segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Os salários são baixos por causa da "rigidez" do mercado de trabalho?

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Numa entrevista publicada no mês passado, a propósito da proposta de alteração à legislação laboral apresentada pelo governo, a ministra do Trabalho explicou que o objetivo é “flexibilizar” a lei para “promover a competitividade da economia e aumentar a produtividade”. De acordo com a ministra, “o preconceito contra a flexibilização em Portugal é aquilo que tem conduzido a salários baixos”.

Esta posição baseia-se na ideia, frequentemente ouvida nas discussões sobre a economia, de que a proteção laboral é um entrave à atividade económica. Normalmente, o argumento utilizado é o de que a proteção excessiva desencoraja as empresas a contratar trabalhadores de forma permanente com o receio de que não possam despedi-los em caso de redução da atividade. A flexibilidade para contratar em períodos de crescimento e despedir em períodos de crise permitiria às empresas ajustarem-se ao ciclo económico e manter a competitividade.

Nesta linha, a reforma laboral tem sido defendida com base em três argumentos: o de que o mercado de trabalho português é demasiado “rígido”, o de que a flexibilidade melhora o desempenho da economia e o de que a falta de flexibilidade tem impedido o crescimento dos salários. Tendo em conta o peso que estes argumentos têm tido no debate público, vale a pena analisar cada um deles em detalhe.


O mercado de trabalho português é demasiado rígido?

A ideia de que Portugal tem um mercado de trabalho demasiado rígido não é nova. Na verdade, essa tem sido a justificação para as sucessivas reformas laborais aprovadas ao longo dos últimos vinte cinco anos e que, salvo algumas exceções, foram no sentido de introduzir maior flexibilidade. Ainda assim, o facto de Portugal ser um dos países com maior grau de “rigidez” no indicador da OCDE sobre a proteção do emprego é usado como argumento para defender novas reformas.

É útil perder algum tempo com este argumento. O indicador construído pela OCDE pode ter um valor entre 0 e 6, com valores mais altos a indicarem maior proteção do emprego. O indicador inclui duas dimensões que são medidas separadamente: o grau de proteção contra despedimento individual sem justa causa e o grau de proteção associado aos despedimentos coletivos. A OCDE também publica um outro indicador que mede a facilidade com que se podem estabelecer contratos a prazo em cada país.

Para medir a facilidade de despedir um trabalhador, a OCDE considera um conjunto alargado de indicadores: os procedimentos exigidos em cada país para o despedimento, o valor previsto para as indemnizações, o período de aviso que tem de ser respeitado, os critérios para avaliar se um despedimento é ilícito, a possibilidade de reintegração do trabalhador caso tenha sido ilicitamente despedido, entre outros. A isto, a OCDE soma os custos adicionais de um despedimento coletivo para chegar ao indicador total. Para calcular o indicador sobre o emprego temporário, a instituição analisa as regras sobre as condições em que as empresas podem estabelecer contratos a prazo, o período máximo de duração, o limite de renovações, além de considerar também as condições dos trabalhadores de agências de emprego temporário.

Para condensar todas estas dimensões, a OCDE atribui um peso a cada categoria, consoante o que considera ser a sua importância para as empresas na hora de decidir contratar ou despedir. A ponderação é inevitavelmente subjetiva e os cálculos envolvem alguma dose de arbitrariedade: uma análise publicada pelo European Trade Union Institute (ETUI) documenta casos em que vários países recebem a mesma pontuação num determinado item apesar de terem leis cujo desenho e eficácia são significativamente diferentes. Outro estudo analisa o caso da Nova Zelândia, apresentado como um país de baixa rigidez laboral, e demonstra que o indicador não reflete verdadeiramente os limites ao despedimento que existem no país.

As contradições deste indicador tornam-se mais claras quando se tentam estabelecer comparações entre países. No caso de Portugal, os níveis de proteção laboral estão em linha com os de países como os Países Baixos, a República Checa ou a Letónia e pouco acima da Finlândia e da Suécia, que, apesar de terem níveis de desenvolvimento diferentes, têm em comum o facto de serem vistas como economias dinâmicas e competitivas.

