Se olharmos ao resultado das últimas eleições, essa ideologia obteve maioria absoluta. Não obstante esta ideologia expressar-se de diversas formas, sem dúvida que tem origem no neoliberalismo e na sua quebra de toda e qualquer noção de coletivo, assente na defesa da concorrência sem freios contra qualquer esforço de cooperação.
Assim, as culpas e as soluções para a pobreza e desigualdades foram relegadas para cada indivíduo. É a chamada meritocracia, dizem. É a cada um que compete ser “empreendedor” e investir na sua independência financeira. Coaches e influencers prosperam a vender banha da cobra que empacotam num discurso puramente moralista que transforma problemas sociais em falhas morais de cada um.
Nesta circunstância, o instinto manda a cada um achar-se superior aos demais. Se já é mais rico, mais forte, mais bonito, ou mais culto, a superioridade é tida como evidente. Mas a ideologia chega aos desprotegidos e explorados também. Cada pessoa que se acha superior é um milionário em potência, que só não chega lá por causa dos impostos, por causa dos poucos e recentes direitos das mulheres ou da comunidade LGBTQIA+, por causa do Estado ou, com certeza, por causa dos imigrantes. Forma-se aquilo a que uma amiga chamou de hierarquia do oprimido que explica que portugueses trabalhadores adotem a defesa de descidas de impostos que beneficiam os mais ricos, ou o fim de serviços públicos que tratam todos como iguais, ao mesmo tempo que atacam outros trabalhadores pobres por serem imigrantes. Ao mesmo tempo, imigrantes adotam a mesma ideologia e atacam outros imigrantes, distinguindo entre supostos “trabalhadores” e “não trabalhadores”. É a ideologia da autointitulada pessoa-de-bem.
Os valores da igualdade e da solidariedade, que de uma forma ou outra, eram sempre fundamentais, até nas sociedades europeias dominadas pelo liberalismo social, pela democracia cristã ou pela social-democracia, tornaram-se completamente arcaicos e anacrónicos. Defendê-los tornou-se tão radical que é tido como comunismo.
Em contracorrente, passou relativamente despercebido, mas eu acho que esta foi a última e derradeira lição do falecido Papa Francisco quando, mantendo um costume com alguns anos, foi visitar uma prisão em Roma na última Quinta-feira Santa.
À entrada, perante os jornalistas, e com evidentes dificuldades, questionado sobre como se sente, Francisco responde: «Sempre que entro num local como este, pergunto-me sempre: “Porquê eles e não eu?”»
Não que a Igreja tenha sido, ao longo da história, grande
exemplo da defesa deste princípio. Mas está aqui tudo.
Francisco revela ali que nada de fundamental o distingue daqueles que são os
marginalizados da sociedade, os últimos, os que cumprem penas pelos seus crimes.
Francisco decide expressar a compreensão de que todos (todos todos) têm a mesma dignidade
como seres humanos, o que, por sua vez, está na base da solidariedade e das obras
de misericórdia que, para além de visitar os presos, mandam dar de comer a quem
tem fome e dar de beber a quem tem sede, vestir os nus ou assistir os enfermos.
Nunca esta ideia esteve tão em causa e nunca foi tão urgente
recuperá-la.
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