etc); 2- As hipóteses de partida são muito frágeis e facilmente manipuláveis. O resultado é uma miríade de estudos para todos os gostos; 3- Experimentando um dos (muito criticáveis) modelos utilizados, os autores simulam os efeitos de uma descida dos custos dos contratos de trabalho a prazo em França. A conclusão é a de que o desemprego francês aumentaria (ver gráfico abaixo).

'Rigidez' do mercado de trabalho e precariedade

Um das queixas mais recorrentes do nosso patronato é a da suposta rigidez do nosso mercado de trabalho. As empresas não conseguiriam encontrar o nível óptimo de emprego adequado à sua situação. A dificuldade e o custo de despedir em períodos de crise económica inibiriam as contratações pelas empresas portuguesas, mesmo em períodos de expansão económica. (o resto está aqui)

Amanhã em Coimbra

Debate em torno do dossiê «Dilemas da economia portuguesa» publicado na edição de Março do Le Monde Diplomatique.

Este dossiê incluiu artigos da autoria de Carlos Carvalhas, Francisco Louçã e José Reis.

O debate conta com as participações de:

Francisco Louçã
José Reis
José Maria Castro Caldas

O debate realiza-se a partir das 18h, na Livraria Almedina, em Coimbra.


Rigidez?

Na discussão sobre políticas públicas, como em todas as discussões, há expressões que ajudam a fixar os termos do debate e a encaminhá-lo para determinadas direcções. É o que acontece com a palavra rigidez, usada na discussão sobre a legislação laboral. Ela já contém em si todo um programa. Quem é que pode defender a rigidez? No entanto, a legislação laboral é considerada «rígida» quando, entre outras coisas, reconhece certos direitos aos trabalhadores, impõe correspondentes obrigações aos empregadores, estrutura as relações laborais por forma a que os últimos não sejam capazes de impor alguns custos sobre os primeiros ou quando suporta determinados mecanismos de participação colectiva que minimizam os desequilíbrios estruturais entre as partes. Se isto é assim, por que é que se usa a palavra rigidez? Será que devemos enquadrar esta discussão apenas pelo prisma, pelo suposto prisma, de quem emprega? O que é constrangimento para uns não pode ser liberdade e flexibilidade para outros? O que é custo para a empresa não pode ser benefício para os trabalhadores? Mais uma vez: quem é que pode impor custos sobre quem? Além do mais, isto do prisma pode ser muito enganador. Legislação que distribui os direitos e as obrigações numa direcção que aparentemente protege quem é empregue pode a prazo redundar em beneficio para certos sectores empresariais. Provavelmente aqueles que uma economia que se quer competitiva deseja promover. Os arranjos nunca são neutros. E as palavras também não. Muito menos em questões de economia política.

domingo, 13 de abril de 2008

A distância que nos separa da 'flexisegura' Dinamarca

Estará Vieira da Silva (ver post anterior) em condições de garantir que os recursos destinados a promover a segurança dos trabalhadores que ficam sem emprego vão aumentar o equivalente a 1% do PIB português (para se aproximarem do que se passa na Dinamarca - ver gráfico acima, com dados retirados do Eurostat)? E como é que se pretende evitar o abuso do poder e a chantagem permanente dos empregadores sobre o empregados num país em que os níveis de sindicalização não ultrapassam os 18,5% (na Dinamarca são de 81,6% - os dados são do Livro Branco das Relações Laborais), onde 82,6% dos contratos de trabalho são fixados sem intervenção dos representantes dos trabalhadores e onde 3/4 das empresas não têm qualquer tradição de organização dos assalariados (contrastando com a Dinamarca, um país onde a intervenção dos representantes dos trabalhadores na vida da empresa - em particular nas questões laborais, mas não só - é uma realidade generalizada, e protegida por lei, desde finais do século XIX)? Iremos assistir à inversão da tendência a que temos assistido no sentido da fragilização da negociação colectiva, permitindo que este modo de fixação das condições contratuais (salários, horários, progressões) tenha o mesmo papel em Portugal que tem na Dinamarca?

Esperar o pior?