Além disso, um estudo publicado recentemente por Philip Arestis e os seus co-autores, que analisa a evolução de 16 países europeus entre 1985 e 2019, conclui que as variações no indicador de proteção do emprego da OCDE não explicam a evolução dos níveis de emprego nem das taxas de desemprego durante este período. Por outras palavras, não é possível identificar uma relação entre estas variáveis nem concluir que menores níveis de proteção são benéficos para a atividade económica.


A flexibilidade traz mais competitividade e melhores salários?

Independentemente das fragilidades do índice da OCDE, é considerado de senso comum que maior flexibilidade é sinónimo de melhores condições para a atividade económica e, por isso, melhor desempenho das economias. No entanto, alguns estudos recentes têm contrariado este pressuposto. Uma revisão de literatura que analisou 75 estudos assentes em diversos indicadores de proteção laboral concluiu que não é possível estabelecer uma relação robusta entre a flexibilização e variações na taxa de desemprego. Outros estudos (como este ou este) sugerem que a flexibilidade teve impactos negativos sobre a produtividade e a inovação, particularmente nos setores mais inovadores e dependentes de conhecimento acumulado.

Há boas pistas para explicar esta tendência: por um lado, trabalhadores com vínculos mais estáveis têm mais tempo e melhores condições para adquirir e acumular conhecimento específico sobre a atividade das empresas em que se encontram, o que contribui para a melhoria do processo produtivo; por outro lado, maior integração reforça o compromisso e a cooperação no contexto de trabalho. Além disso, a proteção laboral incentiva as empresas a investir na formação dos trabalhadores que empregam, o que promove a melhoria das qualificações e o crescimento da produtividade.

Em relação ao impacto da flexibilidade nos salários, a experiência da última década é ilustrativa. Depois do impulso para a desregulação laboral e para a facilitação do recurso a emprego temporário na União Europeia, um estudo realizado para a Comissão Europeia demonstrou que se verifica um diferencial salarial entre contratos precários e permanentes e concluiu que este era maior nos países da UE com maior percentagem de precários no emprego total (como Portugal).

Outro estudo, publicado por três investigadores do FMI, sugere que as vagas de desregulação laboral verificadas ao longo das últimas décadas contribuiram para a diminuição progressiva da wage-share, isto é, a fração do rendimento produzido na economia que é recebida pelo trabalho - ou, por outras palavras, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores.

Fonte: FMI


Porque é que os salários em Portugal são baixos?

A prevalência de salários baixos reflete o modelo de crescimento da economia portuguesa. Ao longo das últimas duas décadas, com a adesão a uma moeda sobrevalorizada e a concorrência de países com salários bem mais baixos (China e Leste europeu), as indústrias exportadoras em Portugal perderam terreno e a economia especializou-se em setores de baixo valor acrescentado - primeiro, a construção e o imobiliário; depois, o turismo e a restauração.

Nos últimos anos, o crescimento tem sido impulsionado pelo desempenho extraordinário do setor do turismo, cujo peso na economia atingiu máximos históricos, tendo passado de 6,9% do VAB em 2016 para 9,1% em 2023. Os serviços associados ao turismo - hotelaria, alojamento local, restauração, entre outros - têm sido responsáveis por boa parte da criação de emprego no país. O problema é o tipo de emprego em causa. O setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo do país e mais de 40% dos seus trabalhadores recebe o salário mínimo. A economia tem crescido com base em setores de baixa pressão salarial, o que ajuda a explicar porque é que Portugal é o país da UE em que o salário mínimo se encontra mais próximo do salário mediano.

