quinta-feira, 21 de abril de 2022

Há boas razões. Mas não esta

 

Não há nenhuma razão para receber acriticamente Zelensky no parlamento português. É verdade que Zelensky é o líder de um país vítima de uma ocupação brutal. Mas também é o líder de um país com uma democracia pejada de falhas, com declarados atos de perseguição contra a minoria russófona e limitações às liberdades e garantias democráticas. Mais relevante ainda, é um ator político que tem apelado a ações dos Estados ocidentais que os mergulhariam numa guerra com imenso sofrimento para o seu povo, como a zona de exclusão aérea e o envolvimento direto da NATO. Isso seria envolver Portugal num conflito nuclear por uma questão de soberania ao qual é alheio.

Há, ao invés, muito boas razões para acolher Zelensky criticamente. Isto é, estar presente na sua receção no parlamento, expressar solidariedade no contexto da invasão, mas sublinhar de forma enfática todos os problemas referidos acima. Permite enfatizar a solidariedade sem ambiguidades para com um povo invadido, mas ao mesmo tempo denunciar as fragilidades e o discurso irresponsável do seu líder. Era este o caminho que escolheria. 

Há também boas razões a apresentar para não receber Zelensky, ainda que não fosse a minha opção estratégica. Esta receção trata-se, de facto, de uma exceção regimental ao funcionamento do parlamento português. Pode também alegar-de que Zelensky responsabilizou moralmente os países ocidentais (onde se inclui Portugal) pelos atos de violência da Rússia por inação, o que é uma acusação grave e sem fundamento. Poderia ainda apontar-se a passagem inesperada de palavra a um membro do batalhão neonazi Azov, no parlamento grego, como um precedente perigoso que não se pretendia ver repetido no parlamento português. 

Infelizmente, nenhum deste motivos foi evocado como central pelo PCP para justificar a sua ausência na audição do presidente ucraniano. O PCP centrou-se no argumento de que Zelensky não deve ser recebido por se tratar de um líder xenófobo que se rodeia de neonazis. Há aqui um óbvio problema de generalização. A Europa de Leste tem um problema de xenofobia transversal, onde se incluem muitos países, entre os quais a Ucrânia mas também a Rússia. E, sendo verdade que Zelensky se rodeia de neonazis ucranianos, também é verdade que representa todos os democratas que também se opõem a invasão russa e combatem pelo seu povo. Não menos verdade é que os contextos de invasão sempre convidaram a alianças que se julgariam impensáveis, como quando os comunistas chineses combateram ao lado dos nacionalistas para derrotar a invasão japonesa. Não é um bom argumento.

Complementarmente, acusam Zelensky de ser belicista. Têm razão ao apontar que as soluções preconizadas por Zelensky acrescentariam guerra às guerra. Mas, ao apodarem de belicista quem é invadido sem antes sublinhar que a primeira agressão bélica parte do invasor, promovem uma inversão da tónica valorativa que acaba por ser lesiva para a razão parcial em que residia o seu argumento. 

Desde a primeira hora, tenho estado ao lado do PCP contra a enorme campanha de difamação que contra si foi montada. É mentira que o PCP seja pró-Putin, como muitos insinuaram. E é inquestionável que o PCP faz parte da esquerda grande, democrática e anti-neoliberal de que Portugal necessita. 

Mas a rejeição de atribuir a culpa primal da invasão a Putin, primeiro, não obstante a óbvia responsabilidade da expansão territorial da NATO, e agora a incapacidade de denunciar Zelensky pela contradição dos seus apelos, preferindo antes catalogá-lo como o emissário de uma mensagem xenófoba que, na verdade, não representa exclusivamente neste momento (por muito que não gostamos de Zelensky, e eu não gosto, é o líder de um país invadido), é um erro estratégico para o PCP.

Ao contrário de outros, não digo isto com prazer. Nem com o objetivo de atacar quem está no chão. Trata-se apenas uma crítica a um partido democrático que tomo como aliado. E a quem sinto a obrigação de criticar quando sinto que a estratégia seguida não é aquela que serve o objetivo principal que nos une: criar a maioria social para que os de baixo triunfem sobre os do topo.

12 comentários:

Seravat disse...

Parabéns pela análise!

Anónimo disse...

