De Espírito Santo a zumbi: história de uma crise que é de todos
O ruído em torno do «caso Espírito Santo» torna o que se passa quase ininteligível ao comum dos mortais. Este era o «banco do regime», aquele que tinha sobrevivido à mais séria crise financeira internacional e nacional desde a Grande Depressão. Ao contrário da restante banca, não existia aqui a necessidade de injecção de fundos públicos, nem os casos de polícia que afectaram BPP, BPN ou BCP. Com interesses na economia portuguesa que iam das telecomunicações à saúde, passando pelo turismo, o Grupo Espírito Santo (GES) foi o resultado de uma extraordinária reorganização do capital nacional, iniciada com as privatizações do início dos anos 90 e devidamente apoiada por capital estrangeiro e pela integração financeira e monetária europeia. Num momento em que o pior da crise económica portuguesa parecia ter sido ultrapassado, todo o conglomerado implode sem que se perceba como nem porquê. Na verdade, a história da crise no GES é a história da crise de um modelo económico falido cujos efeitos negativos continuam a abater-se sobre todos nós. Perceber o que aconteceu é essencial para escapar à individualização de responsabilidades e para tentar repensar um novo modelo de desenvolvimento que retire o poder financeiro do centro da economia, desde logo nacional.
Três elementos para compreender a crise no Espírito Santo
Ainda que abundante, a informação disponível sobre o GES e o Banco Espírito Santo (BES) está longe de ser clara. Não surpreende. A maioria dos meios de comunicação social tem sido, no mínimo, cúmplice com as sucessivas cortinas de fumo criadas por poderes privados e públicos em torno do caso. Apresento três elementos de análise que nos podem ajudar a perceber melhor como é que este grupo implodiu.
1. Os activos não financeiros
O primeiro elemento reside nos activos não financeiros controlados pelo GES. Constrangido, por um lado, por uma economia estagnada desde 2001, mas beneficiando, por outro lado, de acesso a capital a baixas taxas de juro, graças à integração monetária europeia, o Grupo Espírito Santo expandiu-se para novos sectores nacionais e, sobretudo, para investimentos um pouco por todo mundo, desde o gado no Paraguai à soja em Moçambique, passando pela exploração geo-sísmica no Brasil. Este modelo aparentemente lucrativo baseava-se em endividamento externo português e em investimentos no estrangeiro com lucros dificilmente contabilizados no nosso país graças à complexa engenharia financeira subjacente ao grupo. O Grupo e Família Espírito Santo beneficiavam da explosão financeira permitida pela política económica portuguesa e europeia, promotora da liberalização financeira em torno de uma moeda forte crescentemente utilizada como reserva internacional. No entanto, as estratégias de internacionalização apoiadas no euro penalizavam a economia nacional. À imagem de outros grandes grupos económicos portugueses, o investimento foi sobretudo conseguido através de um extraordinário endividamento externo, cujo impacto agregado na economia terá provavelmente sido a principal causa da actual crise económica que o país atravessa.
Como é que o GES faliu é uma pergunta ainda sem resposta. Sabemos só que, devido à crise financeira internacional iniciada em 2008, e com o refinanciamento a ficar mais caro neste contexto, estes investimentos internacionais começaram a acumular perdas. Com enormes necessidades de refinanciamento da sua dívida, maioritariamente de curto prazo, o Grupo recorreu ao seu Banco, quer directamente, quer através dos seus clientes. A exposição (montante do crédito concedido) do banco aumentou, acabando por o condenar.
2. O negócio bancário nacional
O segundo elemento para se perceber a crise no GES encontra-se na jóia da coroa: o BES. O modelo de negócio do Banco Espírito Santo em Portugal não divergiu da restante banca nacional. Beneficiando do abundante crédito a baixas taxas de juro que o euro permitia, o BES endividou-se nos mercados internacionais (sobretudo europeus) para financiar a expansão do seu crédito a empresas e particulares portugueses. Este modelo foi particularmente dirigido, nos anos 1990 e 2000, ao crédito imobiliário e à construção, contribuindo assim para a expansão de um sector não exportador e consumidor de importações. O contributo deste negócio, aparentemente imbatível, para o crescente endividamento privado nacional no exterior é incontornável. Financiava-se a construção e, depois, a compra de habitação, tendo como garantia final o salário dos trabalhadores portugueses agora endividados.
Com a crise financeira internacional, o BES e a restante banca portuguesa viram-se com uma enorme dívida que não conseguiam refinanciar nos mercados. A solução foi o financiamento público, feito através do Banco Central Europeu (BCE), quer nas suas operações de curto prazo (fornecimento de liquidez), quer nas operações de longo prazo (LTRO) de final de 2011 e 2012. O BES passou a ser um banco com mais de 10% dos seus activos financiados através destas últimas operações.
