quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A beneficiária, o facebook e a técnica do RSI

Em Novembro de 2014 a Segurança Social cessou o RSI a uma mulher residente em Abrantes, aparentemente por esta ter colocado um comentário no facebook, dando conta de que estava prestes a viajar para a Suíça (e ao qual associou a foto de uma rapariga sentada em cima de malas). Esse comentário era a forma irónica que encontrou para informar os amigos de que iria ser submetida a uma segunda intervenção cirúrgica, na sequência de um acidente de viação ocorrido em Junho de 2014. Maria Conceição, com 39 anos de idade e dois filhos a cargo, não aufere assim desde Dezembro qualquer apoio social, tendo recebido até então um subsídio mensal de 285€. Repito: 285€ de RSI por mês, concedidos a uma mulher desempregada, com dois filhos a cargo.

A beneficiária tinha como «amiga», naquela rede social, a técnica de RSI que acompanha o seu processo e que terá desencadeado, na sequência do comentário publicado no facebook, os procedimentos relativos ao corte do apoio, comunicado pela Segurança Social a 14 de Novembro e fundamentado na primeira alínea do artigo 22.º («ausência do país»). Indignada, Maria Conceição protestou junto dos serviços, garantindo que não só não saíra do país como não o poderia fazer, dado o seu estado de saúde (a segunda operação visou, justamente, a remoção dos parafusos aplicados na primeira intervenção cirúrgica a uma perna): «vivo em casa dos meus pais, tenho dois filhos menores, fiquei sem trabalho devido ao acidente, e agora a Segurança Social tira-me os 285 euros de Rendimento Social de Inserção (RSI) por causa de uma brincadeira no facebook. É uma injustiça muito grande.»

Vale a pena pensar este caso, aparentemente insólito e excepcional, para lá da perplexidade e surpresa que suscita. Ele diz muito mais do que se possa pensar sobre o padrão e a transformação progressiva das formas de apoio e de acompanhamento técnico no âmbito da aplicação do RSI. Como o Paulo Pedroso já sublinhou por diversas vezes, o espírito inicial da medida (então designada por Rendimento Mínimo Garantido), procurava associar uma prestação pecuniária a um programa de inserção, no qual os serviços assumiam o papel de parceiros activos dessa mesma inserção, numa lógica de verdadeira «cooperação colaborativa» entre técnicos e beneficiários.

A filosofia do RMG confrontou-se, logo de início, com uma cultura de intervenção social ainda muito marcada pela caridade e pelo assistencialismo (e portanto pouco receptiva à ideia da cooperação mútua entre técnicos e beneficiários na construção de percursos de autonomia e emancipação), bem como com a dificuldade, por parte do Estado, para promover «as medidas de inserção a que se comprometeu no texto e no espírito da legislação». Mais tarde, com a conversão do RMG em RSI, a vertente relativa à responsabilidade dos serviços nos processos de inserção seria progressivamente esbatida (ou mesmo anulada), reforçando-se o papel de «polícia dos "incumpridores" e "castigador" dos fraudulentos, na sua maior parte imaginários». Na letra da lei e sobretudo na prática dos técnicos, a lógica de fiscalização e perseguição foi assim substituindo a lógica de acompanhamento social dos indivíduos e das famílias, tendo em vista a sua inserção.

E se juntarmos a isto a burocratização kafkiana do RSI, sobretudo nos últimos anos, a redução progressiva do número de técnicos e o aumento do rácio de processos por técnico, percebemos como o RSI se encontra hoje nos antípodas daquele que era o seu propósito inicial. E passamos a interpretar de outro modo o caso, aparentemente exótico e singular, de Maria Conceição. De facto, ele revela a ausência, por parte da técnica do RSI, de um acompanhamento substantivo e informado da situação de saúde e familiar de Maria Conceição. Sentada no seu facebook, a assistente social mostra-se mais preocupada em controlar, fiscalizar e reprimir a beneficiária do que em estabelecer com ela uma relação de proximidade, construtiva, qualificada e de conhecimento, como é suposto que aconteça. A ponto de não tratar sequer de confirmar junto de Maria Conceição (se necessário fosse), que aquele comentário do facebook era tão só uma forma bem-humorada de encarar a intervenção cirúrgica a que iria ser submetida.

Quantos minutos de telejornal vale alguém que é morto por terroristas?

No mesmo dia [do ataque ao Charlie Hebdo], 37 jovens foram mortos no Iémen num atentado bombista. No verão passado, a invasão israelita causou a morte de 2000 palestinianos, dos quais cerca de 1500 civis e 500 crianças. No México, desde 2000, foram assassinados 102 jornalistas por defenderem a liberdade de imprensa e, em Novembro de 2014, 43 jovens, em Ayotzinapa. Certamente que a diferença na nossa reação não pode estar baseada na ideia de que a vida de europeus brancos, de cultura cristã, vale mais que a vida de não europeus ou de europeus de outras cores e de culturas assentes noutras religiões. Será então porque estes últimos estão mais longe de nós ou conhecemo-los pior? Será porque os grande media e os líderes políticos do Ocidente trivializam o sofrimento causado a esses outros, quando não os demonizam ao ponto de nos fazerem pensar que eles não merecem outra coisa?

Boaventura Sousa Santos, no Público

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Os privados são mais eficientes


A definição de Eficiência da wikipedia ensina-nos que "Eficiência refere-se à relação entre os resultados obtidos e os recursos empregados." As licenciaturas de economia ensinam-nos que os privados são mais eficientes. Portanto, a fazer fé na wikipedia e na academia, os privados são quem consegue melhores resultados com os mesmos recursos, ou os mesmos resultados com menos recursos, ou melhores resultados com menos recursos.

Afinal é simples a economia. Mas imaginemos que chega um ladrão de bicicletas e pergunta se os resultados (e os recursos) pretendidos de uma empresa pública e de uma empresa privada são os mesmos. E se são comparáveis. Aí entramos num debate interessantíssimo, que podemos empreender pensando na inserção de uma empresa como a PT no contexto de uma economia como a portuguesa.

A esquerda passa a vida a falar sobre o sectores estratégicos, mas o que quer isso dizer? Uma das formas de definir o que é um sector estratégico é avaliar o seu impacto no resto da economia. O sector das comunicações fornece serviços a um conjunto de consumidores finais e empresas que tem crescido e vai continuar a crescer. Isso quer dizer que o preço e a qualidade dos serviços de uma empresa como a PT são um factor de competitividade (ou falta dela) de muitas outras empresas e sectores inteiros da economia. Os preços da PT afetam os preços de muitas outras empresas. A qualidade dos serviços da PT afeta a qualidade dos serviços ou produtos de muitas outras empresas. É por isso (e por outras coisas) que a PT é uma empresa estratégica.

Antes da sua privatização, a PT era uma empresa altamente lucrativa, mas, para além disso, era um pólo de investigação e inovação e um factor de modernização da economia portuguesa. Muitas destas actividades repercutiam-se negativamente nos resultados da empresa, pelo menos no curto prazo. E o seu contributo para o país, embora indiscutivelmente importante, é difícil de medir ou comparar. É isso, aliás, que permite que muitos dos méritos da actividade da PT nesse período sejam atribuídos à liberalização do sector das comunicações, apresentado como o caso de sucesso das privatizações portuguesas.

Por outro lado, desde a sua privatização, a empresa distribuiu montantes recorde em dividendos aos seus accionistas. Desde 2000, a PT distribuiu aos seus accionistas mais de 800 milhões de euros por ano, em média. Mais de 70% dos quais para fora do país (sim, isso é relevante). No total, cerca de 130% do seu próprio valor accionista. Quando avaliada através do indicador preferido dos liberais, RoE (Return on equity), a privatização da PT e a sua vida privada, que neste momento se afigura curta, só podem ser descritos como um sucesso formidável. Numa lógica completamente diferente da que poderíamos utilizar para o seu papel enquanto empresa pública, como é bom de ver.

Este processo de descapitalização acelerada, somado a alguns negócios, tão ruinosos como pouco claros, terá como desfecho, qual cereja em cima do bolo, a venda a um fundo abutre, para desmembramento e venda à peça. Assim, num período relativamente curto, uma empresa pública sólida, capitalizada, inovadora, será reduzida a escombros, depois de ter sido previamente drenada, no que só pode ser qualificado como vampirismo financeiro.

Deste Governo não se poderá, obviamente, esperar qualquer iniciativa a este nível. Da regulação, sempre invocada nos processos de privatização como a garantia eterna do interesse público, é melhor nem falar. Tudo isto se passou e continua a passar no livre funcionamento dos mercados, perante a placidez de governo e reguladores. Com um certo tipo de "eficiência", em que "os mercados" são, de facto, imbatíveis. Para o interesse público, será uma tragédia, mas isso já não cabe no conceito de eficiência, tal como ele continua a ser ensinado.