Além disso, os trabalhadores têm pouca capacidade para negociar aumentos devido à erosão do poder negocial nas últimas décadas. As reformas laborais que tinham como objetivo flexibilizar o mercado de trabalho reduziram as indemnizações por despedimentos, facilitaram o recurso a contratos a prazo e fragilizaram a negociação coletiva. Portugal tornou-se um dos países da UE onde o recurso a contratos a prazo é maior, sobretudo entre os jovens. A percentagem de trabalhadores sindicalizados, que chegou a superar os 70% na década de 1970, caiu para cerca de 15% nos últimos anos. Estas mudanças têm como resultado uma redução do poder de negociação dos trabalhadores, o que ajuda a explicar porque é que os salários não têm acompanhado o aumento da produtividade.



Um crescimento mais sustentável dependeria de aproveitar as atuais condições favoráveis (incluindo os baixos custos da energia e o potencial das renováveis) e recuperar o investimento em infraestruturas críticas (como os transportes e, em especial, a rede ferroviária) para promover o desenvolvimento de setores mais qualificados. Para traduzir o crescimento em melhorias salariais efetivas, seria necessário devolver poder negocial aos trabalhadores, alterando as regras que incentivam o trabalho precário e fragilizam a negociação coletiva.

Em sentido contrário, a reforma laboral apresentada pelo governo reduz ainda mais o poder negocial dos trabalhadores. Além do enfraquecimento da negociação coletiva, talvez a principal alteração seja a que diz respeito aos contratos a prazo: de acordo com a proposta, as empresas passam a poder estabelecer contratos a prazo sempre que seja para a “contratação de trabalhador que nunca tenha prestado atividade ao abrigo de contrato de trabalho por tempo indeterminado”, ou seja, que nunca tenha tido um contrato estável. Na prática, trabalhadores que entram no mercado de trabalho com contratos precários passam a poder ser eternamente contratados e recontratados a prazo, sem nunca sair da precariedade, o que afeta não só as perspetivas de estabilidade financeira e a capacidade de sair de casa, mas também a saúde mental. Num contexto em que os baixos salários e a precariedade levam muitos jovens a emigrar, a reforma laboral vem agravar os problemas.


Pistas a partir do caso de Espanha

A discussão sobre a necessidade de flexibilizar a legislação laboral em Portugal contrasta com a experiência de Espanha, outro dos países com maior peso dos contratos a prazo na UE. Para dar resposta ao problema, Espanha aprovou no final de 2021 uma reforma que definiu limites mais rígidos para a contratação a prazo, com o objetivo de desincentivar a precariedade.

Os resultados parecem ter sido positivos: o peso dos contratos a prazo diminuiu de forma significativa, sobretudo entre os jovens, sem que isso tenha afetado o nível de emprego. É visível a diferença entre os casos espanhol e português, onde o peso do emprego precário se manteve relativamente estável entre nos últimos anos. É importante ter em conta que a economia espanhola tem sido elogiada na imprensa internacional pelo crescimento robusto desde a pandemia.



Apesar disso, há sinais de que outras formas de precariedade, como o trabalho em part-time, terão aumentado. Isso indica duas coisas: por um lado, as alterações à lei têm de ser acompanhadas por uma fiscalização eficaz, que impeça as empresas de recorrer a contratos de trabalho em part-time para realizar tarefas equivalentes a um emprego a tempo completo; por outro lado, as reformas laborais não substituem a necessidade de mudanças no perfil de especialização da economia.

A reforma laboral apresentada por cá não ajuda a combater os problemas do modelo de crescimento português e, pelo contrário, contribui para os acentuar: a flexibilização que tem como principal objetivo reduzir os custos laborais beneficia sobretudo as empresas em setores intensivos em trabalho (em que esses custos são mais expressivos). O que isso significa é que favorece os setores mais desqualificados e as empresas cuja estratégia assenta em salários baixos e contratos precários, em detrimento do investimento em tecnologia e formação. Ou seja, o contrário do que se diz ser o objetivo.

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Mais sobre a reforma laboral

Sobre as alterações ao Código do Trabalho, a revista Que Força É Essa tem uma lista de artigos de investigadores, especialistas em questões laborais e membros de sindicatos, onde podem ler mais sobre as alterações aos contratos a prazo, aos dias de férias, ao regime de horário flexível ou às quotas para trabalhadores com deficiência.

domingo, 14 de setembro de 2025

Reforma laboral de Montenegro: injustificada, injusta e indesejável


Nas vésperas de Agosto, com o país já a banhos, o governo aprovou um Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral. O objectivo, como é óbvio, era passar de mansinho. A pouco e pouco, vamos todos ganhando consciência do que está em causa.

