Embora a inflação já não seja o tema que abre telejornais, o preço da comida continua a ser notícia. Nos últimos meses, os preços dos alimentos têm sido o
da inflação em Portugal, com destaque para os casos da fruta, cujo preço aumentou 10% entre o verão do ano passado e o deste ano, e do café, chá e cacau, que viram os preços subir mais de 12% neste período.
Não é um fenómeno novo. Desde que as medidas de confinamento da pandemia foram gradualmente retiradas e a atividade económica voltou ao normal, a alimentação tem sido uma das áreas em que os preços mais têm subido. Entre 2020 e 2024, os preços dos alimentos subiram 34%, bastante acima da média dos preços da economia portuguesa, medida pela inflação, que registou uma subida de 20% durante este período.
Embora existam vários fatores que contribuíram para a subida (como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, dois dos principais exportadores mundiais de cereais, que levou a um aumento dos seus preços nos primeiros meses), há um que tem sido apontado como origem de impactos persistentes: as alterações climáticas. Um
estudo publicado em julho deste ano por uma equipa internacional de cientistas, que analisaram variações de preços em 18 países entre 2022 e 2024, concluiu que “os picos de preços estiveram associados a fenómenos extremos de calor, seca ou precipitação intensa, vários dos quais tão extremos que ultrapassaram todos os precedentes históricos anteriores a 2020”.
O estudo documenta o impacto dos vários fenómenos climatéricos extremos na produção e no custo dos alimentos. Os períodos de seca extrema contribuíram para disrupções na produção e na oferta de vegetais nos EUA, do café do Brasil ou do azeite de Itália e Espanha. Já as ondas de calor atingiram de forma severa a Índia e os grandes produtores de cacau (Gana e Costa do Marfim), ao passo que a precipitação intensa e as cheias tiveram impactos que vão desde a procução de batatas no Reino Unido à de alfaces na Austrália. Em todos os casos, os preços dos produtos dispararam na sequência destes fenómenos.
Este estudo reforça os resultados de uma
análise anterior, publicada por investigadores do Banco Central Europeu (BCE) e centrada na dinâmica dos preços na Europa. A conclusão da análise é que, em 2022, as temperaturas-recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais. Com o aquecimento projetado para a Europa nos próximos anos, os autores apontavam para um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total.
Também é preciso ter em conta que o surto inflacionista foi acompanhado por um aumento extraordinário dos lucros das empresas. A nível internacional, as principais empresas comercializadoras de produtos agrícolas viram os seus lucros
triplicar e, em muitos países, o setor da grande distribuição também registou lucros recorde. Em Portugal, os lucros da Jerónimo Martins e da Sonae - donas, respetivamente, do Pingo Doce e do Continente -
quase duplicaram entre 2019 e 2023 e, apesar da desaceleração em 2024, mantêm-se ainda bastante acima dos valores anteriores ao início do surto inflacionista.
O
artigo “
Sellers’ inflation, profits and conflict: why can large firms hike prices in an emergency?”, de Isabella Weber e Evan Wasner, dá-nos pistas para compreender o papel que as empresas desempenham num surto inflacionista. Em condições normais, as empresas evitam aumentar preços de forma unilateral devido ao receio de perder clientes para vendedores que concorrem no mesmo mercado. No entanto, há períodos em que este cenário se altera. Quando um choque gera um aumento dos custos das empresas num determinado setor, se estas quiserem manter as taxas de lucro inalteradas, terão de aumentar os preços que cobram em simultâneo.
Neste contexto, como todas as empresas do mesmo setor aumentam os seus preços, nenhuma corre o risco de perder clientes para a concorrência. Além disso, o tipo de constrangimentos da oferta que se registaram nos últimos anos, amplamente noticiados pelos meios de comunicação e referidos pelas empresas, contribuíram para a sensação de “legitimidade” das subidas de preços. Desta forma, disrupções provocadas pelo clima extremo tiveram como consequência um aumento temporário do poder das empresas para subir preços sem afastar clientes.
O
exemplo do cacau é ilustrativo: depois das más colheitas nos principais países produtores, devido à sucessão de chuvas intensas e períodos de seca severa, o preço do cacau nos mercados internacionais subiu vertiginosamente e traduziu-se num aumento dos preços do chocolate nos supermercados. Ao mesmo tempo, as principais multinacionais do setor (Montelez, Ferrero, Mars ou Lindt) viram os seus lucros aumentar de forma significativa, o que permitiu distribuir dividendos generosos aos acionistas.