Com "aliados" como o Diogo Martins, o PCP estaria bem tramado. DM, como um largo leque de outros*, decreta o que o PCP devia e não devia dizer e fazer. Não é caso único, e nesta ocasião não passa de uma esforçada tentativa de passar uma esponja sobre a presença do BE na "audição" a este traste, da qual não se limpará facilmente.
*Veja-se o caso exemplar de Pacheco Pereira, em recente "grande entrevista" na RTP3. Aprentemente o assunto era a a censura. Mas entrevistador e entrevistado tinham reservado a parte final da entrevista. Para falar da actual censura global, a uma escala sem precedentes? Não. Para PP passar ao papel de censor do PCP, opinando sobre o que o PCP podia ou não dizer, sob pena (imagine-se) de "perder a honra". Talvez DM não goste de tal companhia. Mas aqui andam juntos.

Anónimo disse...

Discordo das posições assumidas pelo PCP desde o início deste conflito, que se traduzem, expressa ou veladamente, num apoio ao país invasor - "invasor", termo que o PCP se tem recusado a usar. Não posso concordar no entanto na presença de Zelenski no parlamento português. Mal, quanto a mim, os outros partidos que isso vão permitir , bem neste caso o PCP, não pelos argumentos apresentados para a recusa, numa acusação primária ao tomar as partes pelo todo - há muitos extremistas de direita na Ucrânia, que a recente invasão ao contrário da anunciada "desnazificação" veio aumentar (Azov e outros grupos extremistas sextuplicaram os seus efectivos), mas não será todo o povo ucraniano, nem o direito de um país a decidir o seu destino; mas porque o PCP foi o único partido a rejeitar a transformação da Assembleia da República num palco de tele-vendas.

TINA's Nemesis disse...

A Ucrânia é uma "democracia" limitada como aquelas "democracias" limitadas onde os partidos que não servem os interesses do suserano são abolidos e onde nazis são celebrados, perseguem minorias, as torturam e matam.

Democracia limitada é o que Portugal é, cada vez mais limitada (com objectivo de a fazer desaparecer) pela integração europeia engendrada por "elites" que não se podiam estar mais a marimbar para os direitos e bem-estar dos de baixo...

A Ucrânia não é uma democracia, isto não significa que só porque um Estado não é uma democracia dá o direito a outros Estados o invadirem. A invasão e destruição do Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia são tão ilegais quanto a da Ucrânia.

Portugal recebe lideres de regimes anti-democratas e de regimes que cometem crimes de guerra em nome de "valores" como a "democracia" e os "direitos humanos", Portugal é ele próprio um regime que faz parte de uma organização agressiva que comete crimes de guerra, a NATO.

Zelensky é apenas mais um que quer lá saber da segurança dos de baixo, tal como muitos "democratas" nas ditas "democracias" liberais...

A falsa indignação pela posição do PCP não tem nada a ver com "direitos-humanos" ou "democracia", tem a ver com uma oportunidade surgiu e que está a ser explorada para esmagar todos os que são críticos da NATO e da ordem neoliberal.

Incomparavelmente mais insana é a posição daqueles que subliminarmente andam por aí a defender o conflito nuclear, esses e essas continuam a aparecer na TV e Jornais, onde está a indignação por estas posições pró-apocalipse?

Mozgovoy disse...

Pergunta a fazer a Volodymyr Zelensky, o novel santo tutelar da "democracia ocidental", na Sessão Solene da nossa impolutamente democrática Assembleia da República: "Quem sequestrou, torturou e assassinou Gonzalo Lira?"

Mozgovoy disse...

Tiro, nesta específica atitude, o meu chapéu ao grupo parlamentar do Partido Comunista Português pelo seu posicionamento exemplar.
Aqueles que agora aproveitam a oportunidade para destilar a bílis de sempre em relação ao PCP terão muito que explicar no futuro, quando vierem à luz do dia a verdadeira dimensão e profundidade dos crimes da Junta de Kiev e dos seus bonecreiros da OTAN e da UE.
Já agora, peço aqui humildemente que os líderes de bancada das duas forças de "esquerda" que garbosamente vão assistir ao discurso do títere na presidência da neonazi Junta de Kiev façam uma simples pergunta ao novel santo padroeiro das "democracias" ocidentais: "Quem sequestrou, torturou e assassinou Gonzalo Lira?"

Anónimo disse...

A acusação de belicista a Zelensky tem um sentido mais geral do que o atribuído neste post, na interpretação limitada do seu autor. Refere-se não apenas a preconizar soluções que «acrescentariam guerra à guerra», não apenas, acrescente-se, a estimular uma escalada internacional que poderia desembocar num conflito nuclear, não apenas a tolerar ou mesmo incentivar a incorporação de forças neonazis (o expoente do belicismo) na guarda nacional, mas sobretudo ao abandono de soluções de conciliação e unidade nacional (como os acordos de Minsk) e à guerra travada contra as populações russófonas do Donbass.

