segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Cadernos de encargos para o governo

No outro dia, encontrei um ex-membro de governo e estivemos à conversa, de pé, umas boas horas. Ao fim de quase 30 anos de profissão de jornalista, não tenho muitas dúvidas sobre a força da penetração da corrupção nas estruturas públicas e da forma como se adultera - cada vez mais - a prática pública. Mas o que me aterroriza sempre é o à-vontade e a impunidade de como as coisas se fazem.

A corrupção não é apenas um abotoar de dinheiros à custa do erário público. É o telefonema do colega de Governo para que recebe uma dada pessoa que quer um favor do governante, em nome da distrital do seu partido; é o cartão a dizer "Veja o que pode fazer com esta proposta" que se junta com um documento fornecido por um amigo; é a subtileza de o desvio de dinheiros com fins políticos se fazer à pala de uma dada frase num dado documento; é a inserção no Orçamento de Estado, à última da hora e sem qualquer parecer dos serviços do Estado, de alterações à lei com apenas um beneficiário; é o descaramento com que alguém pede ao governante para que um caderno de encargos de um dado concurso público seja subvertido para acomodar um dado fornecedor; é o gasto de dinheiros públicos na compra dispendiosa de bens sem qualquer estudo prévio sobre a necessidade pública; é a utilização de bens públicos como se fossem seus; é o gasto de dinheiros públicos em estudos externos aos serviços públicos, que de nada servem senão para distribuir dinheiros a amigos ou a amigos do governo. São os cargos em administrações de empresas, abertos a políticos, deputados, membros de governo, sem qualquer exigência de trabalho efectivo, constituindo-se numa clara avença, paga para qualquer efeito futuro. E a lista poderia continuar, sem fim.

O problema não é o Estado. O problema é a forma como se usa o Estado. Todos nós sabemos que isso se faz. Todos nós sabemos como se faz. Todos nós sabemos que as máquinas partidárias estão demasiado viciadas no dispêndio de dinheiros públicos em favor de interesses privados (económicos ou meramente partidários). O grave é precisamente esse: TODOS SABEMOS.

Todos sabemos e nada acontece. O Tribunal de Constas recolhe periodicamente documentos dos serviços públicos sobre como prevenir a corrupção, mas a corrupção é algo bem mais fluido. Passa pela cumplicidade de quem está sentado ao lado no Governo, na bancada parlamentar ou no topo do partido com quem o Governo lida todos os dias.

O que fazer? Como fortalecer o Estado e impedir a porosidade larvar, alimentada por altos responsáveis político-partidários? Como revigorar um Estado presente e sólido sem ser este abastardamento das funções públicas?


1. Como evitar a nomeação de boys incompetentes, de comissários políticos ignorantes, mas dispendiosos? Deverá retomar-se a ideia inicial e benigna da forma de nomeação de cargos públicos? Não há cá short list nem curricula com fotografia prévia? Apenas os mais qualificados, ponto final?

2. Como evitar a opacidade das decisões políticas? Será que basta a exigência legal da publicitação - mesmo que apenas online - de TODOS os actos políticos, incluindo despachos, documentos de apoio, etc.? Será que é possível decidir que qualquer detentor de cargos políticos ou públicos seria imediatamente destituído e privado de direitos públicos caso fosse detectada uma situação favorecendo a opacidade?

3. Como impedir o à-vontade dos actos criminosos? O que se passa neste momento é o facto de o infractor não ter qualquer risco. Será que se deveria agravar severamente as penas por qualquer acto ou tentativa ou gesto tendente a configuar um acto de preversão da função pública? Não falo de pena de morte, mas verdadeiramente de o risco de pena de prisão, de perda de rendimento e propriedade, de perda permanente de direitos, algo efectivamente dissuasor.

4. Como evitar que a decisão política seja baseada em pareceres comprados no exterior? Será que se deveria fortalecer a obrigatoriedade dos serviços públicos de prestar parecer prévio, que seria obrigatoriamente público e publicitado? Como evitar a corrupção dos serviços que prestam pareceres? Ainda há uns anos se falava de um parecer, de um organismo público de apoio, que teria sido "pago" com um lugar no gabinete do secretário de Estado e com uma dada remuneração. De facto, o dito parecer nunca foi publicitado e, no final, a diferença foram milhões e milhões de euros de benefício privado em favor de grupos económicos.

5. Como evitar que o Orçamento de Estado seja a arma essencial da opacidade legal? Talvez a primeira medida é fechar a elaboração do OE a firmas de consultoria fiscal, tal como até há pouco acontecia. Deveria toda a alteração legal ser objecto de estudo prévio dos serviços, de estudos de impacto e de debate aberto e parlamentar? Talvez essa obrigatoriedade impedisse a mania de cada governante querer deixar o seu cunho na lei, para não dizer algo mais grave.