Algumas das grandes empresas que viram os seus lucros disparar argumentaram que as margens de lucro se mantiveram essencialmente estáveis. No entanto, mesmo a manutenção das margens revela o enorme poder de mercado que lhes permite proteger os lucros à custa dos consumidores e de muitos pequenos produtores. É isso que explica os ganhos avultados no setor agro-industrial, onde as cinco maiores empresas internacionais
controlam 70% do comércio internacional, ou na distribuição, onde o mercado é tipicamente dominado pelos grandes supermercados.
A fatura é igual para todos?
A subida dos preços dos alimentos não afeta todos da mesma maneira. O impacto no poder de compra das pessoas depende dos seus padrões de consumo e estes variam consoante o rendimento. Tipicamente, as pessoas com salários ou pensões mais baixas gastam uma parte maior do seu rendimento com a alimentação. Os
dados do INE confirmam-no: as despesas com alimentos representam mais de 17% do orçamento das pessoas com rendimentos mais baixos, mas apenas 10% do orçamento dos mais ricos.
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O que isto significa é que a mesma taxa de inflação alimentar tem impactos diferentes em grupos sociais diferentes. Neste caso, representa um aumento mais acentuado do custo de vida para quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nestes produtos. Por outras palavras, a subida dos preços dos alimentos pesa mais na carteira de quem ganha menos.
Além disso, nem todas as categorias encareceram ao mesmo ritmo. Quando vamos ao supermercado, a maioria dos alimentos que consumimos estão disponíveis em mais do que uma variedade. Existem marcas de fabricante, mais caras, e marcas brancas, normalmente mais baratas. Nos últimos anos, os dados sugerem que a subida dos preços foi mais acentuada nas categorias que eram mais baratas à partida – um fenómeno a que se tem chamado cheapflation. Uma
análise recente do Banco de Portugal confirmou este fenómeno nos supermercados nacionais e concluiu que a maior diferença foi registada em produtos como a carne, peixe, leite, queijo e ovos. Ou seja, alimentos que fazem parte das refeições da maioria das pessoas.
Esta discrepância tende a penalizar as pessoas que ganham menos: quem tem salários mais altos pode deixar de consumir produtos mais caros e trocá-los pelo equivalente da marca branca para se proteger do impacto da inflação, enquanto quem ganha menos, à partida, já escolhe tendencialmente os produtos mais baratos. Mais uma vez, os dados sugerem que a inflação alimentar tem afetado sobretudo as pessoas que ganham menos, com consequências não apenas para o seu poder de compra mas também para os riscos de fome e desnutrição entre os grupos mais vulneráveis da sociedade.
O que é que podemos fazer?
A resposta da economia convencional para lidar com surtos inflacionistas passa pela subida das taxas de juro. O objetivo é “arrefecer” a economia e reduzir a pressão sobre os preços. No entanto, esta abordagem é
ineficaz para lidar com constrangimentos da oferta de matérias-primas ou de produtos alimentares, além de ser uma política regressiva do ponto de vista distributivo. Uma resposta progressista à inflação passa necessariamente por uma abordagem alternativa.
Primeiro, é preciso reconhecer que o custo de vida
não está a ser devidamente avaliado com base no indicador da inflação, que é o referencial usado nas negociações salariais e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, traduz-se em aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida dos preços.
Depois, são necessárias medidas para impedir que as grandes empresas aproveitem disrupções da oferta para aumentar os seus ganhos. Nesses contextos, justificam-se medidas como a limitação das margens de lucro ou a introdução de impostos sobre lucros extraordinários, que permitem desincentivar práticas especulativas e/ou redistribuir os ganhos extraordinários de forma a compensar os grupos mais afetados pela inflação.
De um ponto de vista mais estrutural, a discussão tem-se centrado em torno de medidas de estabilização à escala nacional ou internacional. Uma das alternativas propostas é a criação de
stocks de reserva de bens alimentares (e outras matérias-primas), que permitem aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços. Este tipo de reservas existe em vários países: os EUA têm uma
reserva estratégica de petróleo; a China e a Índia possuem
reservas de cereais; o Japão
anunciou que vai mobilizar as reservas de arroz para combater o aumento dos preços; na Polónia, o governo
recorreu às reservas de manteiga com o mesmo objetivo.
Além disso, é necessário investir em medidas de adaptação às alterações climáticas, o que requer uma discussão mais abrangente sobre a transformação dos sistemas de produção e distribuição de bens essenciais. Como
argumenta o economista James Meadway, “à medida que a crise de adaptação [às alterações climáticas] se acentua, é expectável que sejamos confrontados com questões mais determinantes: sobre como produzimos o que comemos, quem o produz e como deveria ser distribuído de forma justa”.