Esta história serve, no entanto, para ensinar a quem não tenha aprendido com o sector financeiro, a EDP, a Galp, etc., uma coisa muito simples. Se um país quer ter uma estratégia de desenvolvimento económico, tem de ter instrumentos para essa estratégia. Para isso, precisa de ter empresas públicas, pelo menos dominantes, em todos os sectores decisivos para essa estratégia. E quando digo "ter", quero dizer ser dono e controlar. O resto são boas intenções, conversa ou corrupção.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Entre a política económica e a economia política

Se eu tivesse de escolher dois artigos já clássicos de economia muito úteis para os tempos actuais, escolheria o artigo de Irving Fisher, de 1933, sobre a interacção perversa entre a dívida e a deflação como segredo de todas as depressões, ou no presente caso de todas as estagnações, e o artigo de Michal Kalecki, de 1943, sobre a economia política do pleno emprego. Nos últimos anos temo-los referido várias vezes. O primeiro por causa do espectro da deflação em Portugal e não só. O segundo para explicar as bases sociais da deflacionária política de austeridade.

Ambrose Evans-Prichard mobiliza agora Fisher para analisar a forma como a Europa do Sul foi “traída” por uma política deflacionária contrária aos seus interesses, numa “União” sem instrumentos monetários e orçamentais adequados às circunstâncias e sem perspectivas de os vir a ter por razões que um marxista como Kalecki compreenderia bem: o euro era uma utopia monetária e só sobrevive como distopia tecnocrática autoritária.

Basicamente na mesma linha, embora num tom menos caustico e, apesar de tudo, mais esperançoso, Wolfgang Munchau leva também a sério a deflação, que se alimenta da crise de procura e que está vinculada ao perigo da “estagnação secular”, e avança com uma sugestão que remete implicitamente para Kalecki: para lá de uma política monetária bem mais activa, os governos europeus deveriam aproveitar os ataques terroristas em França para dar um impulso orçamental por via do investimento em segurança, usando isso como pretexto para atenuar as regras orçamentais em vigor.

No seu artigo sobre a economia política da política económica, Kalecki tinha alertado para o facto de os capitalistas tendencialmente não apreciarem a política económica de estímulo público centrada no combate ao desemprego em contextos democráticos, dada a força que as classes trabalhadoras assim podem conquistar, desafiando a autoridade patronal. Parte daí para explicar a política económica de estímulo no quadro do fascismo, no quadro de uma economia de guerra.

No actual contexto de esvaziamento da democracia na escala onde esta pôde florescer, a ascensão do Estado penal securitário, que de resto é indissociável do neoliberalismo, estimula sempre uma certa economia, políticamente pouco recomendável.

Amanhã (no ISCTE): desigualdades em debate



A economia para as crianças

Nunca um convite para falar em público sobre economia me deixou tão inquieto como este. Esta semana irei participar no “Encontro com o Cientista”, no Pavilhão do Conhecimento em Lisboa, a convite do programa Escola Ciência Viva. Trata-se tão só de explicar o que faz um investigador em ciência económica a uma audiência de crianças da escola primária.

Seria fácil para quem acreditasse que a Economia consiste num conjunto de relações mais ou menos abstractas – uma curva da procura para lá outra da oferta para cá, um sistema de equações simultâneas, maximiza-se a utilidade e a função de lucro e já está. Seria só simplificar a intuição matemática e a coisa estava feita.

Para quem, como eu, entende que não há leis universais em Economia, que os processos económicos dependem crucialmente de contextos institucionais concretos em tempos e espaços bem-definidos, que as regras formais e informais que estruturam aqueles processos são tanto causa como consequência do comportamento dos actores económicos, que tais regras nem sempre são facilmente observáveis e que é preciso analisá-las cruzando métodos, e que sem fazer isso a ciência económica se reduz a um exercício fútil – o desafio fica um pouco mais difícil.

Como se não bastasse, resolvi pesquisar o que os psicólogos do desenvolvimento andaram a estudar sobre a apropriação de conceitos económicos por parte de crianças de diferentes idades. Os resultados são fascinantes.

Tipicamente, aos 4-5 anos as crianças não têm nenhuma ideia de onde vem o dinheiro, pensam que o preço dos bens depende das suas características (nomeadamente as físicas – dimensão, proporção, etc.), não percebem de todo a ideia de lucro e são incapazes de aceitar que quem empresta dinheiro possa cobrar juros em troca.

Aos 7-8 anos têm consciência de que o dinheiro vem do trabalho (se os pais trabalharem), mas continuam a pensar que o preço das coisas depende da sua função ou utilidade prática (jamais um colar pode custar mais que um canivete suíço), que juros e lucros não fazem sentido, e são essencialmente desprovidos de pensamento estratégico ou de ganância nas relações com os outros. As trocas entre crianças são frequentes nestas idades, mas são motivadas por factores muito diversos (puro gozo, desenvolvimento de laços de amizade, desejo de possuir ou descartar objectos).

Lá para os 10-12 anos ainda não pensam na relação entre oferta e procura quando tentam explicar o preço das coisas – nesta fase acreditam que os preços são determinados pela quantidade de trabalho ou de materiais incorporados num objecto. Começam a perceber a ideia de lucro, mas aceitam mais facilmente que haja lucros baseados no que se produz do que no que se troca. Só então começam a aceitar a noção de juros sobre os empréstimos, mas durante algum tempo continuarão a achar que os juros passivos (i.e., que os bancos pagam sobre os depósitos) devem ser maiores do que os juros activos (i.e., que os bancos cobram pelos empréstimos) - só muito mais tarde conseguem compreender a noção de lucro bancário.

O mais interessante de tudo é a forma como as crianças se comportam na famosa experiência do bem-público. Nesta experiência testa-se a disponibilidade de um conjunto de indivíduos para contribuir de forma anónima para um bem comum de que todos beneficiam. Entre os adultos, tipicamente, a partir de certo momento há alguém que, à sombra do anonimato, deixa de contribuir o que era esperado, desencadeando uma sucessão de respostas no mesmo sentido, resultando na falência do bem-público. Entre as crianças, por contraste, a coesão social tende a manter-se para benefício de todos.

Estes resultados fazem-me pensar que, se calhar, há tanto para aprender com as crianças sobre economia como para ensinar-lhes.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

China, expoente do capitalismo



A história recente da economia chinesa é uma síntese, no tempo e no espaço, da história do capitalismo.

Num artigo famoso publicado em 2011, o economista malaio-britânico Danny Quah procurou identificar a localização do "centro de gravidade" da economia mundial e a forma como este tem vindo a deslocar-se ao longo do tempo. Trata-se de um problema simples de enunciar mas ao qual, devido a uma série de dificuldades metodológicas, é mais difícil dar resposta.
Os leitores mais interessados pelo tema podem obter informação mais detalhada seguindo o link em cima, mas em termos resumidos os passos seguidos por Quah foram os seguintes: primeiro, criou uma grelha constituida por um conjunto de 700 pontos na superfície do globo. Depois, associou a cada um desses pontos a parte do PIB mundial correspondente à região centrada nesse ponto. Em seguida, procedeu à soma ponderada das coordenadas (tridimensionais) desses 700 pontos, utilizando a parte respectiva do PIB mundial como ponderador. O resultado foi um ponto único (o "centro de gravidade"), localizado no interior do planeta, relativamente mais próximo dos pontos à superfície onde se concentra uma maior proporção da actividade económica mundial. Finalmente, projectou esse centro de gravidade tridimensional na superfície terrestre de modo a torná-lo mais inteligível, utilizando para o efeito uma projecção bidimensional cilíndrica da superfície do globo.
O resultado que obteve pode ser consultado na figura 2 do artigo indicado em cima - ou directamente  aqui. Tal como estimado desta forma, o centro de gravidade da economia mundial em 1980 encontrava-se no meio do Atlântico, nas proximidades da Madeira e dos Açores - não devido ao excepcional dinamismo económicos destes últimos, claro está, mas devido à concentração desproporcional da actividade económica mundial nos EUA e Europa. Em 2010, porém, esse mesmo centro de gravidade encontrava-se já no Mediterrâneo Oriental. E em 2050, no final do período de extrapolação, prevê-se que venha a situar-se em pleno coração da Ásia. Esta figura é, com certeza, uma das representações mais sintéticas e intuitivas de uma das principais dinâmicas que têm caracterizado a economia mundial no final do século XX e no século XXI: a ascensão da Ásia Oriental à liderança económica do planeta.

domingo, 11 de janeiro de 2015

O nevoeiro da guerra

Num documentário genial de Errol Morris - The Fog of War - todo assente numa conversa com Frank McNamara, o próprio conta que o que permitiu esvaziar a crise dos mísseis de Cuba em 1961, foi conhecer como o inimigo soviético pensava. E ir ao seu encontro. Algo que falhou no Vietname, levando ao descalabro de 2 milhões de mortes vietnamitas sem julgamento e umas dezenas de milhar no lado norte-americano. E mesmo assim, perdendo a guerra. "Vimos a guerra vietnamita como um elemento da Guerra Fria, quando era uma guerra civil. E enganámo-nos", conta ele no filme. A mensagem é óbvia: há que aprender com os erros, para não cometer as mesmas falhas que resultam em mortes desnecessárias.