Entretanto, com a crise a afectar famílias e empresas portuguesas, o crédito malparado aumentou e com isso as perdas do banco. Mas o BES parecia uma rocha face às sucessivas ondas da tempestade internacional. Com necessidade de recapitalização face às perdas, o banco conseguiu novo capital em 2012 (a que não deve ser alheia a poderosa rede de contactos da família que o controlava) e, no final desse ano, foi mesmo o primeiro banco a conseguir financiar-se nos mercados internacionais em 400 milhões de dólares de obrigações (embora estas fossem garantidas pelo banco brasileiro Bradesco, seu accionista de referência). O banco mostrava uma robustez só justificável por uma rede familiar de confiança com dimensão internacional e por um complexo esquema de financiamento fraudulento que permitiu ir adiando assunção de perdas.
3. A banca internacional
A estratégia de internacionalização do grupo foi feita sobretudo a montante do banco, mas também a jusante, através da expansão do BES em vários países: do Panamá à Líbia, passando pelos Estados Unidos, onde abrigara as contas secretas do ditador chileno Augusto Pinochet. Contudo, foi em África que o BES encontrou a sua «árvore das patacas», com resultados positivos nos piores anos de crise em Portugal (91 milhões em 2011, 30 milhões em 2012). O negócio angolano revelou-se, entretanto, desastroso. Boa parte do crédito está malparado (6 mil milhões de euros) e, aparentemente, ligado ao presidente do BES Angola de 2001 a 2013, Álvaro Sobrinho, cujos investimentos em Portugal vão desde a imprensa ao futebol. Só uma garantia prestada pelo governo angolano (por agora, aparentemente, revogada) impediu que este banco se afundasse. De qualquer forma, o capital detido pelo BES no BES Angola parece estar perdido e os empréstimos concedidos à sua filial, no valor de 3 mil milhões de euros e integrados no «banco novo» Novo Banco, dependem da boa vontade do governo angolano.
Finalmente, embora estando no Grupo, mas não sendo parte do Banco, aparecem hoje instituições financeiras até agora desconhecidas do comum dos portugueses, como o banco suíço Banque Privée Espírito Santo – onde as fortunas de empresas e indivíduos eram geridas longe do olhar das autoridades tributárias portuguesas –, agora na falência devido aos investimentos feitos em títulos de dívida de empresas do GES.
O fim de um império
O grupo Espírito Santo e o seu banco acumularam um vasto império financeiro ao longo das últimas décadas graças à sua integração internacional, que se revelou demasiado frágil face à crise financeira. O seu poder nas mais diferentes esferas da sociedade portuguesa era indiscutível: das artes ao poder político. Curiosamente, não foi a crise per se que fez o copo transbordar – nem o poder político – mas sim uma luta de poder entre famílias da burguesia portuguesa. Com a luta em torno do controlo da Semapa na família Queiroz Pereira, a família Espírito Santo participou na contenda contra accionistas do seu próprio grupo, nomeadamente Pedro Queiroz Pereira. Com informação privilegiada, este acumulou um vasto dossiê de suspeitas e irregularidades no Grupo Espírito Santo, entregue em 2013 no Banco de Portugal, até aí imune a todas as múltiplas suspeitas envolvendo o grupo (do caso Monte Branco ao Portucale). A complexa estrutura financeira do grupo escondia esquemas de financiamento circular ao próprio grupo, desde a crise financeira internacional de 2008.
O modelo de intervenção
A resolução do banco segue um modelo que procura isolar legalmente os activos ditos tóxicos (crédito malparado) dos activos «bons». Contudo, ao retirar-se tais «activos tóxicos» do balanço do Novo Banco, cria-se um buraco no balanço da nova instituição, só colmatado, nas actuais condições, por novo capital público. Este modelo de «banco mau»/«banco bom» não é novo e já foi testado com bons resultados, nomeadamente aquando da crise bancária na Suécia, no início dos anos 90. Procura-se identificar rapidamente as fontes de perdas, expurgá-las do balanço e assim permitir que a concessão de crédito à economia não fique penalizada por maus resultados futuros.
No entanto, o actual modelo de resolução bancária deixa interrogações. Por uma incrível coincidência, os montantes públicos anunciados para recapitalização (4,5 mil milhões) ficam pouco abaixo dos fundos disponíveis para esse fim (6 mil milhões). Assume-se aqui que o reconhecimento de perdas extraordinárias ficará, grosso modo, pelos resultados anunciados no segundo semestre e que reduziram os rácios de capital do BES a quase metade. Por outro lado, o novo veículo utilizado como proprietário do novo banco «bom», o fundo de resolução, dependerá quase exclusivamente de capitais públicos, com participação marginal das instituições financeiras portuguesas. Embora o governo assegure que estes capitais públicos estarão garantidos pelo sistema financeiro como um todo, fica por saber se terá capacidade para colmatar potenciais perdas e seus efeitos na economia. Em suma, a dimensão do BES na economia portuguesa pode ser demasiado grande para não envolver custos directos para o Estado.
Acresce que o «mau banco», para onde serão transferidos os activos de cobrança duvidosa, embora implique, e bem, profundas perdas para os seus accionistas, dificilmente deixará incólume a restante economia nacional, nomeadamente os particulares e empresas (sobretudo do sector financeiro) que investiram em acções e obrigações do BES (até aqui vistas como seguras). As perdas registadas terão óbvios efeitos na posição financeira dos investidores, não se sabendo ainda até onde poderá ir o contágio da crise no maior grupo financeiro privado português. Os efeitos no consumo, investimento e, consequentemente, emprego serão incontornáveis. Para não falar já dos efeitos que poderá ter para os trabalhadores do grupo e do banco.
