Convencionou-se dizer que falar de finanças públicas é explicar onde é que se corta e que impostos é que se sobe. Para quem só sabe jogar esse jogo, não aceitar os termos da discussão significa fugir a um debate em torno de matérias que são centrais em qualquer governação. Para quem acha que esse jogo está viciado e não nos leva a lado nenhum, não aceitar os termos do debate significa apenas que a política orçamental tem de tirar as lições dos erros cometidos nos últimos anos. E a lição dos últimos anos é simples: a austeridade fracassou. Os cortes na despesa pública (funções sociais do estado, salários e pensões, investimento) e aumento de impostos não permitem consolidar as finanças públicas e não garantem a sustentabilidade da dívida.
As metas orçamentais foram sempre sendo ajustadas aos sucessivos fracassos e só foram cumpridas na exacta medida em que foram flexibilidadas. E a situação só correu melhor do que era esperado quando a política do governo foi travada, isto é, quando parte da austeridade que o governo tinha previsto executar foi considerada inconstitucional. Os aparentes "sucessos" dos últimos tempos não são a prova de que a austeridade funciona, mas o seu exacto oposto.
Insistir em debater a política orçamental no quadro das chamadas de políticas de austeridade é, portanto, persistir num erro. E recusar jogar esse jogo significa tão só que, se o objectivo for mesmo o de afirmar uma alternativa a uma política que fracassou, então temos de sair do terreno que o actual governo e os seus apoiantes (alguns de forma inconsciente) nos garantem ser o único que existe. Que existe outro caminho não é uma promessa, é uma necessidade. É, aliás, o pressuposto de toda e qualquer projecto que se queira constituir como alternativa. E é um dos pressupostos da moção de António Costa às eleições Primárias no Partido Socialista.
Ao contrário de António José Seguro - que, como Passos Coelho, considera que a actual situação se deve à irresponsabilidade orçamental do passado -, António Costa reconhece que os nossos problemas orçamentais são uma consequência da crise e nunca a sua causa; problemas esse que as actuais políticas só podem agravar. O Tratado Orçamental foi um erro porque institucionalizou a interpretação (errada) que a direita fez da crise; e, já agora, como se tem visto, porque não funciona.
"Quem pensa como a direita pensa", quem se orgulha e faz gala de ter assinado o Tratado Orçamental como se estivesse a expiar uma culpa e quem não contesta a leitura que a actual maioria faz das causas crise não é capaz de defender de forma coerente e credível uma reorientação dos objectivos estratégicos da política orçamental.
Portugal tem toda a legitimidade para negociar com os seus parceiros europeus e as instituições da União um plano de recuperação económica alicerçado no investimento produtivo e criador de emprego. Quanto às regras orçamentais propriamente ditas, e enquanto estas não forem revistas, é possível defender que as reformas estruturais que têm custos orçamentais de curto prazo mas benefícios de médio-longo prazo, e que não contam para os objectivos em matéria de défice, não têm de ser forçosamente aquelas que a direita defende, isto é, não têm de ser o financiamento dos custos do plafonamento (privatização parcial da segurança social) ou o pagamento de indemnizações para despedimentos na função pública. Como também se reforma investindo, os investimentos estruturantes em áreas onde Portugal apresenta défices históricos - educação, formação, investigação científica, desenvolvimento científico e tecnológico - também devem ser excluídos dos objectivos em matéria de défice.
As obrigações orçamentais não podem ser um entrave ao desenvolvimento nem podem bloquear investimentos que a própria União Europeia considera estratégicos para o nosso país. Para quem considera que os actuais problemas orçamentais e de sustentabilidade do Estado Social se devem sobretudo ao desemprego, à recessão e à queda das receitas fiscais e contributivas, para quem se opõe ao desmantelamento do Estado Social e à desqualificação laboral como vias para a transformação estrutural do país, recusar falar de política orçamental nos termos definidos pela direita e seus apoiantes é mais do que uma necessidade, é uma obrigação.
(artigo publicado na edição online do Expresso)
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4 comentários:
"Como também se reforma investindo, os investimentos estruturantes em áreas onde Portugal apresenta défices históricos - educação, formação, investigação científica, desenvolvimento científico e tecnológico - também devem ser excluídos dos objectivos em matéria de défice."
Eu diria mais. Este tipo de investimentos estruturantes deviam até ser excluídos da despesa pública. Simplesmente não deviam ser pagos: a nobreza dos seus objectivos não se enquadra em mesquinhas contas de mercearia.
No presente, não há jogo mais viciado do que a falsa escolha entre o António e o António, ambos completamente comprometidos e alinhados com a política estruturalmente de direita com que o PS andou de mão dadas com o PSD e CDS. A verdadeira alternativa tem que romper com os partidos da troika.
Estruturante é a produtividade; investimento garantidamente estruturante só se meter cimento ferro pedra e congéneres.
Será que algum dia seremos capazes de viver sem inflação e desvalorização cambial?
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