De repente, as trincheiras abrem-se, mais uma vez, aos nossos pés. E perguntamo-nos: "Mas porquê? Eu não fiz mal a ninguém..."
Tudo parece um ataque endoidecido, de um inimigo "externo".

Um comando ataca um jornal humorista em Paris e, sem qualquer julgamento, mata 12 pessoas e fere gravemente 10 outras. O brutal assassinato, coordenado com outro comando que mata sem julgamento uma polícia e faz uma tomada de reféns num supermercado judeu em Paris, mobiliza a policia e as forças armadas. Passadas horas, as forças da ordem intervêm. Resultado: a morte sem julgamento dos 3 comandos, de 4 reféns, ficando outros 4 em estado crítico.

Justificação:
"Estamos em guerra, estamos a ser atacados". E é verdade.

Justificação: Os comandos responderiam: "Estamos em guerra, estamos a ser atacados". E é verdade. Há muito tempo. E recapitulariam o filme das intervenções ocidentais no Médio Oriente, durante muitas décadas. Até poderiam começar apenas no século XX...

...com a criação do Estado de Israel em 1948;
com o desalojamento das populações locais e com multidões de refugiados para os países vizinhos;

com a desestabilização da Pérsia, através de um golpe de Estado financiado pelas companhias petrolíferas internacionais, colocando no poder um Xá ocidentalizado e moderno - mesmo para as mulheres. Tudo após uma política de nacionalização de recursos naturais, lançado em nome de uma política de desenvolvimento da região. Algo que influenciou a revolução islâmica em 1978 até aos nossos dias. Um golpe replicado pela intervenção militar no Iraque em 2003, sob o pretexto do ataque a Nova Iorque e da existência nunca provada de armas de destruição maciça;

com a desastabilização do Líbano, com intervenção militar por diversas vezes de forças dos países ocidentais (1958 e 1982, por exemplo), invasão israelita do sul, ficando claro o apoio a milícias de direita que, quando o seu líder foi assassinado, foram os autores dos massacres de Damour, de Sabra e Shatila, e culminando com um bombardeamento em 1984, que antecedeu a retirada ocidental e a expulsão dos palenstinos. O Líbano continuou a ser desestabilizado já no século XXI;

com as interferências no Egipto desde que quis desenvolver uma política de desenvolvimento, sem o apoio ocidental (que lhe retirara apoio à construção da barragem do Assuão), o que levou à nacionalização do Canal do Suez em 1956  e posterior intervenção militar britânica e francesa, enquanto Israel ocupava os montes Sinai;

com o financiamento ocidental a radicais islâmicos para combater soviéticos no Afeganistão, para depois perder o controlo do uso dessas armas e do seu poderio regional;

replicado esta estratégia pragmática na Síria, para combater o regime tido como peão do Irão, em nome do direito universal à democracia, em apoio a uma rebelião popular;
na faixa de Gaza
terminando com o apoio ocidental a Israel na ocupação de zonas palestinas, através da sua política de progressivos colonatos e de muros, fomentado sentimentos de impotência e frustração nas populações palestinas, de asfixia regional, sem que o Ocidente reconheça o seu Estado nas Nações Unidas;
e mais recentemente culminando com a morte sem julgamento na faixa de Gaza de mais 3 mil pessoas, nomeadamente por bombardeamento aéreo, justificado com o argumento de serem escudos humanos de forças terroristas que atacavam Israel e legitimado pelo Ocidente como legítima defesa.



O radicalismo só pode gerar radicalismo. E a guerra é algo atroz. Mata-se sem julgamento, sem necessidade de reintroduzir a pena de morte, como reivindicou Marie Le Pen, após o caso Charlie Hebdo.

Mas todas as mortes são crimes à luz dos direitos universais. Já nem falo do direito de expressão, mas do direito à Vida. Todos são crimes: o que varia é a punição ou a ausência de punição dos seus autores e dos seus autores morais, muitas vezes em nome apenas da geoestratégia ou de interesses "vitais" de alguns países.

A guerra é atroz, mas está a acontecer. Não se pode mais fechar os olhos. Não podemos enfiar a cabeça na areia e gritar que estamos em guerra com um inimigo "externo".

Conhecer o pensamento, as frustrações, as humilhações dos inimigos do Ocidente é uma tarefa essencial para desarmar este conflito, todo este radicalismo que dura há décadas em guerra no Médio Oriente e que, só nos últimos 15 anos, tem começado a aflorar o nosso lado do planeta. E que, se não se arrepiar caminho rapidamente, vai continuar e aprofundar-se. Muita gente vai morrer. No nevoeiro da guerra, apenas se mata.

E nisto, nesta guerra, estamos todos envolvidos, porque elegemos quem define as NOSSAS políticas externas.

The Durutti Column: Arpeggiator



sábado, 10 de janeiro de 2015

Muito longe de sermos Charlie (II)

«Ligo a televisão e vejo a Assembleia da República que não deixou falar os "capitães de Abril" e que está tão chocada com esta falta de respeito pelo direito de expressão. Julgava que, para a presidente da Assembleia da República, "os carrascos" eram os que faziam barulho nas bancadas para o povo. O mesmo Telmo que está na Assembleia da República chocado, estaria a pedir para acabar com aquele "cartoon" que ofende católicos. Já assisti a isso e não foi assim há tanto tempo. "Embora fazer um referendo sobre co-adopção de casais homo" - porque respeitamos muito a liberdade dos outros. Uma Europa que vive um discurso de honestos do Norte contra preguiçosos do Sul está de boca aberta com extremistas. Somos todos Charlie. É só grandes defensores da liberdade de expressão e dos direitos individuais e das conquistas da democracia, no mesmo local onde se apoia que a Merkel possa fazer chantagem eleitoral sobre os gregos.
Vivemos num país em que o Presidente da República, como representante de todos os portugueses, não vai ao enterro de um escritor (Nobel) porque não gosta dele, ou que não dá os parabéns a outro que canta fado porque não canta o que ele gosta, e que deve estar a deitar cá para fora um comunicado sobre a importância de aceitar a liberdade de expressão e a diferença.
»

João Quadros, Não somos todos Charlie

«Nas reacções aos assassinatos destaca-se muito positivamente o facto de serem cada vez mais os que defendem o princípio da liberdade de expressão. Não é de somenos, porque a próxima vez que alguém quiser impedir a publicação do que quer que seja (na revista de bairro como na publicação nacional, para nem falar em revistas académicas…) terá mais dificuldade em fazê-lo. De resto, e por cá, não era má ideia aproveitar todo este consenso acerca da liberdade de expressão para mudar o que na lei portuguesa subtrai certos símbolos à crítica, por mais ultrajante que esta seja. Por exemplo, os deputados portugueses bem que podiam mandar às urtigas estas linhas do Código Penal: "Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias".»

José Neves (facebook)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Muito longe de sermos Charlie


Wild Beasts - All the King's Men



Combater o terrorismo sem faz-de-conta


A chacina feita nos escritórios do jornal satírico francês "Charlie Hebdo" deixou-nos em estado de choque. As manifestações de repúdio e condenação foram imediatas e ainda não terminaram. Queremos viver em democracia, queremos escorraçar o medo, queremos dizer bem alto que a intolerância e a violência não vão dominar as sociedades europeias, é isso que nos leva a sair à rua. Infelizmente, nem todos partilham deste espírito de cidadania. Nas redes sociais, já são visíveis comentários de ódio aos muçulmanos, de incitamento à vingança, de acusações de cobardia àqueles que repudiam a violência. Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, afirmou que a "França tem de estar em guerra contra o fundamentalismo", uma linguagem bélica que certamente agradará a todos os que vivem mal com a diferença, vêem em cada imigrante islâmico um potencial terrorista e acreditam que isto se resolve com "olho por olho, dente por dente". O aproveitamento político da tragédia começou.