Creio que não seja muito difícil encontrar soluções. Deve haver experiências internacionais que se possam aproveitar. Mas nada fazer só contribuirá para a apatia e a cultura de pântano que actualmente se vive. Há décadas.

13 comentários:

Anónimo disse...

"O problema não é o Estado. O problema é a forma como se usa o Estado."

Desculpe mas esta afirmação não está completa: quanto maior (abrangência) for o Estado e quanto maior for o seu poder de decisão maior é a probabilidade de ser "mal usado". Inevitavelmente. E isso não é exclusivo de uma área política: basta ver o que aconteceu no Brasil com o Partido dos Trabalhadores. Repito: Partido dos Trabalhadores. Para não haver mais ilusões quanto aos "bons" (esquerda) e aos "maus" (direita).

Jose disse...

Sendo o mais improvável a redenção dos partidos políticos, câmaras de tráfico de influencias entre serventuários de vagas ideologias, é na reforma do Estado que podem encontrar-se algumas soluções.
Como iniciar essa discussão sem fixar limites de acção directa ao Estado?
Como limitar os compadrios se livremente se criam Institutos, observatórios, comissões de análise de toda a treta?
Se há concursos públicos de obras, não os poderá haver de ideias?
Se a organização corporativa está de pé, e a par do grito, da passeata e da greve, há uma concertação social, porque toda a cunha, todo o ardil, toda a corrupção vertida em lei e regulamento não passa em concertação de quem vê os seus interesses afectados?
Que a seriedade está suspensa, prova-o a suspensão do artº 35º do CSC.
O princípio é todavia claro e universal: todo o responsável. público ou privado agindo no espaço público que, na área da sua responsabilidade e no exercício diligente das suas tarefas, conheça ou deva conhecer como ameaçados ou afectados os interesses sobre sua administração, deve reportar essas ameaças ou esses factos a entidade de que dependa ou aos titulares dos interesses afectados, sob pena de prisão, indemnização, destituição do cargo ...é escolher consoante o caso.

Anónimo disse...

Caro João,

Infelizmente acho que as soluções são difíceis de encontrar, a começar por ter massa crítica de políticos que as queiram implementar.

O que pode ajudar é publicitar essas soluções - se existirem - de modo claro e arranjar pessoas que se comprometam a essa agenda.

Eu votaria em pessoas que me apresentassem boas soluções para esses problemas e se comprometessem a implementá-las, demitindo-se logo a seguir. Isso diminuiria o comprometiimento necessário do eleitor que, estandoa favor de tal agenda, desconfia de quem vem de novo a querer vender um pacote ideológico completo.

Mas não vale dizer que devem esistir, nestas coisas tem que se ser concreto.

Anónimo disse...

E´ verdade!
Todos sabemos da cultura corruptiva que foi imposta ao país no longo meio seculo de ditadura fascista e que, infelizmente, a Revolução inacabada de Abril, não conseguiu extirpar de todo essa cultura nociva para as populações… E agora com mais 40 anos, essa dita cultura nociva, só tinha de chegar às artérias do Estado que se queria moderno e progressista..!
Alguém disse, penso que com boas intenções, que uns 6 meses de ditadura firme, arrumava a “casa” portuguesa…Todavia, essa “cultura”, por ventura dominante, inculcada sistematicamente no cérebro humano, não se erradica de imediato.
Penso que uma “Revolução Permanente” com tempo, muito tempo, reduziria essa cultura nociva a baixos níveis, senão a zero..! de Adelino Silva

Jose disse...

Adelino, andas a recuperar leituras dos clássicos comunas e a par disso vais delirando, acomodando a História ao roteiro.

«cultura corruptiva que foi imposta ao país no longo meio seculo de ditadura fascista»!
Para o que estamos a tratar, nada mais falso e inapropriado; até ao homem que se dizia ter 'mil tachos' (um Almirante de que não me lembro o nome) conseguiram imputar qualquer malfeitoria ou descobrir qualquer riqueza pessoal.
Vai por aí agora, pelos ex-governantes, pelos ex-autarcas e só vez milagres económicos cavados com tretas de serviço público.

José António Magalhães disse...

Citando Joseph Stiglitz, num artigo para a publicação Project Syndicate e social Europe em que refere que:"Os obstáculos que a economia global enfrenta não radicam na economia, mas na política e na ideologia.O sector privado criou a desigualdade e a degradação ambiental com que hoje nos temos de preocupar.Os mercados não conseguirão resolver estes, ou outros problemas críticos com que, hoje, nos temos que preocupar ou, trazer a prosperidade, só por eles.São necessárias políticas governamentais activas".Nada se adequa com tanta facilidade ao caso português, em que,em vez de políticas activas, temos políticas de cedência e passividade, ou conivência activa, que facilitam os investimentos privados de incerta proveniência, que não visam nem o desenvolvimento nem a prosperidade, que os decisores políticos acenam como justificação para os métodos que se sustentam na permissividade, na cedência e no clientelismo, que são o maior constrangimento à implantação de políticas de rigor para o desenvolvimento.