A associação Causa Pública organizou um encontro sobre o tema, que reuniu vários especialistas em direito do trabalho e dirigentes máximos das confederações sindicais, para discutir o que António Monteiro Fernandes (professor universitário e ex-Secretário de Estado do Trabalho) apelidou de Agenda do Trabalho Indigno. Pediram-me para falar sobre a relação entre regulação do trabalho e economia. Deixo aqui o texto da minha intervenção. (Os vídeos do encontro estão disponíveis na página de Facebook da Causa Pública).

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Bom dia a todas e a todos.

Agradeço o convite dos organizadores para participar neste evento

O académico que há em mim dificilmente aceitaria fazer o discurso de abertura num encontro que reúne alguns dos melhores especialistas portugueses de uma área que não é a minha.

É verdade que a Causa Pública não é uma universidade, mas uma associação cívica que promove o debate qualificado e a construção de propostas para uma governação progressista.

Mais do que isso, os tempos que estamos a viver não se adequam a excessos de cautela. Exigem empenho de todos e este é o meu contributo.

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Quem ouve o governo falar sobre as alterações à lei laboral que estão agora em cima da mesa fica com a impressão de que a legislação do trabalho está paralisada há décadas. Mas sabemos que não é assim – pelo contrário.

As leis laborais em Portugal mudaram várias vezes desde o início do século - e mudaram de forma substancial. Não estamos perante um sistema imutável que, de repente, precisaria de ser “modernizado”. Nas últimas duas décadas houve uma sucessão de “reformas” que, no seu todo, alargaram a margem de manobra das empresas, reduziram custos e obstáculos ao despedimento, facilitaram a contratação a termo e fragilizaram a negociação colectiva. O resultado foi uma maior flexibilidade para as entidades empregadoras e uma menor protecção para quem vive do seu trabalho. É nesta linha de evolução que devemos situar o ante-projecto que o Governo traz agora à discussão. 


1) O que já mudou e o que ficou por mudar

Em 2003, no governo de Durão Barroso, a reforma do Código do Trabalho foi um ponto de viragem: flexibilizou a mobilidade funcional e geográfica mesmo sem o consentimento do trabalhador, abriu a porta a horários mais irregulares, introduziu a “caducidade” de convenções colectivas (acordos  estabelecidos entre representantes dos trabalhadores e dos empregadores) e esvaziou a lei de várias cláusulas protectoras. Ao mesmo tempo, caiu o princípio do tratamento mais favorável em diversos domínios (que garantia que um trabalhador nunca seria prejudicado na presença de regras distintas) e o prazo máximo de contratos a termo subiu de três para seis anos — um golpe sobretudo para os mais jovens, que viram assim prolongada a condição de trabalhadores precários.

Em 2011–2012, durante o governo de Passos Coelho, aprofundou-se a erosão: as indemnizações por despedimento foram substancialmente reduzidas; a negociação colectiva perdeu força, primeiro porque empresas “em dificuldades” puderam deixar de aplicar acordos, segundo porque a extensão das convenções colectivas de trabalho (que promove a igualdade de condições de trabalho em cada sector) ficou mais limitada — com impacto particular em sectores dominados por micro e pequenas empresas.

Após 2015, durante os governos de António Costa, houve correcções pontuais. Em 2019 diminuiu-se a duração máxima dos contratos a termo para dois anos, e em 2023 a Agenda do Trabalho Digno atacou sobretudo formas atípicas de emprego. Mas o quadro estrutural manteve-se: caducidade das convenções, dualização entre trabalhadores permanentes e precários, e incentivos que ainda empurram demasiada gente para vínculos instáveis.