Apesar da escassez da informação disponível, há coisas que neste episódio de violência saltam à vista: a frieza, a crueldade e o método de actuação dos terroristas. Este ataque foi feito por gente treinada militarmente, não foi um acto de loucura cometido por três jovens franceses marginalizados. O que aconteceu deve levar-nos a pensar sobre as causas menos imediatas desta tragédia. Precisamos desse esforço de lucidez, não só para fazermos o luto - os democratas estão de luto -, mas sobretudo porque um combate eficaz ao terrorismo exige que se entendam as suas causas. Análises simplistas, acompanhadas de apelos demagógicos à limpeza de uma Europa em risco de islamização, só agravam a espiral de ódio e violência. A estratégia do confronto serve os interessados na manutenção do medo, sobretudo a indústria do armamento e os defensores de sociedades etnicamente limpas, dotadas de Estados policiais autoritários. Os defensores de uma sociedade aberta, democrática e solidária, contrapõem-lhe o pleno exercício do estado de Direito, democrático e social. A sujeição das nossas democracias aos interesses das grandes corporações multinacionais, e à finança globalizada, tem-nos impedido de enfrentar as raízes desta violência, executada com rosto tapado mas com biografia bem à vista.

Afinal de contas, quem praticou a injustiça de expulsar da Palestina os seus habitantes e gerou o histórico ressentimento que produziu o Hezbollah e o Hamas? Quem apoiou os Talibãs no Afeganistão e ainda hoje os financia? Quem arma os guerrilheiros da Al-Qaeda no norte de África e no Próximo Oriente? Quem compra o petróleo ao Exército Islâmico para que possa armar-se e recrutar guerrilheiros na Europa? Quem permite a livre circulação dos capitais provenientes dos negócios de droga e armas, e recusa encerrar os paraísos fiscais que os encobrem? Estas são algumas perguntas que, a serem respondidas com seriedade, nos remetem para a geopolítica dos interesses do capital, para regimes políticos despóticos e, vergonha nossa, para a venalidade e hipocrisia das elites da nossa UE e dos EUA.

Olhando mais para dentro de portas, quem é responsável por manter no desemprego milhões de jovens europeus, incluindo nos países mais desenvolvidos da UE? Quem é responsável pelas políticas económicas que, em nome da estabilidade dos preços e da confiança dos mercados financeiros, perpetuam o desemprego e a pobreza entre os imigrantes de segunda e terceira geração? Quem desmantelou os controles policiais nas fronteiras entre os Estados-membros da UE em nome do Mercado Único? Quem matou o desenvolvimento da África com a imposição do modelo neoliberal, suscitando o desespero das populações que hoje se entregam ao tráfico e à morte no Mediterrâneo?

Em ano de eleições no sul da Europa, importa que os partidos candidatos também expliquem a estratégia que defendem para o combate ao terrorismo. Esperemos que não se fiquem pelo enunciado de medidas de cooperação policial, fazendo de conta que estão a falar a sério. A tragédia de Paris exige uma mudança política global, na ordem interna e na ordem externa.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Direitos Humanos à la carte e o trabalho de mil câmaras de filmar

Quando vejo o unanimismo nos órgãos de comunicação social a condenar a brutalidade do que se passou em Paris, só me lembro de cenas como esta: Margaret Thatcher sobre a greve da fome de Bobby Sands, militante do IRA, em luta pela remoção do Special Category Status.

A linha divisória deve ser sempre a vida humana.

Mas fica este alerta para leituras simplistas, que cavalgam a defesa dos direitos absolutos da Humanidade à 2F e 3F, para logo se esquecerem deles no resto da semana, sobretudo quando são violados em seres humanos tão distantes de nós, como no Médio Oriente, palco vital para entender tanta da violência que, cada vez mais, se sente no nosso "quintal".

Um alerta para quando as forças que hoje chamamos de terroristas podem, um dia, transformar-se em governo (vidé em Israel com Begin) ou mesmo em forças políticas eleitas como na Irlanda. E então estranhamos: "Como foi que isso aconteceu?"


Segundo um jornal Le Monde, um dos intervenientes no ataque ao jornal Charlie Hebdo em Paris radicalizou-se após a intervenção americana no Iraque: "As imagens da intervenção norte-americana e britânica, em Março de 2003, no Iraque, fascininava-os. 'Foi tudo o que viu na televisão, as torturas na prisão de Abu Ghraib, tudo isso, que o motivou', contou durante o processo de 2008, um dos próximos de Chérif Kouachi. Se, por um lado, eles se radicalizam em menos de um ano e procuram chegar ao Iraque, já no tribunal Chérif Kouachi e os seus camaradas aparecem como um grupo amador".

Após uma experiência na Síria, Chérif Kouachi é detido em Paris em 2005.

No ano e meio que passou em prisão, de Janeiro de 2005 a Outubro de 2006, no estabelecimento prisional de Fleury-Mérogis (Essone), Chérif Kouachi conheceu aquele que se tornaria o seu novo mentor: Djamel Behgal. Este homem, que se fez chamar Abu Hamza, cumpre o pena de dez anos de prisão por um projecto de atentado organizado, em 2001, à embaixada dos Estados Unidos em Paris. (...) Encarcerado de novo em Maio de 2010, com base em suspeitas, Chérif Kouachi foi libertado a 11 de Outubro do mesmo ano", ou seja, cinco meses de prisão sem acusação. Ele seria liberado de todas as suspeitas a 26 de julho de 2013.

O artigo continua, numa impressionante recolha de informação, dir-se-ia mesmo um dossier policial, com fotos da cadeia e com transcrições de escutas inclusivé.

E outra nota:

No outro dia, fui ver o Água Prateada, de Wiam Bedirxan e Ossama Mohammed. Uma coisa que me assaltou foi o facto de as imagens relacionadas com seres humanos a ser baleados, maltratados, mortos enfim, não serem inesperadas, nem nos esmurrarem já o estômago. Já vimos cenas iguais, retratadas tantas e tantas vezes em séries televisivas no aconchego do lar - combates, mortes à bala, à faca, por estrangulamento, torturas diversas, por afogamento, com choques eléctricos, química, tudo remedeado com bombas amigas que se sobrepõem no final às bombas inimigas. É sintomático que as pessoas que primeiro se deram conta do assalto ao Charlie Heddo pensassem que se tratava da rodagem de um filme. A realidade ultrapassa a ficção, mas por que será que ficcionamos a realidade até ela nos bater com toda a força?

De tal maneira que as imagens que mais nos tocam no filme Água Prateada são as dos animais estropiados e mutilados na guerra, nos cercos das cidades, nas cidades desfeitas pelos combates e bombardeamentos, enfim, as imagens que nunca foram trazidas para os pequenos écrans lá de casa.

Banalizámos a violência e aceitamos todos os dias as bombas "cirúrgicas" dos nossos governos, como solução e terapia para - dizem-nos e repetem sempre nas análises - mantermos "the western way of life" ("o nosso modo de vida"). E depois estranhamos. E somos todos Charlies Hebdo.

Se calhar, a única forma de entendermos a importância real da vida humana é que tudo seja retratado com imagens filmadas. Ao vivo. Onde quer que seja. Tal como é, quando acontece. Se calhar dessa forma, seja impossível esquecer que o mundo está repleto de Charlies Hebdos nunca homenageados por nós, quando o deveriam ter sido de forma bem mais unânime. Pela importância que têm para a nossa paz.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

António Gama Mendes

«Não foi apenas o sentido da suavidade da vida, nas suas alegrias e amarguras, que aprendi com o António ao longo de quarenta anos. Foi a vontade permanente de uma compreensão fina das coisas, uma compreensão sempre provisória, inquieta, à procura da mais sólida imaginação. Sei que um texto como este não resiste às suas perguntas, às suas dúvidas, à sua crítica virtuosa. Sei que, com ele, a percepção do território, uma percepção vivida, vista de muitos lados, é sempre mais exigente. Mas esta é a minha pequeníssima homenagem, do modo que eu sei, a um querido amigo, a um geógrafo ímpar, estimadíssimo por gerações e gerações de alunos, a um universitário que deu todo o tempo para o ser plena e integralmente, a um homem culto sem fronteiras nem disciplinas».

José Reis

«António Gama é um dos últimos representantes da Escola de Geografia de Coimbra e um dos primeiros a romper explicitamente com ela. Francófono e francófilo, é sobretudo a autores de língua francesa, ou de diferentes nacionalidades mas com períodos de exílio em França (como Milton Santos), que recorre no seu esforço de estender a geografia às ciências sociais, trazendo as teorias sociais para a geografia e levando as questões do espaço para as ciências sociais, e de entender a evolução da disciplina à luz da história e da filosofia do pensamento científico. (...) Munidos das mais sofisticadas técnicas bibliométricas, os estudiosos da ciência da segunda metade do século XXI terão dificuldade em encontrar António Gama num vasto firmamento repleto de estrelas científicas. Mas António Gama não é uma estrela, é um cometa. E os cometas, quando passam, iluminam-nos de tal forma que colocam em segundo plano qualquer estrela, mesmo a mais brilhante.»