Unknown disse...

A informação tem um papel determinante. Agora ,não sei dizer como se consegue, nesta época de desvalorização dos media tradicionais, que me parece imparável, pelo menos usando as técnicas clássicas.

Anónimo disse...

Oh José…lamento o seu atrevimento na tentativa de me perturbar, mas já´ la´ vão 76 anos…e´ de facto muito tempo…
Eu pensava ser original, mas, vá la´, recuperar algo comunista não e´ nada mau de todo…recuperar algo fascista, praticaria um erro insolúvel…
Sei que a historia portuguesa do seculo XX ainda esta por fazer…mas isso não quer dizer -- esquecer os crimes praticados pelos “Mãos Limpas” da ditadura fascista do “estado novo”.
E, tenho para mim, que qualquer erro hoje cometido e´ mil vezes inferior aos cometidos pelos fascistas do “estado novo”. Me desculpem. De Adelino Silva

Rui disse...

Eu deixo uma sugestão concreta que penso que seria positiva para a transparência dos concursos para os cargos públicos. Sempre que um dos componentes da avaliação seja a entrevista, deveria ser obrigatório que essa mesma entrevista fosse gravada. A entrevista do candidato vencedor deveria ser tornada pública.

João Ricardo Vasconcelos disse...

Duas palavras: Administração Aberta. Não existem hoje razões de fundo para que a Administração Pública seja tão fechada, tão opaca, tão pouco disponível à fiscalização dos cidadãos. As tecnologias permitem hoje que, sem grande dificuldade, toda a informação pública possa ser aberta por defeito aos cidadãos.

E existem diversos exemplos internacionais e até nacionais a este respeito: portais da transparência, portais de dados abertos, leis avançadas que promovem ativamente a transparência na Adm Pública. e a participação dos cidadãos.

Deixo aqui, como referência, dois artigos sobre este tipo de temática.

1 - Transparência na Administração
http://www.ativismodesofa.net/2015_09_01_archive.html

2 - Administração Aberta: um Paradoxo?
http://www.ativismodesofa.net/2015/07/administracao-aberta-um-paradoxo.html

Não sendo um elixir para todos os males, uma ambiciosa agenda de Administração Aberta poderia fazer toda a diferença em Portugal.

Jose disse...

Essa questão da Administração Aberta, se transformada em reality show, só vai trazer aos cargos dirigentes da função pública os mais qualificados dissimuladores e afastar quem preze a sua privacidade, o que em larga medida já acontece na área dos políticos dependentes de cargos públicos.
Comecem por garantir que as Leis sejam claras e que o ordenamento jurídico não seja um atoleiro de intenções que abrigam o oposto do que se propõem.

Unabomber disse...

A raíz do mal está no financiamento partidário que é feito por baixo da mesa.
E, depois deste vem a máfia que domina o Direito, que é quem efectivamente "faz" e interpreta o labirinto legislativo.
Sem solucionar previamente estes dois males, todos as reformas que se façam no Estado pouco irão melhorar os seu funcionamento, por melhor intencionadas que sejam.

António Samara disse...

A venda de martelos, de pregos e madeira não está proibida e se o fosse seria mal entendida.
Com estas coisas é possível construir um abrigo para o pássaro que gosta de frequentar o seu quintal.Pode, também, zangar-se com o seu vizinho e agredi-lo com o martelo ou com um pedaço de madeira.
O martelo e a madeira ou serviço o do Estado são instrumentos que podem ser usados para uma finalidade diversa, qualificável como boa ou má.
A diferença essencial é a do espírito com que se usam.
O que está permanentemente em questão é a real intenção de quem usa os meios ao seu dispor.
Esta perspetiva coloca-nos o problema de saber qual a intenção do usuário desses meios instrumentais. Se nos focarmos neste usuário, torna-se essencial perceber quais são os valores que determinam as suas opções desde as mais simples às mais relevantes.
E, necessariamente, teremos que ponderar qual o caráter desse usuário dos meios instrumentais. Mas, como ninguém acede ao uso de meios complexos como sejam um serviço do Estado, torna-se crucial conhecer também o caráter do grupo em que se insere e que o suporta e promove. Os seus associados, no processo de aglutinação, haverão de ter discutido e formulado objetivos e finalidades para a sua atuação, em subordinação a uma escala organizada de valores sociais, isto é, uma visão política. A opção política de fundo é o cerne da questão. O resto pode ser solicitado aos peritos.
Em conclusão, a opção política é essencial e desta decorre tudo o mais, nomeadamente para a escolha do partido político em que se vota e que se apoia, de forma preferencialmente ativa, com o empenhamento que resulta da vontade de cumprir um ideal de sociedade.
Neste âmbito, defendo, resumidamente, uma sociedade que seja de todos para todos.
Este lema, se colocado como objetivo, haverá de condicionar todas as questões que, como a presente, preocupam os cidadãos.