Não esquecer que o governo Ucraniano faz no leste do seu país o que o governo russo faz no conjunto da Ucrânia. Ambas as guerras são condenáveis.

Concordo, no entanto, que há uma diferença de escala. A invasão da Ucrânia pelas forças armadas russas - absolutamente condenável (e que os comunistas explícita e reiteradamente condenam) - tem uma dimensão de destruição e de sofrimento imensamente superior. Esta diferença básica nunca deve ser perdida de vista.

Anónimo disse...

Para perceber a posição do PCP nesta matéria, convém começar por ler com atenção a Nota do Gabinete de Imprensa do PCP ( https://www.pcp.pt/sobre-recentes-desenvolvimentos-no-leste-da-europa ), emitida em 22 de Fevereiro de 2022, ou seja, dois dias ANTES da invasão da Ucrânia pela Rússia e um dia DEPOIS do reconhecimento por Putin - a pedido da Duma, câmara baixa do parlamento russo - das duas autoproclamadas "repúblicas populares" do Donbass ucraniano como estados independentes.

Na sua Nota de 22/02 (bem como noutras tomadas de posição nos últimos 8 anos), o PCP criticava o regime de Kiev e os seus aliados ocidentais de forma inequívoca: "A situação na Ucrânia não pode ainda deixar de ser dissociada do golpe de Estado de 2014, promovido pelos EUA, a NATO e a UE, protagonizado por grupos fascistas, e que levou à imposição de um regime xenófobo e belicista, cuja violenta acção é responsável pelo agravamento de fracturas e divisões, pela discriminação e negação de direitos fundamentais e de cidadania da população, e pela deflagração da guerra naquele País (...). Quando alguns demonstram agora a sua preocupação com os acordos de Minsk, assinados há sete anos, é importante ter presente que o regime ucraniano não só nunca os cumpriu, inclusivé de forma assumida, como impediu a concretização de uma solução política para o conflito no Donbass, sendo responsável por constantes violações do cessar-fogo, por sucessivas provocações e por uma massiva concentração de forças militares junto à linha de demarcação – acção que se incrementou significativamente nas últimas semanas –, ameaçando lançar uma acção militar em larga escala nessa região. A decisão agora assumida pela Federação Russa [Reconhecimento da independência das duas "repúblicas populares"] não pode ser olhada à margem desta conjuntura e dos seus desenvolvimentos".

O PCP não podia deixar de, dias depois, condenar inequivocamente a invasão da Ucrânia pela Rússia, ficando assim esta com o papel de agressor e a Ucrânia com o papel de agredido no conflito bélico subsequente - e foi o que fez. Mas, ao condenar inequivocamente o país agressor desde o início da invasão, o PCP não podia deixar de continuar a condenar o regime de Kiev pós-Euromaidan pelo conflito bélico no Donbass, iniciado oito anos antes com a cumplicidade dos governantes dos países da NATO. A invasão russa não deve ser usada para branquear o regime de Kiev relativamente ao que fez e desfez nos últimos oito anos. Este regime não merece solidariedade, os povos que sofrem com a guerra em curso - directa ou indirectamente - é que a merecem. Por isso é que é urgente pressionar no sentido da paz, uma paz justa que respeite os direitos dos povos envolvidos.

A. Correia

Jose disse...

«...uma questão de soberania ao qual é alheio»

É algum Estado alheio ao direito internacional?

Francisco disse...

E pronto, para grande tristeza minha, numa altura em que é já por demais indisfarçável o papel de marioneta dos interesses estratégicos dos EUA e da sua subsidiária UE, por parte do personagem Zelensky (talvez um actor, nunca perca essa condição), o BE lá falou a uma só voz com o CHEGA, com o PSD, com o CDS, com a IL e com o PS. Talvez na esperança de que em próximas ocasiões lhe atirem umas migalhas eleitorais. Com esta gente, subordinada aos interesses do capital e com eles conivente nos momentos críticos e de efectiva ruptura, é manifestamente impossível dar passos em frente.

Mozgovoy disse...

Caro Francisco.

Em próximas ocasiões, depois de virem a público a profundidade e a extensão dos crimes cometidos pela Junta de Kiev e pelo seu palhaço-mor, nem os indefectíveis do BE vão ousar atirar em público uma migalha eleitoral que seja ao seu já mais do que esquecido Bloco devoluto da esquerda modernaça.
Saudações cordiais.

Anónimo disse...

Jose
Em seguimento à sua mui pertinente questão gostaria de saber de sua justiça em relação ao Iraque, Afeganistão, Palestina e ... Portugal (Olivença)?
A.R.A