João Ferrão

(A dedicatória de José Reis no artigo «Território e políticas do território: a interpretação e a ação», que será em breve publicado, tal como o texto de homenagem de João Ferrão, «António Gama: um Geógrafo Peculiar», na Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia, vol. L, nº 99).

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Direito à Água: a Declaração de Coimbra


Declaração de Coimbra sobre a Água

«Os representantes do povo de Coimbra democraticamente eleitos declaram que a água é um bem público inalienável, cuja propriedade, gestão e provisão cabe por inteiro à esfera pública e à deliberação democrática, visto que é um recurso do território e um bem essencial para a dignidade humana, sendo um limite intransponível de salvaguarda dos interesses comuns dos povos.
Declaram, ao mesmo tempo, que todas as medidas relacionadas com a organização do uso, provisão e acesso à água devem prosseguir as finalidades anteriores, sendo inaceitáveis e ilegítimas as ações que organizem ou reorganizem o sector para facilitar a sua sujeições a lógicas de exploração financeira privada.
A experiência já demonstrou que a gestão dos serviços de interesse comum e a solidez da democracia aconselham a que se atenda ao princípio da precaução e a que se evite o risco de falhas graves já vistas em domínios cruciais da sociedade e da economia. Entendem também os representantes do povo de Coimbra que é ao poder municipal democrático que cabe o controlo deste recurso, pelo que a municipalização e o papel da comunidades locais deve ser sempre reafirmado.
»

A Declaração de Coimbra sobre a Água foi adoptada por unanimidade no passado dia 22 de Dezembro de 2014, pela Assembleia Municipal, sob proposta do movimento cívico Cidadãos Por Coimbra. Para além do seu enunciado, vale a pena conhecer também a intervenção de apresentação do texto da declaração, feita por José Reis, deputado municipal do movimento:

«Este texto afirma uma posição do nosso município mas também se dirige ao país. Está escrito com frases positivas e a pensar no futuro. E revela um momento de grandeza em que uma instituição como a Assembleia soube tratar do essencial e definir princípios claros acerca de um bem tão importante como a água.
Vale a pena lembrar que em 1972 só 40% da população portuguesa tinha distribuição de água ao domicilio e que só 17% dispunha de saneamento básico. A generalização do acesso a estes serviços essenciais foi parte crucial da edificação do Estado democrático e da constituição da democracia económica, social e territorial.
Tratou-se de um extenso processo de infraestruturação que alterou radicalmente as condições de bem-estar e mobilizou muitos recursos. O agente principal de tal transformação foi o poder local, que nisso fundou muita da legitimidade justamente alcançada. De facto, nas primeiras duas décadas depois do 25 de Abril foi pelo investimento realizado através dos municípios e da EPAL, uma empresa pública, que se alcançou o essencial da criação de sistemas minimamente modernos.
Também sabemos que a história da empresarialização e tendencial privatização de um sector assim estruturado vem de 1993, com o decreto-lei 372/93. Ela tem na sua base a distinção entre sistemas em “alta”, capital intensivos, e sistemas em “baixa”, próximos dos cidadãos. Iniciou-se aí o processo de “desmunicipalização”, assim como se abriu a porta à entrada de privados no próprio fornecimento doméstico. Sabe-se hoje que assim se começou a desenhar um quadro em que dominam empresas poderosas, em geral ligadas às de construção civil. Esta lógica de privatização e parcerias-publico-privadas municipais desencadeou um processo, porventura desastroso, de enormes custos. Para isso concorreram contratos que o Tribunal de Contas considerou deficientes por não acautelarem devidamente a quem cabiam os riscos, que ficam sempre às costas da entidade pública, e por promoverem uma enorme sujeição financeira. Revisões, sobrestimação da procura, más estimativas, investimentos excessivos, extensões dos tempos de concessão, revisão das tarifas: eis os ingredientes da nova situação criada.
No entanto, da soma de tudo isto resultou um importantíssimo património, com ativos dos sistemas intermunicipais estimados em mais de 6 mil milhões de euros e com um endividamento de menos de 2,5 mil milhões.»

A Declaração de Coimbra representa, de facto, a afirmação democrática de uma posição de princípio que se reveste da maior relevância. E constitui igualmente, como sublinha José Reis, uma iniciativa que transcende as fronteiras concelhias, dirigindo-se ao país e podendo servir de exemplo para que iniciativas semelhantes possam vir a ter lugar noutros municípios portugueses.

Orientando as respostas nas sondagens

Com o frenesim que começa a suscitar a questão grega, as sondagens ganham um novo papel. Umas sondagens apresentam a maioria dos gregos como querendo regressar à moeda nacional, outras dão que 74% quer manter-se "a todo o custo" no euro.

Mas o problema das sondagens é que podem ser perfeitamente orientadas para o resultado que se pretende. Quer saber como? Basta recordar a maravilhosa série Yes, Prime Minister. As minhas desculpas por ser uma versão sem legendas.


Preparados para tudo

Desde há alguns anos que respondo da mesma forma à pergunta: “afinal, és a favor ou contra a saída do euro”. A minha resposta é: temos de estar preparados para tudo. “Quer dizer que és a favor da saída do euro?”. Não, sou a favor de que estejamos preparados para tudo. “Então, achas que sair do euro é indesejável?”. Acho que os custos imediatos de uma saída podem ser muito elevados, mas quanto melhor preparados estivermos menores serão, caso se conclua que essa é a melhor opção a prazo. “Ah, então achas que devemos sair do euro!”. Não, acho que devemos estar preparados para tudo. E ainda não estamos.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tempos financeiros, ou seja, políticos


Infelizmente, o único partido que defende convincentemente a reestruturação da dívida é o Syriza, um partido de esquerda radical. Se é verdade que o Syriza está certo em relação à reestruturação da dívida, também é verdade que é pouco honesto [disingeneous] ao recusar uma saída do euro. Quem defende a reestruturação da dívida, tem de responder à questão do que fazer se as negociações falharem. As escolhas nesse caso seriam o regresso ao status quo – e então não há razão para votar no Syriza – ou sair da Zona Euro e romper unilateralmente com os credores externos. Mas isto é o que o Syriza recusa. O Syriza tem os instintos certos, mas pode não ter as políticas certas. Esta falta de consistência conta porque Angela Merkel parece pronta a ir até ao fim. O Der Spiegel revelou que a Chanceler alemã está disposta a arriscar uma saída da Grécia se o próximo Primeiro-Ministro abandonar as actuais políticas. Por outras palavras: a única forma que a Grécia tem de reestruturar a sua dívida é sair da Zona Euro.

Wolfgang Munchau, “Os extremistas políticos podem ser os salvadores da Zona Euro”, Financial Times de hoje.

Subscrevo a análise do editor de assuntos europeus do FT: como é que se diz democracia em grego? Entretanto, segundo uma sondagem da Gallup de Dezembro de 2014, referida por Jacques Sapir numa análise às motivações de Merkel, 52% dos gregos são favoráveis ao regresso à moeda nacional, o que de resto está longe de ser um valor residual...

Ainda 2015


Dois espectros pairarão sobre a Europa em 2015: a deflação e as eleições em vários países periféricos. A ameaça deflacionária indica-nos como a crise, apesar da recuperação tépida, não foi superada. Em especial para os países fortemente endividados, a deflação é geradora de todos os círculos viciosos. Neste contexto, os povos poderão apoiar soluções políticas que ponham em causa o regime “austeritário” europeu. A confrontação entre a democracia e os mercados financeiros promete marcar o próximo ano, a começar pela Grécia. Se é verdade que não há como a aproximação de eleições para atenuar os piores aspectos da austeridade, também é verdade que a soberania democrática foi em larga medida esvaziada e a sua recuperação pelos povos europeus promete colocar no primeiro plano a política. Esta nunca pode ser separada da economia, como veremos em 2015.

Eu não lidero nada, mas pediram-me a chamada antecipação para 2015 no Negócios.

O desafio grego e os amigos portugueses


Hoje de manhã, encontrei no metro o meu velho colega Rui Zink. Ele trazia o jornal i debaixo do braço e, no meio da conversa torrencial que lhe é habitual, chamou-me atenção para vários artigos dessa edição. À minha frente, desfolhava com ansiedade o jornal  para mostrar um deles, sobre o Governo alemão e a Grécia.

Título: "Merkel disposta a dar castigo exemplar à Grécia para pôr a Europa na linha"

O que o abismava era o conjunto de ideias subjacentes ao título, nem sempre factos mas interpretações sobre factos, que até condiziam com as palavras do nome do seu autor: Diogo Vaz Pinto. Era todo um programa. Um pacote completo.

