quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Percebeu Marcelo o que está realmente em causa?


1. Perante a ordem da Direção-Executiva do SNS dada aos administradores hospitalares, para que procedam a um corte em 10% dos fornecimentos e serviços externos, num contexto de aumento da procura de cuidados, Montenegro afirmou, num exercício de semântica sonsa, que «a palavra corte não é correta», não havendo «nenhuma orientação no sentido de cortar o que quer que seja», mas sim uma «orientação muito exigente» no sentido de «sermos mais eficientes». Eis o regresso da cantilena do «desperdício» (antes eram as «gorduras») e do «fazer mais com menos», impondo cortes prévios para camuflar o desinvestimento e a degradação dos serviços públicos.

2. Ao arrepio das expetativas que o próprio criou, Marcelo Rebelo de Sousa acabou por segurar a ministra da Saúde, apesar do fracasso em toda a linha e do enfraquecimento a que está a sujeitar o SNS desde o primeiro dia. Esse é aliás o ponto. O verdadeiro problema não é Ana Paula Martins, apesar da instabilidade e desorganização que introduziu no setor, mas sim o projeto político da AD para a saúde, que visa a desvitalização do SNS e a canalização de um volume cada vez maior de recursos para os privados, pondo em causa o direito universal de acesso desmercadorizado a cuidados de saúde de qualidade, que apenas uma lógica de cobertura de serviço público pode garantir.

3. Ao assumir funções, e tal como na Educação, o governo criou, com fins eleitorais de curto prazo, a ilusão de que os problemas se resolveriam num ápice, ativando um Plano de Emergência na Saúde. Mas rapidamente se constatou que o propósito era reforçar a contratualização de cuidados com privados, na ilusão de que apenas se estava «aproveitar capacidade instalada». Na prática, a transferência de utentes e de financiamento reforçam a capacidade dos próprios privados para ir buscar profissionais ao SNS, desfalcando-o. Para o serviço público, sobraram no Plano os incentivos ao aumento da produção (horas extra) e da produção à tarefa, acentuando a desmotivação e desintegrando equipas.

4. Sem que nada tenha melhorado, antes pelo contrário, os sinais de definhamento e crescente incapacidade de resposta do SNS acumulam-se, relevando o défice de recursos humanos. Sem surpresa, claro: é o resultado esperado do processo de privatização em curso. E se algumas debilidades induzidas já vinham de trás, como o «tarefeirismo» (para evitar despesa estrutural, em nome das alegadas «contas certas»), o que está em causa é o velho sonho da direita, de retrair o SNS e expandir a saúde privada. É por isso que, tratando-se de uma escolha política abissal, e não de uma questão de consenso, faz pouco sentido que Rebelo de Sousa apele a um «acordo de regime» para o setor.

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