A afirmação de Vieira da Silva é muito infeliz: «É a legislação laboral mais rígida dos estados membros da OCDE» (Público). Baseia-se numa estranha avaliação da OCDE. Noto que a própria OCDE já reconheceu que a relação entre o grau de regulação das relações laborais e a criação de empregos é muito frágil e que as prescrições neoliberais na área do «mercado de trabalho» são geralmente acompanhadas por um aumento das desigualdades e da precariedade. Na linha de alguma da evidência empírica disponível. Na realidade, é a ideia de «flexisegurança» à dinamarquesa que parece agradar ao ministro. Espero mesmo que a protecção social portuguesa aumente. Há muito a fazer aqui. Afinal de contas, a Dinamarca, com uma taxa de desemprego que ronda os 4%, gasta 45 000 euros por desempregado; Portugal, com 8% de desemprego, gasta 8 000 (valores ajustados ao poder de compra). Lembro ainda o aviso sensato deixado por Poul Rasmussen, ex-primeiro-ministro da Dinamarca, numa visita ao nosso país: «Se em Portugal decidem de um dia para o outro cortar a protecção laboral, arriscam-se a que tudo o resto não se chegue a realizar. E os empregos precários tornam-se na regra da economia».Vieira da Silva vem agora falar de «segurbilidade». Mais uma expressão horrorosa para a discussão das políticas públicas. Políticas públicas que, a avaliar pela declaração do ministro, podem ser igualmente horrorosas.

sábado, 12 de abril de 2008

O jornal de toda a esquerda

Aqui fica um resumo da excelente componente portuguesa de uma publicação cosmopolita: «O dossiê 'Portugal rural: mito ou realidade' constitui o principal destaque da edição de Abril (. . .) Este dossiê procura reflectir sobre os problemas fundamentais do mundo rural em Portugal e identificar caminhos de resposta susceptíveis de inverter a actual situação. O dossiê inclui os artigos 'Portugal: um território que urge destrancar', de Renato Miguel do Carmo, 'O papel do associativismo na governança do espaço rural', de Luís Moreno e 'Desenvolvimento e desafios do sector vitícola', de Nadir Bensmail (. . .) Em vésperas de eleições presidenciais nos Estados Unidos e de eleições europeias em Junho de 2009, Mário Soares assina o artigo 'Mudança de ciclo', onde reflecte sobre a sensação indefinida mas generalizada de mudança de ciclo histórico que se vive nos dias de hoje. O artigo 'Que universidade queremos', de Maria Eduarda Gonçalves questiona a tendência privatizadora da gestão das universidades, configurada no novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior e defende um amplo debate público sobre um modelo que garanta a autonomia do ensino e da investigação,que assente no carácter público e de serviço público da universidade». Destaque ainda para o artigo do economista Jorge Bateira, 'Autópsia a um reformismo iluminado', que escrutina muito bem os pressupostos comportamentais e os efeitos perversos potenciais da orientação ideológica dominante nas políticas públicas de reconfiguração institucional que o actual governo tem procurado impor. O sumário da edição bem como o Editorial podem ser lidos aqui.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Ainda há diferenças

Dani Rodrik, economista da Universidade de Harvard, tem razão: é mesmo difícil encontrar outro gráfico de economia política tão expressivo para os EUA. Compara administrações democratas e republicanas, em termos do crescimento médio anual real para os diferentes percentis de rendimento (dos que menos auferem até aos que mais auferem). A curva republicana está abaixo da democrata e é ascendente. Em média, durante as administrações republicanas, os mais pobres tiveram um crescimento anual do seu rendimento, em termos reais, de 0,5% e os mais ricos de 2%. A desigualdade de rendimentos tende então a aumentar quando o presidente é republicano. Pelo contrário, durante as administrações democratas, os mais pobres tiveram um crescimento médio anual real do seu rendimento acima de 2,5% e os mais ricos de 2%. A curva democrata é descendente, ou seja, a desigualdade tende a diminuir quando o presidente é democrata. Este padrão consta de um livro de economia política - Unequal Democracy - da autoria de Larry Bartels, cientista político da Universidade de Princeton. Larry Bartels, blogger convidado de Rodrik, tenta explicar tudo numa posta. Este é certamente um livro a ler em ano de eleições presidenciais. Agora que John Edwards já não está em cena, esperemos que caiba a Barack Obama inverter as políticas socioeconómicas regressivas dos republicanos. A avaliar por este gráfico, o melhor da história do pós-guerra nesta área está do seu lado.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Precariedade

O problema do aumento da precariedade tem de ser atacado directamente com uma agenda robusta de alteração das regras. Isto vai na direcção certa: «reforçar a inspecção dos falsos recibos verdes com obrigação de celebração de contrato, limitação dos contratos a prazo a um ano, proibição de sucessivos contratos para o mesmo posto, através de falsos temporários e integração de todos os 117 mil precários do Estado». Para desincentivar um padrão de relações laborais que tende a vulnerabilizar e a desqualificar tantos trabalhadores e a trancar a economia num voo rasteiro demasiado dependente da informalidade e de salários de pobreza.