Para quem anda no jornalismo há umas décadas, nada disto é muito espantoso. Os meios de comunicação social não são independentes e puros: são uma amálgama de jornalistas, organizados hierarquicamente nem sempre pelo mérito e competência, cada vez mais levados a cumprir agendas impostas e que, mais tarde ou mais cedo, acabam por reflectir a cabeça de quem os dirige. E que, como dizia o Zink, muitas vezes até têm uns jornalistas de esquerda para mostrar que são pluralistas, geralmente homens sem queixo, que se calam quando os mandam calar-se, porque, no fundo, ninguém gosta de perder o emprego. E deu o exemplo da cadeia Fox.

Deixei-o à pressa porque estava atrasado, mas fiquei a pensar no i.

O título é, de facto, uma obra-prima. "Merkel disposta a dar" é uma conjunção de palavras plena de equívocos e conotações. "Castigo exemplar" revela a concordância com a ideia proto-segregadora de que os "tipos do sul" se comportam mal, porque se arriscam a eleger representantes contra a ideia de uma austeridade moralizadora que, por acaso, até é irracional porque economicamente ineficaz. E, finalmente, o remate: "Para pôr a Europa na linha". Nada como um castigo para endireitar os pobres de espírito e fracos de cabeça. E "na linha" entenda-se "em sentido".

E o texto é de ler com atenção: "Com o Syriza a liderar as sondagens a semanas das presidenciais, Berlim diz que desta vez não vai evitar que os gregos se lancem no abismo". No abismo? Haverá maior abismo como em Portugal onde, em 2 anos, se destruíram 500 mil postos de trabalho? "O ABC da nova democracia proposta pela Alemanha aos restantes membros da zona euro está a ser explicada novamente aos piores alunos da Europa: os gregos". Lá vêm os velhos estratagemas diplomáticos que, em 2010/11, de nada nos safaram: "Não somos gregos, não somos gregos". "A primeira regra é que só há um caminho para o futuro e esse é o da austeridade." Outra ideia muito repetida nos media: "Não há alternativa, façamos o que querem os mercados". "A chanceler Angela Merkel quis assegurar-se de que os alunos na última fila percebiam que não há margem para desvios, e sublinhou que se a Grécia escolher um governo que desafie a lei da austeridade, desta vez o país será deixado à sua sorte." Sem comentários.

E eu a pensar que a Alemanha até sente um calafrio pela espinha de cada vez que a Grécia desafia o todo-poderoso mandamento da austeridade e se mostra orgulhosamente disposta a defender cara a sua pele, contra um programa irracional. Não foi assim quando a Grécia quis referendar a permanência no euro e no dia seguinte foram tantas as pressões que a Grécia recuou? É toda a inversão enviesada da realidade.

Aliás, é sintomático que o porta-voz do governo alemão se apresse a negar tudo. E que jornais em Portugal logo façam eco dessa ideia (aqui e aqui).

De qualquer forma, o facto novo é que a Alemanha volta a usar a estratégia chantagista da saída da Grécia, alegando estar sob chantagem. E que, como diz Ricardo Cabral na sua crónica de ontem, esse novo patamar de jogo obriga os países do sul a estar preparados para ele. Porque, citando Otto von Bismark, "Glaube nie, was die Politik sagt, solange es nicht offiziell dementiert wurde"(“Never believe anything in politics until it has been officially denied”).

Ainda o caso BES

Em Agosto do ano passado publiquei, na versão portuguesa do Le Monde Diplomatique, um artigo sobre o "caso BES". Embora possa estar já desactualizado em alguns pormenores, penso que continua a manter pertinência. sobretudo nestes dias de comissão parlamentar de inquérito.



 De Espírito Santo a zumbi: história de uma crise que é de todos 

O ruído em torno do «caso Espírito Santo» torna o que se passa quase ininteligível ao comum dos mortais. Este era o «banco do regime», aquele que tinha sobrevivido à mais séria crise financeira internacional e nacional desde a Grande Depressão. Ao contrário da restante banca, não existia aqui a necessidade de injecção de fundos públicos, nem os casos de polícia que afectaram BPP, BPN ou BCP. Com interesses na economia portuguesa que iam das telecomunicações à saúde, passando pelo turismo, o Grupo Espírito Santo (GES) foi o resultado de uma extraordinária reorganização do capital nacional, iniciada com as privatizações do início dos anos 90 e devidamente apoiada por capital estrangeiro e pela integração financeira e monetária europeia. Num momento em que o pior da crise económica portuguesa parecia ter sido ultrapassado, todo o conglomerado implode sem que se perceba como nem porquê. Na verdade, a história da crise no GES é a história da crise de um modelo económico falido cujos efeitos negativos continuam a abater-se sobre todos nós. Perceber o que aconteceu é essencial para escapar à individualização de responsabilidades e para tentar repensar um novo modelo de desenvolvimento que retire o poder financeiro do centro da economia, desde logo nacional.

Três elementos para compreender a crise no Espírito Santo

 Ainda que abundante, a informação disponível sobre o GES e o Banco Espírito Santo (BES) está longe de ser clara. Não surpreende. A maioria dos meios de comunicação social tem sido, no mínimo, cúmplice com as sucessivas cortinas de fumo criadas por poderes privados e públicos em torno do caso. Apresento três elementos de análise que nos podem ajudar a perceber melhor como é que este grupo implodiu.

 1. Os activos não financeiros

O primeiro elemento reside nos activos não financeiros controlados pelo GES. Constrangido, por um lado, por uma economia estagnada desde 2001, mas beneficiando, por outro lado, de acesso a capital a baixas taxas de juro, graças à integração monetária europeia, o Grupo Espírito Santo expandiu-se para novos sectores nacionais e, sobretudo, para investimentos um pouco por todo mundo, desde o gado no Paraguai à soja em Moçambique, passando pela exploração geo-sísmica no Brasil. Este modelo aparentemente lucrativo baseava-se em endividamento externo português e em investimentos no estrangeiro com lucros dificilmente contabilizados no nosso país graças à complexa engenharia financeira subjacente ao grupo. O Grupo e Família Espírito Santo beneficiavam da explosão financeira permitida pela política económica portuguesa e europeia, promotora da liberalização financeira em torno de uma moeda forte crescentemente utilizada como reserva internacional. No entanto, as estratégias de internacionalização apoiadas no euro penalizavam a economia nacional. À imagem de outros grandes grupos económicos portugueses, o investimento foi sobretudo conseguido através de um extraordinário endividamento externo, cujo impacto agregado na economia terá provavelmente sido a principal causa da actual crise económica que o país atravessa.

Como é que o GES faliu é uma pergunta ainda sem resposta. Sabemos só que, devido à crise financeira internacional iniciada em 2008, e com o refinanciamento a ficar mais caro neste contexto, estes investimentos internacionais começaram a acumular perdas. Com enormes necessidades de refinanciamento da sua dívida, maioritariamente de curto prazo, o Grupo recorreu ao seu Banco, quer directamente, quer através dos seus clientes. A exposição (montante do crédito concedido) do banco aumentou, acabando por o condenar.

 2. O negócio bancário nacional

O segundo elemento para se perceber a crise no GES encontra-se na jóia da coroa: o BES. O modelo de negócio do Banco Espírito Santo em Portugal não divergiu da restante banca nacional. Beneficiando do abundante crédito a baixas taxas de juro que o euro permitia, o BES endividou-se nos mercados internacionais (sobretudo europeus) para financiar a expansão do seu crédito a empresas e particulares portugueses. Este modelo foi particularmente dirigido, nos anos 1990 e 2000, ao crédito imobiliário e à construção, contribuindo assim para a expansão de um sector não exportador e consumidor de importações. O contributo deste negócio, aparentemente imbatível, para o crescente endividamento privado nacional no exterior é incontornável. Financiava-se a construção e, depois, a compra de habitação, tendo como garantia final o salário dos trabalhadores portugueses agora endividados. 

Com a crise financeira internacional, o BES e a restante banca portuguesa viram-se com uma enorme dívida que não conseguiam refinanciar nos mercados. A solução foi o financiamento público, feito através do Banco Central Europeu (BCE), quer nas suas operações de curto prazo (fornecimento de liquidez), quer nas operações de longo prazo (LTRO) de final de 2011 e 2012. O BES passou a ser um banco com mais de 10% dos seus activos financiados através destas últimas operações.

Entretanto, com a crise a afectar famílias e empresas portuguesas, o crédito malparado aumentou e com isso as perdas do banco. Mas o BES parecia uma rocha face às sucessivas ondas da tempestade internacional. Com necessidade de recapitalização face às perdas, o banco conseguiu novo capital em 2012 (a que não deve ser alheia a poderosa rede de contactos da família que o controlava) e, no final desse ano, foi mesmo o primeiro banco a conseguir financiar-se nos mercados internacionais em 400 milhões de dólares de obrigações (embora estas fossem garantidas pelo banco brasileiro Bradesco, seu accionista de referência). O banco mostrava uma robustez só justificável por uma rede familiar de confiança com dimensão internacional e por um complexo esquema de financiamento fraudulento que permitiu ir adiando assunção de perdas.

