O Público tem um trabalho sobre como a crise nos obriga a “mudar de vida”. No fundo, a crise é vista como uma oportunidade para redescobrir os valores e as “coisas simples” ou lá o que é – “vamos” deixar de ter empregadas domésticas ou de ir de férias para o estrangeiro, de ser “consumistas” e tudo, “em 2012, vamos conhecer o vizinho, cuidar da horta e integrar uma associação”.
Não há mesmo pachorra para este romance da austeridade. Apontemos noutras direcções: vamos entrar em conflito com o vizinho, já que as disputas aumentam por falta de dinheiro nos condomínios, vamos ter de regressar à pluriactividade feita de todas as auto-explorações, vamos deixar de pagar quotas nas associações, vamos ter o tempo mais espartilhado e a vida mais condicionada pela subordinação crescente a patrões medíocres e pelos cada vez mais baixos salários, vamos entrar em insolvência, com o endividamento e o desemprego a aumentarem o stress e as depressões, o ensimesmamento e o rompimento dos laços sociais. Que tal assim?
Em 2012, a austeridade não é uma oportunidade para nada, mas sim um imenso desperdício de capacidades individuais e colectivas, um imenso golpe no processo da vida. É claro que todos os “vamos” dependem do lugar de classe e, já se sabe, num jornal português de referência a classe universal tende a ser demasiadas vezes uma parda média que serve para tudo, inclusive para dar voz aos preconceitos de Nilton ou para transformar a intensificação da exploração numa “disponibilidade para a mudança”. Mil vezes o realismo social com rostos e nomes e vidas concretas lá dentro de Ana Cristina Pereira, uma das melhores repórteres portuguesas. Escreve no Público e faz o que deve ser feito: dar voz aos que não têm voz, às trabalhadoras domésticas, aos que nunca vão para fora cá dentro.
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9 comentários:
O mais trágico é que não vamos deixar de ter empregadas domésticas. Quem as tem vai continuar a tê-las, só com salários mais baixos. Deixaríamos de ter empregadas domésticas, sim, se a desigualdade diminuísse, se os salários médios aumentassem e se o nosso modelo económico e social se aproximasse do escandinavo.
Muito bem este” larguem o romance de austeridade”, deste capitalismo recauchutado.
Anda tudo doido com este mundo “maravilhoso”, que sob encomenda dos que geraram a situação, uma comunicação social mais prostituível, nos quer impingir. Esta “súbita amizade pelo vizinho, pelo próximo, pelo gosto pela horta…” faz lembrar a proposta de vida de uma conhecida seita. Só que a seita agora é outra. Afinal, a quem é que esses oportunistas julgam passar um atestado de menoridade?
Coincidência, ontem fui ver um filme. Antes do início do mesmo, no prelúdio publicitário, fiquei estupefacto com idêntica proposta para o tal “romance de austeridade, com um toque de caridade”. Pensei a princípio que a publicidade do “romance” fosse encomendada pelo governo. Só no final da mesma se percebe que aparentemente não é; que é publicidade dos patrões da Coca-Cola.
Alguma felicidade haverá, talvez, quando essa gente desaparecer com o seu mundo de plástico e hipócrita de uma vez por todas. E de caminho leve para bem longe a sua insuportável caridadezinha!
bravo
Que maravilha a austeridade! A delicodoce austeridade "Público-Coca-Cola"!
Progresso e prosperidade? Estado Social? Qual quê! A soluçäo para os males do mundo é a Austeridadezinha!
Vejam lá se em África, onde "austeridade" significa "o päo nosso de cada dia", se eles näo säo täo felizes, e amigos, e há fartura de tudo. Especialmente no Kalahari.
Fascistas de m...
Mas têm absoluta razão, em tempos não muito distantes o que eu mais escutava em pessoas do meu circulo de convivência era que "havia gente" que estava acima das suas possibilidades -referiam-se às criadas ou empregados ou gente simples no seu entender- e davam-se ao luxo de terem adquirido casa ou carro novos...Foi aqui nesta verdadeira "lição" de inveja -porque a vida de alguns que falavam assim, não correria de todo bem, como quereriam- de largos extractos da nossa população que as coisas para mim começaram!
Falo dos primeiros anos da Integração Económica, do fim do Crédito Bonificado, do início do congelamento salarial da generalidade da nossa gente, do oportunismo galopante, da hipocrisia social de muitos que agora no Poder gostam de praticar a caridadezinha...
Aplaudo!
Excelente post! É isso mesmo!
Os OCS, em vez de esclarecerem a população sobre os Direitos que estão a perder e a ilegalidade das medidas que tal promovem, andam a entretê-la com estas sugestões da treta, por um lado e sobretudo, por outro, a dar como facto consumado e "inevitável" o empobrecimento que, quiçá nos há-de encaminhar para a luz ao fundo do túnel, para a "terra onde corre leite e mel"!
Grandes trastes! :((
Parabéns ao blog! Venho cá sempre que posso e gosto muito dele!
Abraços blogosféricos
Vejo o artigo muito romanceado sim, mas creio que traz temas interessantes. Por exemplo, a ideia de cidadão mais comunitário, pelo associativismo, pela ideia de cooperação entre pessoas do mesmo círculo, do mesmo bairro, da mesma cidade, dos mesmos interesses. Também, essa ideia de cuidar da horta, traz consigo maior autonomia económica ao lar, maior independência em relação aos supermercados, maior consciência ambiental. O artigo traz consigo a ideia de uma sociedade em transição, mas aquilo não é uma proposta, é algo que está a acontecer, mesmo que venha disfarçado de proposta. Para mim,uma sociedade que não se baseie no espírito comunitário, é uma sociedade amarrada aos poderes centrais, é uma sociedade que continuará a chorar ao papá Estado, é uma sociedade de rebanho, seja ele de esquerda ou de direita. Creio que superada a azia pelo assunto ser trazido, alegadamente, pela cúpula governativa deste país, se consegue vislumbrar grande interesse na perspectiva descrita no artigo. (Sinceramente, parece-me que paira no ar uma paranóia em relação a tudo o que seja notícia, um medo de estar a ser manipulado, quando só se quer ouvir más notícias que sustentem uma indignação maior. Porra, estamos mesmo a falar do belzebú?)
Pergunto. Não é verdade que há menos dinheiro a fluir para os mercados europeus? Não é verdade que o nosso modelo económico é insustentável? Não é verdade que os cidadãos necessitem de maior autonomia? E as comunidades? E a sociedade? E o Estado? E a humanidade?
Como se muda isto sem reconhecer as mudanças que estão a ocorrer na sociedade e o seu papel fundamental na mudança?
De resto, para mim a Coca-cola andar a fazer esse tipo de papel é asqueroso e profundamente hipócrita. Não tanto pelo que dizem, mas por escolherem para si essa máscara.
Caro João, caro Alexandre
A minha impressão é, obviamente, que o resíduo duradouro das conversas "latouchianas" vai ser aquilo que é incorporável por este discurso do "romance da austeridade" (e acho que não é preciso gastar muito tempo a explicar porquê ou como...).
Saudações cordiais.
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