Notícias de um modelo em crise

Começou o exercício de revisão das previsões. Uma das especialidades dos economistas. A incerteza radical não perdoa. Desta vez pela mão do FMI. Revisão em alta da previsão das perdas das instituições financeiras: 935 mil milhões de dólares. Por enquanto. Revisão em baixa da previsão de crescimento económico para a economia portuguesa: 1,3 por cento que compara com os 1,9 por cento registados no ano passado. Por enquanto. Entretanto, os bancos lá vão assumindo as culpas pelos danos que causaram. Fraquezas nas suas práticas reconhecem agora. Parece que andaram a receber de mais por especularem em excesso. Dizem que é um problema de incentivos e de gestão do risco. Prometem não repetir. É evidente que repetirão tudo se não forem reintroduzidas formas mais robustas de controlo e de regulação públicas. Quase que se pode dizer: está na sua natureza. Por cá, as verdadeiras estruturas de privilégio mantêm a sua força: 35 administradores de bancos arrecadaram 40 milhões de euros em 2007. Para não variar, o BCP destacou-se. A boa conduta é recompensada em Portugal. A corrosão moral de um modelo em crise passa mesmo por aqui.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

‘Mind the gap’ ou as consequências da financeirização do capitalismo

Acho que quem quiser compreender as consequências socioeconómicas e políticas do processo de financeirização do capitalismo anglo-saxónico deve ler a detalhada análise do Financial Times de ontem (subscrição gratuita aqui). Notar que a expressão «financeirização» foi agora adoptada pelos meios respeitáveis da finança internacional. Até há pouco tempo era usada apenas por economistas políticos críticos para assinalar a hegemonia da finança especulativa sobre os processos produtivos. A realidade acaba sempre por ter muita força. O artigo começa com uma constatação: «A desigualdade de rendimentos nos EUA atingiu o seu valor mais elevado desde aquele ano fatídico: 1929». O FT teme a corrosão da legitimidade política deste modelo agora que o processo económico que assegurou o seu sucesso político, apesar de mais de duas décadas de «estagnação dos rendimentos das pessoas comuns», está a quebrar: o sobrendividamento, sustentado pela valorização dos activos imobiliários, já não consegue impulsionar um sistema que dependeu dele para mascarar uma performance económica sobreavaliada por tantos. O castelo de cartas da dívida, construído pelos processos de 'inovação financeira', está em colapso e interage perversamente com a forte quebra do preço da habitação. Tudo isto num contexto em que não existe «correlação entre a performance das empresas e os altos salários do topo». Como se isto não fosse suficiente, até se reconhece que as políticas de desregulamentação e de regressividade fiscal terão dado um contributo para a actual situação de desequilíbrio socioeconómico. «O mundo dos negócios tem outra vez um problema de legitimidade». Esperemos bem que sim. Isto depende muito da força do contra-movimento intelectual e político nos EUA e no resto do mundo.

Sobre este artigo vale a pena ler a análise de Jerome do excelente European Tribune. Outro exercício interessante é a comparação com o artigo mais longo e profundo de John Belamy Foster na última Monthly Review. Economia política marxista no seu melhor. Alguns dos mecanismos da financeirização do capitalismo norte-americano são aqui muito bem escrutinados. O gráfico mostra a evolução do peso dos lucros da finança nos lucros totais. Hei-de voltar a este artigo.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Aprender com a história: Suécia ou Japão?

Parece que o Federal Reserve anda a estudar a crise financeira escandinava do início dos anos noventa. Faz bem. È necessário aprender com os bons exemplos. A Suécia é paradigmática. A desregulamentação e liberalização do seu sistema financeiro, no final dos anos 80, criaram uma enorme bolha especulativa imobiliária (em poucos anos os preços duplicaram). Ora, tal como está a acontecer nos EUA, no momento em que o crescimento dos preços começou a abrandar, o sistema financeiro entrou em colapso. A intervenção do banco central foi eficaz. Rápido e implacável, recapitalizou os bancos, não poupando os seus accionistas, configurando assim um importante programa de nacionalizações no sistema bancário. Uma curta recessão não foi evitada, mas a economia sueca cresceu bem acima da média da UE nos restantes anos da década de noventa. Este artigo conta a história.

Por outro lado, o Japão parece ser o exemplo a evitar. O processo de liberalização financeira conduziu também aqui a uma bolha especulativa imobiliária. No entanto, quando se instalou a crise, as autoridades públicas pouco ou nada fizeram para livrar o sistema bancário dos seus gigantescos passivos. O resultado foi o arrastamento da crise e um crescimento médio de 1% do PIB que persiste até aos nossos dias.

Claro está, não basta que o Fed perceba como lidar com a crise. É preciso prevenir. E isso só com regulação.

O que se passa com o FMI?