Este breve roteiro é importante por duas razões. Primeiro, mostra que não partimos de um sistema “rígido”, mas de um mercado de trabalho que já foi tornado muito flexível em várias frentes. Segundo, ajuda a perceber o sentido de marcha do novo pacote: longe de ser um ajuste neutro, vem consolidar e estender tendências que conhecemos desde 2003.

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2) As principais alterações agora propostas

Entre a mais de uma centena de alterações à lei laboral, o anteprojecto do governo inclui as seguintes.

a) Despedimentos e reintegração

O anteprojecto revê procedimentos e compensações, redefine a indemnização por despedimento ilícito e, sobretudo, amplia a possibilidade de substituir a reintegração por indemnização a pedido do empregador. Na prática, generaliza-se a regra de que a empresa pode opor-se à reintegração mesmo quando um tribunal reconhece que o despedimento foi ilícito.

b) Contratos a termo, trabalho temporário e outsourcing

Alargam-se as condições de admissibilidade e a duração dos contratos a termo (de dois para três anos) e alteram-se regras do trabalho temporário. Ao mesmo tempo, eliminam-se limites ao recurso à subcontratação, inclusive após despedimentos, revogando a proibição que existia. Ou seja, aumenta-se a latitude para vínculos instáveis, externalização e cadeias de subcontratação.

c) Organização do tempo de trabalho

O ante-projecto reforça o banco de horas individual: o período de trabalho pode aumentar até duas horas por dia e 50 por semana, com um limite anual de 150 horas. Acresce a possibilidade de “comprar” dias de férias adicionais sem remuneração — convertendo um direito em descanso não pago. Dizem-nos que o recurso a estes mecanismos só será possível com o acordo de cada trabalhador. Mas sabemos bem a pressão a que os trabalhadores estão sujeitos, ainda mais quando lidam de um para um com os empregadores.

d) Plataformas digitais e dependência económica

Há uma intenção de reforço da “presunção de laboralidade” (ou seja, o reconhecimento da existência de facto de uma relação de trabalho subordinado) para trabalhadores das plataformas digitais (Uber, Glovo, etc.) quando os rendimentos que obtêm de uma mesma empresa é igual ou superior a 80% dos seus rendimentos totais. Esta alteração é apresentada como um avanço. Acontece que a fasquia dos 80% deixa de fora milhares de trabalhadores que, apesar de trabalharem em condições típicas de subordinação, não atingem esse nível de dependência económica. Isto permite às plataformas organizarem-se para fragmentar a relação laboral, distribuindo tarefas por diferentes empresas subcontratadas ou multiplicando “contratos de prestação de serviços”, de forma a que nenhum trabalhador chegue ao limiar previsto.

e) Direito à greve

Simplifica-se e torna-se mais vinculativo o regime de serviços, com efeitos imediatos das decisões e menos fases de arbitragem. O efeito líquido provável é um reforço da posição do empregador na gestão do tempo de trabalho e na contenção de conflitos colectivos.

f) Negociação colectiva e caducidade

Propõe-se limitar a sobrevigência das convenções a 12 meses após a denúncia, com uma única prorrogação adicional de até 12 meses por acordo. Findo o prazo, a convenção caduca e perde os seus efeitos. Numa economia com baixas taxas de sindicalização e grande peso de micro e pequenas empresas, este desenho tende a enfraquecer a capacidade negocial dos trabalhadores, a pressionar salários e a reduzir a cobertura de direitos convencionais.

Em suma: facilitar despedimentos; alargar vínculos temporários e outsourcing; estender o banco de horas individual e dias de férias sem remuneração; apertar a caducidade da contratação colectiva; densificar instrumentos de direcção/controlo e de serviços mínimos. Trata-se de um pacote vasto e transversal, com impactos cumulativos na vida de quem trabalha.

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Dizem-nos que estas alterações são essenciais para tornar a economia mais competitiva. Mas, na verdade, a reforma que o governo está a querer impor é:

  • Injustificada
  • Injusta e
  • Indesejável 

3) É injustificada porque não resolve nenhum problema realmente existente

O argumento repetido é sempre o mesmo: leis laborais rígidas [é o que lhes chamam, em vez de mercados de trabalho regulados] prejudicam a competitividade e o crescimento económico. Mas os dados disponíveis e a investigação académica não sustentam esta tese.

