Até hoje, governo e oposições, todos têm admitido, de forma mais ou menos explícita, que enfrentamos uma grave crise de dívida pública. Em dissonância com o discurso dominante, quer o prof. João Ferreira do Amaral, quer o prof. Ricardo Cabral, quer eu próprio e outros economistas do Ladrões de Bicicletas, temos insistido que a dívida externa é o problema, mais grave e mais abrangente, a que temos de responder. É certo que o Manifesto dos 74 também se referiu à dívida externa. Porém, como o debate que suscitou acabou por confirmar, ela surgia em complemento da inevitável reestruturação da dívida pública. O programa de reestruturação da dívida portuguesa, agora apresentado por Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos, é inovador porque, além da totalidade da dívida pública, atribui um lugar central à dívida externa dos bancos.
De facto, foi através dos bancos nacionais e estrangeiros, poderosos actores da financeirização da sociedade portuguesa, que as empresas, famílias e Estado criaram os sucessivos défices externos e o enorme endividamento que acumulámos. Foi também pelos bancos que entrou o capital estrangeiro à procura de lucros especulativos, sobretudo no imobiliário e em grandes negócios com o Estado e empresas públicas.
Com um sector privado muitíssimo endividado, era inevitável que, após o congelamento do crédito de 2009, as famílias, empresas e bancos dessem início a um processo de desendividamento. O esforço para pagar dívidas, a que se juntou a maior selectividade no crédito concedido por uma banca aflita para sanear os seus balanços, deprimiu a procura agregada e gerou uma grave recessão. A política de austeridade só agravou a situação. É certo que as importações também se reduziram, mas sabemos bem que esse é um efeito conjuntural.
Uma vez que a UE fixou nos tratados que o Estado só pode financiar-se nos mercados, e sendo o Tratado Orçamental para cumprir (com pouca flexibilidade), não é possível compensar a retracção dos privados com uma política orçamental keynesiana. Segundo o modelo que nos é imposto, sairíamos da crise com um crescimento puxado pelas exportações (via salários ainda mais baixos), o que exige a eliminação da contratação colectiva, despedimentos rápidos e baratos, menos impostos para as empresas e para os mais ricos. Acontece que as exportações destinadas à zona euro encontram a procura interna dos países mais ricos reprimida pela política orçamental e pela erosão do Estado social, além da concorrência da China; para fora do euro, a moeda forte é um poderoso obstáculo às exportações. As perspectivas de crescimento dentro da zona euro são, no mínimo, sombrias.
Evidentemente, com famílias, empresas, e também o Estado, todos ao mesmo tempo a tentar reduzir as suas dívidas, a recessão mantém-se e eterniza o endividamento. Assim, no quadro da UE, qualquer proposta de reestruturação da dívida portuguesa não é nem politicamente viável - a actual configuração jurídico-institucional da zona euro é a única que interessa à Alemanha - nem politicamente consequente, porque não toca na causa central do endividamento, a integração nos mecanismos de causalidade circular e cumulativa geradores de divergência (como Gunnar Myrdal bem explicou) e a inerente ausência dos instrumentos de política económica decorrentes da perda de soberania.
O programa agora divulgado serve uma táctica política implícita (ver ponto 15 do sumário executivo): a reestruturação da dívida é a primeira etapa de um afrontamento com a UE que, tudo o indica, nos levaria à saída do euro. Em meu entender, é má táctica. Para liderar o país, é necessário falar-lhe sem rodeios. Só enunciando de forma ponderada o grande objectivo da saída do euro é possível congregar vontades genuínas e mobilizar apoio popular para a hora da verdade. A esquerda que quer mostrar-se bem-comportada, escrevendo nas entrelinhas, não irá longe porque a credibilidade exige frontalidade. O povo já deu sinais suficientes de que não aceita a velha maneira de fazer política.
(O meu artigo no jornal i)
8 comentários:
Para se ser ainda mais frontal, porque é que antes de falar na reestruturação da dívida porque não falar na própria dívida? 78 Mil milhões oferecidos graciosamente aos maiores parasitas do país? Mas a anedota não pára aqui:
O Banco Central Europeu (BCE), segundo os próprios estatutos, está proibido de comprar dívida diretamente aos Estados mas tem toda a liberdade de financiar a banca a uma taxa de juro muito baixa (1%), não impondo quaisquer limites na utilização desse dinheiro. Este facto permite que os bancos possam obter lucros extra à custa das taxas de juro elevadas que cobram não só aos Estados, mas também às famílias e às empresas.