Nos anos oitenta e noventa, o Fundo Monetário Internacional foi um dos pilares do chamado Consenso de Washington. Este assentava na defesa das virtudes irrestritas da desregulamentação, privatizações em massa e liberalização comercial e financeira. Tudo acompanhado por uma política orçamental e monetária conservadora. Está última era a grande especialidade do fundo. No longo prazo, os mercados têm sempre razão, mesmo que estejamos todos mortos. O colapso da economia argentina no princípio do milénio assinalou a falência destas prescrições e o esvaziamento da influência do FMI. Agora tudo parece mudar. Uma crise grave atinge os EUA e ameaça o capitalismo financeirizado típico do modelo anglo-saxónico. Dominique Strauss-Kahn, dirigente máximo do FMI, parece apostado em fazer com que a instituição regresse, pelo menos por um breve instante, ao espírito de um dos economistas que a imaginou nos anos quarenta: John Maynard Keynes. Ontem tivemos mais uma declaração em ruptura com o que é habitual ouvir por essas bandas: é necessário que os governos intervenham em larga escala nos mercados, em todos os mercados, em dificuldades. Uma intervenção que funcione como uma «terceira linha de defesa» a suportar uma política monetária e fiscal contra-cíclica. A falência intelectual da agenda que o FMI andou a prescrever durante mais de duas décadas é agora publicamente assumida. Tempos interessantes.

A corrosão moral de um modelo em crise II

Enfim, por todo o lado multiplicam-se os sinais de que duas décadas de engenharia social de mercado, ou seja, de esforços para alterar as "regras do jogo" a favor dos interesses dos indivíduos, grupos e organizações à partida com mais recursos e poder, nos colocaram definitivamente numa das zonas de perigo a que aludia Hirschman: sociedades com desigualdades em crescimento e onde os valores que mantêm o laço social são permanentemente acossados pela insolência que o dinheiro adquire quando está concentrado.

Ao mesmo tempo, a crise que vem dos EUA, ao revelar a fragilidade das ideologias que suportaram estes processos, contribui para que se generalize a percepção, até há pouco circunscrita a uma minoria, de que o capitalismo financeirizado não tem como sair espontaneamente da crise sem causar devastação económica e sofrimento social assimetricamente distribuídos. É agora evidente que a liberdade excessiva da finança impõe fardos e obrigações indesejáveis ao conjunto da comunidade. Torna-se então imperioso aumentar as obrigações da finança para que a nossa liberdade possa de novo aumentar. A crise abre a possibilidade de reintroduzir, através da acção colectiva orientada por valores e por propostas robustas, um maior controlo e escrutínio desta fulcral esfera da economia.

É preciso mudar de modelo económico e repensar as linhas que separam aquilo que deve ser provisionado pela comunidade política e assegurado a cada membro e o que pode ser deixado às forças do mercado moldadas por novas regras que reforcem os contrapoderes no espaço da produção ou que desincentivem a especulação e o rentismo e promovam o investimento e o trabalho produtivos. Afinal de contas, os activos intangíveis de que qualquer sistema socioeconómico funcional necessita - confiança, cooperação, orgulho no trabalho bem feito e valorização do mérito - só podem hoje florescer se tivermos uma estratégia igualitária com fôlego que supere o neoliberalismo e a corrosão moral que este engendra.

Estas duas postas foram publicadas como artigo no Público de ontem.

A corrosão moral de um modelo em crise I

O economista Albert Hirschman escreveu um dia: "A generosidade, a benevolência e a virtude cívica não são recursos escassos de oferta limitada, mas também não são competências que possam ser melhoradas e expandidas de forma ilimitada com a prática. Em vez disso, tendem a exibir um comportamento complexo e compósito, atrofiando quando não são praticadas e invocadas pelo regime socioeconómico prevalecente e tornando-se de novo escassas quando são defendidas e estimuladas em excesso. Para tornar as coisas ainda mais complicadas, estas duas zonas de perigo (. . .) não são conhecidas e muito menos são estáveis" (Rival Views of Market Society, Harvard University Press, 1992, p. 157).

Albert Hirschman também defendeu que a expansão excessiva, e sempre politicamente suportada, das forças de mercado pode tender a sabotar as fundações morais sem as quais nenhum sistema socioeconómico realmente existente consegue sobreviver. Um dos problemas do desenvolvimento do capitalismo, na sua configuração neoliberal, é o de ter reforçado a hegemonia, nada inócua, de ideologias que reduzem as motivações humanas ao egoísmo racional. Criaram-se, ao mesmo tempo, estruturas e incentivos que promovem não o prosseguimento do interesse próprio - noção vazia porque o que interessa a cada indivíduo varia e depende, em parte, da natureza das instituições em que está imerso -, mas sim a cupidez mais desbragada, traduzida na busca incessante de riqueza material. Busca aliás bem nutrida pela abertura de áreas que até há pouco tempo estavam subtraídas a estes novos processos de mercado.