Finalmente, com estes efeitos de contágio e com a reestruturação profunda do maior banco privado português, esta «resolução» terá certamente efeitos no mercado de crédito nacional. Sem uma intervenção robusta e maciça do Estado via Banco de Portugal e Caixa Geral de Depósitos, em articulação com a restante banca nacional, o crédito em Portugal pode tornar-se ainda mais difícil do que é hoje. As consequências para uma economia capitalista moderna de um novo racionamento de crédito podem ser graves, com efeitos no crescimento e no emprego. Poucas foram as crises bancárias desta dimensão que não tiveram efeitos profundamente negativos na economia. Este é pois o principal risco que hoje enfrentamos, num contexto de uma economia devastada por anos de austeridade.
Olhar para o futuro
A falência do GES não é um mero caso de polícia, mas a demonstração da falência de um modelo económico usado pelas elites nacionais que, beneficiando da integração monetária, usaram o país como plataforma giratória de capitais com efeitos graves na estrutura económica. A liberdade de circulação de capitais e a liberalização financeira impostas no quadro da União Económica e Monetária produziram uma economia financeirizada semiperiférica onde a acumulação dos grandes grupos se fez nos sectores de bens não-transaccionáveis e na expansão internacional através de um endividamento recorde. Urge, pois, «desfinanceirizar» a nossa economia, recuperando instrumentos financeiros e monetários que permitam que o sector financeiro faça uma afectação do capital ao serviço do desenvolvimento e do emprego. A introdução de controlos de capitais, a taxação de transacções e uma regulação efectiva de produtos e serviços financeiros, passando pela proibição de venda no retalho de muitos deles (como papel comercial de empresas financeiras fora da alçada do Banco de Portugal), são parte do leque de opções disponíveis. Seria, todavia, uma mistificação apoiar tais medidas no actual quadro da integração monetária europeia. Só rompendo com este quadro serão estas medidas concretizáveis.
Mais preocupante é a emergência dentro do movimento social do argumento «protoliberal» de circunstância de «nem mais um cêntimo para a banca», que ignora o papel do sistema financeiro na economia e prefere adoptar a infeliz ideia da pura falência da banca privada. Aprendemos com esta crise que o sector bancário, devido ao seu papel, é um negócio que não pode ir à falência, que depende de dinheiros públicos e que tem um papel essencial nos nossos destinos colectivos. Não pode ser privado. O controlo público do sector bancário, a sua especialização e a sua reorientação de negócio num ambiente de concorrência altamente limitada é a única solução face a um sector bancário disfuncional. No caso BES, como já nos anteriores casos, deve-se exigir a penalização dos accionistas, mas também o controlo efectivo da nova banca e a sua colocação ao serviço da economia, dirigindo o crédito para os sectores democraticamente apontados como prioritários. Já o fizemos uma vez e com melhores resultados.
5 comentários:
Alguém, que porventura tenha acompanhado mais amiúde a comissão parlamentar de inquérito, se é que a informação foi dada, me sabe esclarecer de quanto foi a fuga de depósitos do BES a partir do momento que em se desencadeou publicamente a crise do Banco?
A jornalista Cristina Ferreira, num dos seus trabalhos aturados sobre a matéria no Público, noticiava que, de junho até agosto, se falava em saídas de quase 10 mil milhões de euros, mas que o valor nunca fora confirmado.
Foi-o entretanto? Qual é o montante, mais precisamente?
Embora lateral ao apuramento de responsabilidades, isto é altamente relevante, porque dá uma dimensão do tipo de fuga a que podem estar sujeitos os bancos portugueses, por exemplo num processo como o que a Grécia está a atravessar.
Esta informação, a existir, fundamentada, seria muito bem vinda.
O seu poder nas mais diferentes esferas da sociedade portuguesa era indiscutível: das artes ao poder político."The financial services industry is now the most powerful political force in Britain and the US."[Kay's 2009].O seu poder permitiu à indústria financeira extrair dos contribuintes valores de uma magnitude extraordinária:a captura financeira dos governos pelas oligarquias é agora abertamente praticada com a cumplicidade activa de todas as instituições:"a state of affairs that more typically describes emerging markets and is at the center of many emerging-market crises. If the IMF's staff could speak freely about the U.S., it would tell us what it tells all countries in this situation:recovery will fail unless we break the financial oligarchy that is blocking essential reform.And if we are to prevent a true depression, we're running out of time. Sublinho deum relatório recente do FMI sobre os circuitos do capital:"Banks which are global in life are national in death" Stijn Claessens and Neeltje van Horen 2014"
Na citação deste artigo, gostaria de saber o nome do Autor...uma questão de respeito intelectual!
O artigo é obviamente da minha autoria...
Aproveitando o comentário dum anónimo,deixe-me parabenizá-lo pelo artigo Caro Nuno Teles
De
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