3. A banca internacional

A estratégia de internacionalização do grupo foi feita sobretudo a montante do banco, mas também a jusante, através da expansão do BES em vários países: do Panamá à Líbia, passando pelos Estados Unidos, onde abrigara as contas secretas do ditador chileno Augusto Pinochet. Contudo, foi em África que o BES encontrou a sua «árvore das patacas», com resultados positivos nos piores anos de crise em Portugal (91 milhões em 2011, 30 milhões em 2012). O negócio angolano revelou-se, entretanto, desastroso. Boa parte do crédito está malparado (6 mil milhões de euros) e, aparentemente, ligado ao presidente do BES Angola de 2001 a 2013, Álvaro Sobrinho, cujos investimentos em Portugal vão desde a imprensa ao futebol. Só uma garantia prestada pelo governo angolano (por agora, aparentemente, revogada) impediu que este banco se afundasse. De qualquer forma, o capital detido pelo BES no BES Angola parece estar perdido e os empréstimos concedidos à sua filial, no valor de 3 mil milhões de euros e integrados no «banco novo» Novo Banco, dependem da boa vontade do governo angolano.

Finalmente, embora estando no Grupo, mas não sendo parte do Banco, aparecem hoje instituições financeiras até agora desconhecidas do comum dos portugueses, como o banco suíço Banque Privée Espírito Santo – onde as fortunas de empresas e indivíduos eram geridas longe do olhar das autoridades tributárias portuguesas –, agora na falência devido aos investimentos feitos em títulos de dívida de empresas do GES.

O fim de um império

O grupo Espírito Santo e o seu banco acumularam um vasto império financeiro ao longo das últimas décadas graças à sua integração internacional, que se revelou demasiado frágil face à crise financeira. O seu poder nas mais diferentes esferas da sociedade portuguesa era indiscutível: das artes ao poder político. Curiosamente, não foi a crise per se que fez o copo transbordar – nem o poder político – mas sim uma luta de poder entre famílias da burguesia portuguesa. Com a luta em torno do controlo da Semapa na família Queiroz Pereira, a família Espírito Santo participou na contenda contra accionistas do seu próprio grupo, nomeadamente Pedro Queiroz Pereira. Com informação privilegiada, este acumulou um vasto dossiê de suspeitas e irregularidades no Grupo Espírito Santo, entregue em 2013 no Banco de Portugal, até aí imune a todas as múltiplas suspeitas envolvendo o grupo (do caso Monte Branco ao Portucale). A complexa estrutura financeira do grupo escondia esquemas de financiamento circular ao próprio grupo, desde a crise financeira internacional de 2008.

Com perdas crescentes e novas regras prudenciais no que toca à gestão de fundos e avaliações de «stress» do BCE a aproximarem-se, a real fragilidade do grupo ficou à vista de todos. Primeiro foram as vendas de participações em empresas, como na ZON (hoje NOS); depois a venda recorde de imóveis em carteira do BES; finalmente, a abertura de capital de empresas do grupo como a Espírito Santo Saúde ou a Espírito Santo Control. Durante meses, todas estas operações foram apresentadas pela generalidade da imprensa como fazendo parte da normalidade, senão mesmo como boas oportunidades de investimento. Não foi suficiente. Sem refinanciamento, o grupo começou a desmoronar-se, primeiro nas empresas de topo do grupo, depois no centro da sua actividade, o BES. Não houve uma voz nos media portugueses que nos alertasse para os riscos. Pelo contrário, poder político, Banco de Portugal, auditores e generalidade da imprensa asseguravam a robustez do banco face a umas difusas perdas no sector não financeiro. Só com a saída de Ricardo Salgado da administração do BES se começou a perceber a dimensão do descalabro financeiro que veio a culminar na «resolução» (falência) do banco.

O modelo de intervenção

A resolução do banco segue um modelo que procura isolar legalmente os activos ditos tóxicos (crédito malparado) dos activos «bons». Contudo, ao retirar-se tais «activos tóxicos» do balanço do Novo Banco, cria-se um buraco no balanço da nova instituição, só colmatado, nas actuais condições, por novo capital público. Este modelo de «banco mau»/«banco bom» não é novo e já foi testado com bons resultados, nomeadamente aquando da crise bancária na Suécia, no início dos anos 90. Procura-se identificar rapidamente as fontes de perdas, expurgá-las do balanço e assim permitir que a concessão de crédito à economia não fique penalizada por maus resultados futuros.

No entanto, o actual modelo de resolução bancária deixa interrogações. Por uma incrível coincidência, os montantes públicos anunciados para recapitalização (4,5 mil milhões) ficam pouco abaixo dos fundos disponíveis para esse fim (6 mil milhões). Assume-se aqui que o reconhecimento de perdas extraordinárias ficará, grosso modo, pelos resultados anunciados no segundo semestre e que reduziram os rácios de capital do BES a quase metade. Por outro lado, o novo veículo utilizado como proprietário do novo banco «bom», o fundo de resolução, dependerá quase exclusivamente de capitais públicos, com participação marginal das instituições financeiras portuguesas. Embora o governo assegure que estes capitais públicos estarão garantidos pelo sistema financeiro como um todo, fica por saber se terá capacidade para colmatar potenciais perdas e seus efeitos na economia. Em suma, a dimensão do BES na economia portuguesa pode ser demasiado grande para não envolver custos directos para o Estado.

Acresce que o «mau banco», para onde serão transferidos os activos de cobrança duvidosa, embora implique, e bem, profundas perdas para os seus accionistas, dificilmente deixará incólume a restante economia nacional, nomeadamente os particulares e empresas (sobretudo do sector financeiro) que investiram em acções e obrigações do BES (até aqui vistas como seguras). As perdas registadas terão óbvios efeitos na posição financeira dos investidores, não se sabendo ainda até onde poderá ir o contágio da crise no maior grupo financeiro privado português. Os efeitos no consumo, investimento e, consequentemente, emprego serão incontornáveis. Para não falar já dos efeitos que poderá ter para os trabalhadores do grupo e do banco.

Finalmente, com estes efeitos de contágio e com a reestruturação profunda do maior banco privado português, esta «resolução» terá certamente efeitos no mercado de crédito nacional. Sem uma intervenção robusta e maciça do Estado via Banco de Portugal e Caixa Geral de Depósitos, em articulação com a restante banca nacional, o crédito em Portugal pode tornar-se ainda mais difícil do que é hoje. As consequências para uma economia capitalista moderna de um novo racionamento de crédito podem ser graves, com efeitos no crescimento e no emprego. Poucas foram as crises bancárias desta dimensão que não tiveram efeitos profundamente negativos na economia. Este é pois o principal risco que hoje enfrentamos, num contexto de uma economia devastada por anos de austeridade.

Olhar para o futuro

 A falência do GES não é um mero caso de polícia, mas a demonstração da falência de um modelo económico usado pelas elites nacionais que, beneficiando da integração monetária, usaram o país como plataforma giratória de capitais com efeitos graves na estrutura económica. A liberdade de circulação de capitais e a liberalização financeira impostas no quadro da União Económica e Monetária produziram uma economia financeirizada semiperiférica onde a acumulação dos grandes grupos se fez nos sectores de bens não-transaccionáveis e na expansão internacional através de um endividamento recorde. Urge, pois, «desfinanceirizar» a nossa economia, recuperando instrumentos financeiros e monetários que permitam que o sector financeiro faça uma afectação do capital ao serviço do desenvolvimento e do emprego. A introdução de controlos de capitais, a taxação de transacções e uma regulação efectiva de produtos e serviços financeiros, passando pela proibição de venda no retalho de muitos deles (como papel comercial de empresas financeiras fora da alçada do Banco de Portugal), são parte do leque de opções disponíveis. Seria, todavia, uma mistificação apoiar tais medidas no actual quadro da integração monetária europeia. Só rompendo com este quadro serão estas medidas concretizáveis.

Mais preocupante é a emergência dentro do movimento social do argumento «protoliberal» de circunstância de «nem mais um cêntimo para a banca», que ignora o papel do sistema financeiro na economia e prefere adoptar a infeliz ideia da pura falência da banca privada. Aprendemos com esta crise que o sector bancário, devido ao seu papel, é um negócio que não pode ir à falência, que depende de dinheiros públicos e que tem um papel essencial nos nossos destinos colectivos. Não pode ser privado. O controlo público do sector bancário, a sua especialização e a sua reorientação de negócio num ambiente de concorrência altamente limitada é a única solução face a um sector bancário disfuncional. No caso BES, como já nos anteriores casos, deve-se exigir a penalização dos accionistas, mas também o controlo efectivo da nova banca e a sua colocação ao serviço da economia, dirigindo o crédito para os sectores democraticamente apontados como prioritários. Já o fizemos uma vez e com melhores resultados.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Nova carta à Alemanha


Senhora Merkel, Chancelerina da Alemanha

Em novembro de 2012 por ocasião de uma visita sua a Portugal escrevi-lhe uma carta em que lhe pedia que desse conhecimento aos seus compatriotas dos riscos em que os fazia incorrer com os resgates à Grécia, à Irlanda e a Portugal.