Agora peço ao leitor que olhe com atenção à sua volta. No capitalismo português verá a indecorosa e continuada "captura" de pessoal político por um sector privado rentista que se expande à medida que a provisão pública atrofia, as obscenas e crescentes desigualdades salariais, a subestimação no discurso político dominante da ética do serviço público e da dignidade das profissões que o suportam. Por fim, o caso BCP parece encerrar em si todos os efeitos da corrosão moral. No capitalismo global, sobretudo na sua variante anglo-saxónica, que para muitos é o último estádio do desenvolvimento económico, o leitor verá a captura sistemática dos ganhos de produtividade pelo capital, o alongamento da jornada de trabalho, o endividamento excessivo e a especulação mais desenfreada, geradora de permanente instabilidade financeira, de que a actual crise é apenas o último episódio.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O relançamento económico é para quando?

A crise económica com epicentro nos EUA já está a ter fortes repercussões internacionais. O crescimento económico europeu também está a ser revisto em baixa. Externalidades negativas geradas pela irresponsabilidade e miopia que reinam nos mercados financeiros liberalizados. Como se afirma na Alternatives Economiques deste mês: «não há nenhuma razão para que as nuvens negras da finança norte-americana parem nas fronteiras da Europa (. . .) a combinação de recessão nos EUA, forte valorização do euro e pânico financeiro acabarão por nos atingir. A não ser que as autoridades monetárias e governamentais respondam à crise com uma combinação de subtis intervenções monetárias e relançamento orçamental. Isto está longe de estar assegurado». Dadas as orientações de política que ainda são hegemónicas na Europa, eu diria que isto está mesmo muito longe. Para desgraça da economia portuguesa. Vejam lá que agora até o FMI vem aconselhar o BCE a «flexibilizar» a sua política monetária, dando mais atenção às ameaças que pairam sobre o crescimento económico.

domingo, 6 de abril de 2008

O dinheiro cai do céu?

Concordo com Vital Moreira. As virtudes de um «imposto sobre as mais-valias fundiárias geradas pelo TGV junto às respectivas estações» são inegáveis: «esse imposto, mais do que justo, é justíssimo. Se eu vejo o valor dos meus prédios aumentado por simples efeito de infra-estruturas públicas, é mais do que justo que retribua ao menos com uma parte desse enriquecimento ‘caído do céu’». Só não se percebe por que é que esta prática fiscal não é habitual em Portugal. Assim, e na linha deste projecto, deveria ser criado um regime claro e transparente que poderia ir até à «cativação pública das mais-valias decorrentes da valorização de terrenos em consequência da alteração da sua definição por via de actos administrativos da exclusiva competência da Administração Pública ou da execução de obras públicas que resultem total ou parcialmente do investimento público». Só com políticas públicas inteligentes conseguiremos desincentivar a especulação e o rentismo e bloquear alguns dos mecanismos que contribuem para a corrupção e para a captura do poder político pelo poder económico.

sábado, 5 de abril de 2008

Fundamentalismo de mercado II

Como bem argumenta o jornalista norte-americano Andrew Leonard, o fundamentalismo de mercado tem mesmo a receita para o regresso de uma Grande Depressão: (1) aumentar as desigualdades de rendimento e criar as condições para a manutenção da estagnação salarial dos trabalhadores mais pobres e para o seu endividamento excessivo; (2) desmantelar o frágil estado social norte-americano que em épocas de crise económica sempre amortece as quebras de procura e ajuda a debelar os seus ciclos viciosos; (3) diminuir o controlo sobre Wall-Street (uma constante desde os anos setenta e que, ao contrário das aparências, ainda não dá sinais de abrandar); (4) fazer da liberalização financeira de outros países (que até agora evitaram a crise por não terem seguido esse caminho) uma constante da política externa norte-americana dos últimos anos. Neste contexto, ainda vai valendo a Reserva Federal (com um estudioso da Grande Depressão ao leme) e a sua política discricionária à altura da crise que impediu até agora o colapso (os neoliberais da blogoesfera podem assim continuar com as suas fantasias, ainda que ligeiramente revistas, que a mão visível, que nunca hesitam em morder, lá vai gerindo os danos sistémicos do capitalismo financeirizado). O que resta das estruturas criadas pela resposta política à Grande Depressão dos anos trinta (o New Deal celebra setenta e cinco anos este ano) também vai dando uma ajuda.