Primeiro, os inquéritos com executivos e investidores não colocam a legislação laboral entre os grandes entraves à competitividade em Portugal. Num relatório recente de uma conhecida consultora internacional, baseada em inquéritos aos investidores estrangeiros a actuar no país, concluía-se que “a facilidade de contratação e despedimento” era, na verdade, apontada como “vantagem comparada” de Portugal, sugerindo agilidade e adaptabilidade. Isto não bate certo com a narrativa de um mercado de trabalho “ingovernável” pela via legal.

Segundo, a generalidade da investigação académica é clara: reduzir a protecção do emprego não cria, em média, mais postos de trabalho, nem reduz o desemprego [ver lista de referências no final deste post]. O desemprego move-se com os ciclos económicos, com choques de procura e com políticas fiscal e monetária — não com alterações às barreiras legais ao despedimento.

Terceiro, o indicador da OCDE tantas vezes invocado para demonstrar rigidez do mercado de trabalho em Portugal — "Requisitos processuais para despedimentos individuais de trabalhadores efetivos" — é um instrumento enganador. Desde logo, o despedimento individual representa apenas uma parte das regras do mercado de trabalho – e no que toca a várias outras dimensões, incluindo o despedimento colectivo, as regras em vigor em Portugal não se afastam da generalidade dos países da UE. Além disso, aquele indicador olha sobretudo para prazos de aviso e indemnizações, ignorando a complexidade processual que, nalguns países, é justamente o que torna certos despedimentos mais onerosos. A comparação Portugal–Nova Zelândia ilustra isto: Portugal aparece classificado como tendo um mercado de trabalho “muito protegido” e a Nova Zelândia com “pouco”; mas estudos de caso mostram despedimentos neozelandeses altamente onerosos devido a requisitos processuais invisíveis para o índice.

Em resumo, o Governo propõe resolver um problema mal diagnosticado; não há evidência de que a legislação portuguesa seja um travão central à competitividade, nem de que desregulá-la mais gere emprego. Alterações assim são, por isso, injustificadas.

Além de injustificadas são injustas. 


4) São injustas, porque desequilibram ainda mais uma relação desigual

O contrato de trabalho não é um acordo entre partes de igual poder. O trabalhador depende do salário para viver; a empresa detém o capital, a organização e a decisão. A lei laboral existe para equilibrar esta assimetria — para garantir dignidade, segurança e previsibilidade a quem vende a sua força de trabalho. É por isso que a tradição do direito do trabalho se distingue de uma visão puramente comercial das relações laborais.

Quando se permite a uma empresa opor-se à reintegração mesmo em despedimentos reconhecidos como ilícitos, está-se a fragilizar a segurança no emprego e a transformar uma garantia constitucional num custo contabilizável.

Quando se alarga o banco de horas individual e se aceitam férias “compradas” sem remuneração, está-se a transferir risco e custo de flexibilidade para o trabalhador e sua família.

Quando se flexibiliza o outsourcing e se abrem portas a sucessivos vínculos instáveis, constrói-se uma economia de trabalhadores permanentemente “em trânsito”, com pouca voz e pouca previsibilidade.

Nenhuma destas medidas é neutra: todas deslocam a balança para o lado de quem já tem mais poder.

O risco social é claro: mais precariedade, mais insegurança, mais dificuldade em planear uma casa, ter filhos, continuar a estudar. E, como mostraram reformas anteriores, este risco não é abstracto — cai com particular força sobre os mais jovens e sobre quem tem menor poder negocial.

As medidas propostas pelo governo são por isso injustas.

Mas para além de injustificadas e injustas, são também indesejáveis.