Pedia-lhe que lhes dissesse que “os empréstimos concedidos à Grécia, à Irlanda e a Portugal são na realidade uma dívida imposta aos povos destes países para “resgatar” os vossos bancos”. Isto que então lhe dizia tornou-se entretanto cristalino ao ponto de ser quase oficialmente reconhecido.

Dizia-lhe também que em consequência da austeridade “estes países, chegarão ao ponto em que terão de suspender o serviço da dívida [com] perdas pesadas para todos, contribuintes alemães incluídos”. Pois bem, a avaliar pelo que publicam os jornais do seu país esse ponto está cada vez mais próximo.

Segundo esses jornais a senhora conseguiu vencer o risco de “contágio” da Grécia. A Grécia deixou de contar. A Irlanda e Portugal estão “reabilitados”.

Dispenso-me de comentar o recurso ao horrível verbo “reabilitar”. Digo-lhe só que se engana. Engana-se duplamente e engana os seus concidadãos. Nem a Grécia deixou de contar, nem Irlanda e Portugal estão a salvo.

É verdade que a Grécia, Portugal e a Irlanda já não devem quase nada aos bancos do seu país. Os bancos do seu país, estão, não diria a salvo, mas muito mais protegidos. No entanto, em contrapartida, a Grécia, Portugal e a Irlanda devem muitíssimo aos fundos europeus garantidos pelos impostos de todos os europeus, incluindo os dos cidadãos do seu país.

É verdade também que as taxas de juro da dívida portuguesa e irlandesa são de momento baixas, mas não é menos verdade que qualquer abanão vindo da Grécia, como vimos no mês passado, tende a quebrar esse equilíbrio, vedando de novo o acesso pelo menos de Portugal ao mercado de capitais.

Vemos assim que não lhe bastou omitir a verdade uma vez. A senhora na realidade sabe que qualquer solavanco, seja ele na Grécia, seja ele em Espanha, seja ele na Irlanda, seja ele em Itália, será suficiente para desencadear uma reação em cadeia. No entanto, para tentar submeter a democracia Grega, dá-lhe jeito fingir que não é assim. Dessa forma volta a faltar à verdade ao esconder as enormes perdas para os contribuintes alemães que decorreriam de um agravamento da tragédia Grega por si provocado.

Mais uma vez senhora Merkel lamento a amargura que transparece das minhas palavras. A senhora está presidir a um desastre europeu de grandes proporções. E o mais absurdo é que nem sequer o está a fazer em nome do interesse do povo alemão.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Ensinar a pensar

António Gama Mendes (1948-2014)

As ciências sociais portuguesas perderam no último dia de 2014 um dos seus mais fascinantes geógrafos. António Gama Mendes foi professor na FLUC e, até há pouco tempo, investigador do CES, centro que ajudou a criar. Dedicou a sua vida como professor e investigador a um vasto campo de matérias, que se cruzavam em permanência: da análise das correntes do pensamento geográfico à Geografia Urbana e Industrial, da epistemologia ao estudo do território como espaço vivido, das questões do desenvolvimento à Geografia Política ou do tempo livre. A ele se devem os mais relevantes trabalhos sobre urbanização difusa em Portugal, assentes na ideia de que, muito para lá de um processo físico, a urbanização é sobretudo um processo sócio-territorial, económico e cultural, um processo de metamorfose das relações sociais, das economias e dos modos de vida.

Fui aluno do António Gama, na disciplina de Geografia Económica e Social, no final da década de oitenta. Ele desarrumava com desconcertante naturalidade os muros que separam domínios científicos e ramificações da ciência geográfica (a começar, desde logo, pela clássica dicotomia entre o que é físico e humano em Geografia). Se os campos de conhecimento fossem lugares, o Gama tratava, em cada aula, de os ligar entre si, conduzindo-nos em viagens imprevisíveis mas que formavam, à chegada, um todo com sentido. Numa casa onde tantas vezes dominavam a memorização e a catalogação estéril, ou um descritivismo inócuo (por vezes associado ao deslumbramento cego pelas metodologias quantitativas), o Gama tratava de nos ensinar a enquadrar teorias e técnicas de análise nos seus referenciais epistemológicos, na sua genealogia científica, problematizando sempre. Porque ele sabia muito bem o que é essencial que as instituições de ensino superior façam: ensinar a pensar.

O António Gama era um homem profundamente culto e profundamente bom. Detentor de um apuradíssimo sentido de humor, revelava para com quem se cruzava uma afabilidade, humildade e generosidade infinitas. Numa universidade ainda tão atreita ao culto feudal das hierarquias e a um certo cerimonialismo empoeirado, o Gama cultivava, como poucos, a proximidade, o fácil acesso e uma disponibilidade permanente e indiscriminada. Fazendo com que nele facilmente se encontrasse, para além do mestre, um amigo leal.

(Assumimos neste blogue, e bem, a ideia de que as nossas vidas pessoais não têm interesse nenhum. Não posso contudo, porque perdi um amigo, um queridíssimo professor e amigo, a quem muito devo, deixar de dizer que, sem ele, a minha trajectória de vida, profissional, pessoal e científica, ao longo dos últimos vinte anos, tornar-se-ia ininteligível).

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Sem soberania monetária não há democracia


Para percebermos o que nos está a acontecer:

"Na Europa, e especialmente na Itália, ainda não se entende a importância crucial da moeda na economia, na política e na democracia. Infelizmente, o erro é compartilhado por boa parte da esquerda. Toda a gente entende (pelo menos aparentemente) que não há democracia política sem Estado democrático, ou seja, sem as instituições do Estado que garantem a democracia e respondem pela soberania popular. Mas ainda poucos percebem que não há um Estado sem uma moeda nacional. Proponho o silogismo: não há democracia sem Estado; e não há um Estado sem moeda. Portanto, não há democracia se não houver uma moeda nacional. Infelizmente e paradoxalmente, apenas os partidos populistas e os chauvinistas antidemocratas parecem ter entendido esta verdade simples e incontestável. A moeda representa a comunidade nacional. Do ponto de vista económico, a moeda é o símbolo mais concreto da unidade, força, e também do bem-estar de uma nação. Não surpreendentemente, a primeira coisa que uma nação [Estado-nação] institui, quando nasce, é uma moeda nacional." (Henry Grazzini, MicroMega)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O ano de viver corajosamente


Tudo aponta para que 2015 seja o ano em que os povos da Europa começarão finalmente a enfrentar a sério as estruturas que os têm subjugado. Será um ano que exigirá grande coragem.

É cada vez mais provável que 2015 venha a representar um ano de viragem para o futuro da Europa. Desde que a actual crise político-económica teve início, em 2007-2008, os destinos políticos europeus, tanto à escala europeia como nacional, têm sido sempre conduzidos por partidos dos dois pólos do actual centro político: conservadores ou sociais-democratas. Acontece que estes dois pólos são praticamente indistinguíveis face às questões fundamentais que determinam esta crise. No presente contexto de encruzilhada sistémica, mais importante do que o muito que os distingue (a visão da política social, a maior ou menor prontidão para privatizar serviços públicos, as posições em matéria de direitos civis) é o muito em que convergem (a aquiescência perante o capital, designadamente financeiro, materializada na aceitação do Tratado Orçamental europeu, da arquitectura do Euro ou da intocabilidade da dívida).
Esta convergência dos dois pólos do centro político tradicional em relação às questões fundamentais que determinam a crise tem produzido grande devastação económica e social, que tem sido especialmente acentuada na periferia mas que não deixou as economias do centro intocadas. Há actualmente mais de 26 milhões de desempregados no espaço da União Europeia, dos quais 18,5 milhões na zona Euro. O desemprego jovem atinge 54% em Espanha, 50% na Grécia, 34% em Portugal. A pobreza, absoluta e relativa, tem alastrado a um ponto que julgávamos já impossível na Europa. A crise eterniza-se, sem fim à vista, enquanto os direitos dos cidadãos não param de reduzir-se.
Toda esta devastação e todo este sofrimento eram e são evitáveis. Não são o resultado de um qualquer deus ex-machina, mas de escolhas políticas.

Gustav Mahler: The Titan (feierlich und gemessen, ohne zu schleppen)