Fundamentalismo de mercado

George Soros, um conhecido especulador e filantropo popperiano, continua a escrever sobre a crise financeira. Lançou esta semana um livro e publicou um artigo no Financial Times. Pelo menos a tradução do artigo é mais do que merecida. É certeiro na identificação de um importante elemento da actual crise financeira: «nos últimos 25 anos, as autoridades e as instituições financeiras que elas regulam foram guiadas pelo fundamentalismo de mercado: a crença de que os mercados tendem para o equilíbrio (. . .) as inovações ficaram por regular porque as autoridades acreditaram que os mercados se auto-corrigem».

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Sociedade de consumo

A marca que produz este anúncio...



...e a marca que produz este...




...pertencem à mesma multinacional.

A grande descoberta deste ano



The Dodos - Fools

Uma revolução na meia-idade


Mais informações, aqui.

A crise como oportunidade

Uma das dificuldades com que a esquerda hoje se defronta é qual a posição a tomar face aos salvamentos de grandes bancos privados afectados pela crise financeira. Devemos socializar as perdas privadas dos responsáveis pela crise? Penso que não deve haver qualquer hesitação quanto à necessidade das recentes intervenções das autoridades monetárias. Esta é a única forma de circunscrever a actual crise.
No entanto, é possível ter um programa progressista que não só aponte o imperativo da reforma do sistema financeiro (algo que este blogue tem feito repetidamente), mas também faça propostas concretas que transformem as acções de salvamento em oportunidades políticas. Este artigo de Robin Blackburn vai nesse sentido. O autor, além de propor um conjunto de medidas que reprimam a esfera financeira, apresenta uma interessante proposta: a construção de um fundo público constituído por acções, vendidas a preço preferencial, dos bancos que beneficiaram da intervenção pública. Estes fundos, não podendo transaccionar as acções (o que evita a tentação da especulação), utilizariam os futuros dividendos no financiamento da Segurança Social. Um programa que me parece claramente inspirado no plano do sueco Meidner, já aqui abordado.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Universidade SA

Vale a pena ler esta posta de Pedro Sales sobre a irresponsável quebra do investimento público por discente no ensino superior desde 1995. Um dos efeitos previsíveis da introdução de propinas. Com os empréstimos aos estudantes-clientes e o novo regime de governo das universidades, a actual asfixia orçamental pode ser interpretada como mais uma peça do processo político de criação de incentivos para acelerar a transformação mercantil da universidade. Definitivamente, a democratização do ensino superior e a produção de conhecimento livremente disponível para todos não passam por aqui.

Aprecio a franqueza

"Os Estados Unidos combateram uma guerra contra a Alemanha e o Japão e até ao dia de hoje mantêm uma presença militar nesses dois países. Combateram na Coreia e mantêm tropas na Coreia. Na primeira Guerra do Golfo, expulsaram Saddam Hussein do Kuwait e agora têm ali uma base militar". As palavras são do candidato republicano à Casa Branca, John McCain e procuram justificar a necessidade de manter as tropas norte-americanas no Iraque. Gosto da franqueza com que fala. Sem sombra de vergonha, assume o papel histórico dos Estados Unidos como potência imperialista.

É por isso que os matam

O mesmo senhor não veria qualquer problema em manter as tropas dos EUA neste país "nos próximos 100 anos" não fossem os soldados norte-americanos feridos e mortos. É por esta razão que os iraquianos os matam. Porque essa parece ser a única forma de resistência que lhes resta.

O senhor que se segue

Depois de tantos sacrifícios pela nação, Jorge Coelho prepara-se para assumir definitivamente a sua nova faceta de empresário, tornando-se no novo presidente da Mota-Engil. O mais grave não é a notícia em si, mas o facto de já poucos se indignarem com as tímidas fronteiras que separam os ex-governantes da gestão das grandes empresas privadas. Basta olhar para os conselhos de administração dos grandes bancos e empresas para perceber que, antes de Jorge Coelho, muitos outros seguiram trajecto semelhante. A que preço? E à custa de quem?

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Polarização social

«O Inquérito aos Orçamentos Familiares expõe um agravamento da desigualdade que é chocante. Quando se comparam os dados recolhidos entre 2005 e 2006 com os de 1990 verifica-se que a diferença entre os rendimentos obtidos pelos 10% mais ricos corresponde a quase nove vezes a dos mais pobres, quando em 1990 essa relação era de 4,6. Seremos o país da UE com a maior diferença entre ricos e pobres». Helena Garrido. A ausência de políticas redistributivas fortes e a expansão continuada das forças de mercado, num contexto de integração internacional acentuada, dão origem a esta polarização social. Moralmente repugnante e economicamente desastrosa.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Os privilegiados do modelo falhado