5) São indesejáveis para o modelo de desenvolvimento de que Portugal precisa

Estas propostas são más para a produtividade, para a inovação e para o futuro do país.

a) Produtividade e inovação

Quando despedir é fácil e barato, muitas empresas preferem estratégias baseadas em trabalho descartável em vez de investir em tecnologia, organização e qualificação.

Além disso, a elevada rotação e a fragilidade dos vínculos desincentivam a acumulação de conhecimento específico e a aprendizagem contínua nas equipas.

No conjunto da economia, isto empurra a estrutura produtiva para actividades de baixo valor acrescentado.

b) Procura interna e crescimento

Empregos precários e mal pagos reduzem o consumo das famílias e a estabilidade da procura. Menos procura significa menos investimento e menos crescimento, sobretudo numa economia como a nossa, muito dependente do mercado interno. Ou seja, a “flexibilidade” não se traduz em dinamismo agregado — pelo contrário, trava-o.

c) Finanças públicas, Estado social e combate às crises

Vínculos precários e intermitentes resultam em contribuições mais baixas e irregulares para a Segurança Social e em menor receita fiscal. A sustentabilidade das pensões e dos serviços públicos ressentir-se-á de uma economia construída sobre contratos frágeis.

A maior facilidade de despedimentos, ainda mais na ausência de uma protecção sólida contra o desemprego, tem um problema acrescido: aprofunda as recessões, ao acelerar a contração do emprego e da procura interna.

d) Coesão social e demografia

Mercados de trabalho muito flexíveis aumentam desigualdades, alimentam clivagens entre trabalhadores e corroem expectativas de mobilidade social, com impactos intergeracionais.

A insegurança reduz natalidade e alimenta descontentamento político. Isto não é um detalhe: sociedades com base laboral instável tendem a ser mais vulneráveis a choques e a radicalizações.

Em suma, ao fragilizar os trabalhadores, fragiliza-se a economia e a democracia.

 

7) É isto que nos dizem inúmeros estudos científicos [ver lista de referência no final]:

  • Reduzir protecção no emprego não se traduz, em média, em mais emprego ou menos desemprego. O que conta são os ciclos económicos e as políticas monetárias e orçamentais.
  • Rotatividade elevada e vínculos frágeis desincentivam investimento em formação e tecnologia; encurrala-se o tecido produtivo em actividades de baixo valor acrescentado.
  • A liberalização reforça clivagens entre “protegidos” e “descartáveis”, ampliando desigualdades salariais e insegurança económica.
  • Precariedade persistente reduz procura interna e contribuições, aumenta a volatilidade nas crises e corrói bases fiscais e contributivas.

 

8) Conclusão

Persistir em mexer sempre do mesmo lado é, por isso, injustificado do ponto de vista da competitividade, injusto do ponto de vista social e indesejável para o nosso modelo de desenvolvimento.

Não se trata de “modernizar” — trata-se de insistir num padrão que sinaliza ao investimento que Portugal está disponível para competir pelo lado do custo do trabalho, não pelo lado da qualificação, da organização e da inovação.

A competitividade da economia portuguesa não pode traduzir-se em imprevisibilidade para quem trabalha, nem em poder unilateral para quem emprega.

Ao aprovar estas medidas, não estaríamos a resolver um problema de competitividade — porque ele não está nas leis laborais. Estaríamos, sim, a cristalizar um modelo de desenvolvimento assente em trabalho descartável, menor investimento em inovação e maior desigualdade. O preço pagar-se-á em produtividade, em coesão social e, a prazo, em democracia.

Portugal precisa de regras que protejam a dignidade de quem trabalha e que puxem o nosso tecido produtivo para actividades de maior valor: menos rotatividade, mais qualificação, mais contratos estáveis, melhor negociação colectiva. É isso que atrai investimento que fica, com trabalho digno e salários justos.

É isso que faz um país moderno — não a facilidade de se desfazer de quem trabalha, mas a capacidade de fazer melhor com quem trabalha.

É por isso que o ataque do governo aos direitos dos trabalhadores exige a nossa acção: através do debate e da proposta, e também do protesto e de todas as formas de luta.

Muito obrigado.

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Referências 

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