Famílias endividadas com a compra de habitação a preços inflacionados e a braços com encargos crescentes com a dívida. Um tecido frágil de pequenas e médias empresas com níveis de endividamento também elevados. Relações necessariamente assimétricas. Apesar de todas as dificuldades, os níveis de crédito dito mal parado continuam a ser bastante reduzidos. Os portugueses, contrariando ideias feitas, exibem um notável respeito pelos contratos financeiros. Depois temos um poder político complacente, com ligações umbilicais ao sector financeiro e disposto a criar todas as condições, de um offshore até a um leque de benefícios fiscais, para que a banca seja o sector económico com a mais baixa taxa efectiva de IRC. Junte-se a tudo isto um processo de privatizações que dura há duas décadas e a correspondente abertura aos grupos económicos, agora financeirizados, de sectores estratégicos onde os lucros estão mais ou menos garantidos. Este é o cenário ideal para o sector bancário: «Os bancos portugueses obtiveram em 2007 lucros de 2,4 mil milhões de euros, mais 9,1% que no ano passado (. . . ) Os impostos pagos sobre os lucros caíram 28,7%» (DN). Querem um verdadeiro grupo de interesse constituído por privilegiados? Aqui está ele. É pena que o governo «socialista» (nunca as aspas foram tão merecidas) tenha outra noção de privilégio. Assente não se percebe bem em quê.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Aprender com a Alemanha

Já por várias vezes mencionámos a progressão eleitoral do Partido da Esquerda (Die Linke) na Alemanha. Em tempos politicamente sombrios, esta aliança entre a esquerda social-democrata e os comunistas renovados é a mais interessante novidade política na Europa nos últimos anos. Agora o SPD, que tinha sempre recusado quaisquer alianças com esta formação política na parte ocidental da Alemanha (o grosso da dissidência social-democrata liderada por Oskar Lafontaine provém daqui), aceitou uma coligação de governo em Hesse (via esquerda republicana). A Alemanha aponta o caminho: alterar a correlação de forças à esquerda para construir uma alternativa de poder. Gradualmente e sem dramas.

sábado, 29 de março de 2008

A crise do neoliberalismo ou a hora das reformas estruturais

Os custos da crise devem recair sobre os grupos que beneficiaram das actuais regras. Para isso acontecer precisamos de uma vaga de reformas estruturais. Medidas de emergência para fazer face à crise abrem uma janela de oportunidade para criar o ambiente político e intelectual que pode gerar essa vaga. Como sublinhou Karl Polanyi em A Grande Transformação - um livro publicado em 1944 e que é hoje considerado um clássico da economia política crítica - as grandes rupturas são muitas vezes o resultado de um esforço, mais ou menos espontâneo, traduzido em medidas de política pública, para proteger a sociedade da devastação socioeconómica e moral do capitalismo sem freios. Na sua célebre formulação: «o laissez-faire é planeado, o planeamento não». O resto pode ser lido aqui.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Socialismo

Gosto desta formulação de Vincenç Navarro: «O socialismo não é uma etapa final, mas sim um processo que se constrói e destrói quotidianamente no desenvolvimento das políticas públicas». Vale a pena ler este seu artigo, em castelhano, sobre os princípios que devem orientar políticas públicas que se querem ancoradas à esquerda.

quinta-feira, 27 de março de 2008

O IVA e as eleições

A propósito da descida de um ponto percentual do IVA para 20%, ouviram-se as seguintes reacções:

Paulo Portas: "é um pequeno passo" [na política fiscal]

Cavaco: "obviamente não vou comentar"

Menezes: "sem impacto na economia"

Sócrates: "veremos para o ano" [sobre nova descida para 19% em 2009]

Juntando estas declarações como se peças de puzzle se tratassem, dá vontade de dizer que esta descida de imposto, "sem impacto na economia", "é um pequeno passo" para que o PS consiga a tão desejada maioria absoluta nas legislativas de 2009. Cavaco "obviamente" não comenta e José Sócrates fica à espera das sondagens para ver se precisa de baixar ainda mais o imposto "para o ano".

Símbolos contra a estagnação

O chamado «saneamento das contas públicas», ou seja, a obtenção de um défice orçamental abaixo do limiar arbitrário dos 3%, foi sobretudo conseguido graças à subida acentuada de um imposto regressivo (IVA). A equidade fiscal e o crescimento económico pagaram um preço elevado. Finalmente, o governo dá sinais de estar simbolicamente preocupado com estas duas dimensões essenciais da política económica. Saudemos pois esta nova orientação e esperemos que seja o início de medidas mais robustas de estimulo que tornem o governo parte da solução para os nossos problemas económicos. Como sempre, a conjuntura parece apontar para a necessidade de uma política económica contra-cíclica. Neste contexto, o IVA deve ser mesmo o único imposto a reduzir. Para evitar pressões desnecessárias dos verdadeiros grupos de interesse, o governo deveria comprometer-se com esta orientação. E já agora dar sinais na área do investimento público.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Crise e ideias

Estamos mesmo na época da revisão das crenças nas virtudes do mercado sem fim. Em Portugal, os sinais ainda são fracos. Na blogoesfera, onde domina uma versão totalmente blindada do neoliberalismo, ainda menos. No entanto, basta ler a imprensa liberal que está atenta à evolução do capitalismo realmente existente, sobretudo na sua variante anglo-saxónica, para nos apercebermos dos efeitos que a crise está a ter nas ideias económicas dominantes. E estas, por sua vez, têm sempre consequências para a orientação das políticas públicas. Esta semana, a The Economist aponta o caminho ao reconhecer, de forma mais ou menos explicita, o fracasso dos mercados financeiros liberalizados e a correspondente necessidade de aumentar o «controlo para reduzir as hipóteses de novos apoios públicos» às aventuras dos agentes financeiros. Ontem, Wolfgang Münchau do Financial Times, um dos mais acérrimos defensores da tese da decadência económica da Europa minada pelo «intervencionismo», afirmava que o velho continente estaria, em geral, menos exposto à crise porque o seu modelo de capitalismo dependeria menos da especulação financeira. Finalmente, Martin Wolf, também do Financial Times, declara que atingimos um ponto de viragem: «lembrem-se de sexta-feira, 14 de Março de 2008: foi o dia em que o sonho do capitalismo assente no mercado livre global morreu (. . .) a desregulamentação atingiu os seus limites». É preciso fazer tudo para que esta profecia se concretize.

terça-feira, 25 de março de 2008

Repressão ou redistribuição?


Segundo o DN, Portugal tem um polícia para cada 227 habitantes. A média europeia é de um para 350. O governo, num contexto de suposta contenção orçamental, prepara-se para formar mais dois mil polícias. Prioridades repressivas sem qualquer justificação. É sempre assim em sociedades demasiado desiguais. O Estado Penal atrofia o Estado Social.

Defender o SNS pela via fiscal

Já vai sendo tempo de se acabar com a promoção política do sector privado de saúde. Para além de limitar as parcerias público-privadas, o governo deveria também eliminar todos os benefícios e deduções fiscais para as despesas privadas com serviços de saúde. Nada justifica a existência de incentivos à «fuga» do SNS por parte das chamadas classes médias. Assim se criaria pressão política adicional para a melhoria da qualidade dos serviços públicos e até para a sua expansão. Neste contexto, Milton Friedman tinha razão, para variar, quando defendia que «os programas para pobres são pobres programas». De facto, um serviço público tendencialmente universal é um sistema politicamente protegido.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Plano inclinado travado?

Neste blogue defendemos a tese de que a entrada dos grupos económicos privados na gestão de hospitais públicos constitui um dos principais mecanismos de destruição a prazo do SNS (por exemplo, I, II, III). Não só não existe evidência de ganhos de eficiência com a gestão privada, como se multiplicam os custos com o desenho de complexos contratos e com a sua monitorização. Isto para não falar dos riscos de captura política e do crescente musculo político dos grandes grupos económicos rentistas. De facto, custa muito dinheiro garantir que a busca incessante de lucros não coloca em risco a saúde pública. Ontem, Sócrates veio finalmente reconhecer este facto: «Há uma grande dificuldade em fazer os contratos, o Estado gasta uma fortuna para vigiar o seu cumprimento e nunca foi possível eliminar a controvérsia. Por isso, é melhor o SNS ter gestão pública» (DN). Sensata posição, mas todo o cuidado é pouco nesta área. Afinal de contas, os maus contratos já anunciados ficam de pé. De qualquer forma, o reconhecimento do erro intelectual (à luz da defesa do SNS) e a sua correcção parcial são um bom ponto de partida. Agora podemos falar de reformas que não ponham em causa os princípios do Estado Social.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Alavancagem e crise

Como podem os diferentes agentes financeiros estar a perder tanto dinheiro nesta crise se as quedas dos preços dos activos financeiros são aparentemente pouco significativas? O segredo está no recurso ao crédito, um mecanismo conhecido como alavancagem. Simplificando, se eu tiver 10 euros e pedir 990 emprestados para investir num determinado produto financeiro, a variação de 1% do preço deste irá representar uma valorização de 100% do meu capital. Contudo, basta uma desvalorização de 1% do activo detido para que eu perca todo o meu capital. O crédito «alavanca» as minhas perdas e ganhos. Mas o problema não acaba aqui. A partir de uma determinada desvalorização do activo, anteriormente acordada com o banco que me emprestou o capital, eu posso ser forçado a vender tudo, uma operação conhecida como «margin call». O banco recuperará o seu capital, mas eu sofrerei pesadas perdas.