No entanto, o BCE pode comprar dívida soberana, ou seja, dos Estados, no chamado "mercado secundário" onde têm acesso os bancos. Portanto, está-se perante a situação caricata que permite à banca especular com a divida emitida pelos Estados, da seguinte forma:
O BCE não pode comprar directamente a dívida ao Estado português, mas já pode comprá-la aos bancos (os celebérrimos mercados) que a adquirem. E então o esquema especulativo montado pela UE e pelo BCE para enriquecer a banca à custa dos contribuintes, das famílias, e do Estado português é o seguinte: a banca empresta às famílias, às empresas e ao Estado português cobrando taxas de juro que variam entre 5% e 12%, ou mesmo mais, depois pega nessa divida, titularizando-a, e vende-a ao BCE obtendo empréstimos a uma taxa de juros de apenas 1%.
De 2008 a 2011 - EM APENAS TRÊS ANOS A DIFERENÇA DE TAXAS DE JURO DEU À BANCA PORTUGUESA UM LUCRO DE 3.828 MILHÕES DE EUROS.
Estatutos do BCE:
Capítulo IV - Funções monetárias e operações asseguradas pelo SEBC:
Artigo 21.º - Operações com entidades do sector público:
21.º 1 - De acordo com disposto no artigo 104.º do presente Tratado, é proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer forma, pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais, em benefício de instituições ou organismos da Comunidade, governos centrais, autoridades regionais, locais ou outras autoridades públicas, outros organismos do sector público ou a empresas públicas dos Estados membros; é igualmente proibida a compra directa de títulos de dívida a essas entidades, pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais.
'Escrevendo nas entrelinhas'
=
'causa central do endividamento, a integração nos mecanismos de causalidade circular e cumulativa geradores de divergência'
Muito mobilizador!
(A preocupação do jose com a mobilização é de facto comovente. Não são de facto) precisas entrelinhas para nada.
Mas estou de acordo quer com o autor do texto, Jorge Bateira, quer com o Diogo
Falar frontalmente , sem rodeios.
É esse o caminho
De
Valhamo-nos!
Na perspectiva actual, nada nos salvará, à Europa, nem á esquerda, nem ao mundo, deste individualismo novo-rico (burguês), não delineado mas praticado por todos (ai os media, que nos fizeram) do que uma "sharia" baseada numa posição irredutivel como a que o Tea party utilizou com os seus, obrigando-os a formalizar um documento de total idoneidade e entrega à causa.
Dirigentes entregues à causa:
- Património visível e consentâneo com a média( de Mem-Martins, não de S.Pedro do Estoril ou que o valha).
- SNS, Educação pública, não é para os filhos dos outros, é para os Nossos.
- Bem-estar é e só pode ser entendido por Bem-comum.(a Rua é de todos, alguém-zela-por-alguém)
-A força, em quem não sabe dar a mão, gera... opressão (chamem-lhes os chairmans e ditadores o que quiserem).
Façam o favor de dizer no Largo do rato (em Paris, na Escócia e no Bangladesh):
Façam-se Homens, ou ides ser comidos.
Ou, inventemos rápido a III batatada geral, que depois a gente volta a entender-se.
Esta mentira asfixiante em que nos embrenhamos, é que não; entendamos o absurdo, mas usemo-lo a favor da Humanidade. TOLERANCIA!
Como se nao bastasse ja a "excelencia de conteudos" dos LdB ainda temos nas entrelinhas estas respostas esclarecedoras, melhor 'e impossivel :)
Continuamos a verificar e a sentir (e os mais pobres são os que mais o sentem) que o dinheiro é o mal universal que está no origem, pela ganância, pela ambição de maior riqueza, pelo desejo do poder que o dinheiro dá, continuamos a ver que o dinheiro é a causas de todos os males - e desde que existe sempre vem atingindo os mais carenciados. Então, se é um mal, se é como uma carraça agarrada a uma grande parte da humanidade, porque não se discute, pelo menos discute a sua existência a a possibilidade de entrarmos noutro sistema?
Sendo a dívida externa o problema, mais grave e mais abrangente é possível compatibilizá-lo com um apelo contínuo (à esquerda - http://videos.sapo.pt/gH4d0VUpYKZzW0ozMacM) ao relançamento do crédito para a economia?
É exequível um "haircut" acobertado de cerca de 5o%? Os estilhaços legais e financeiros não serão insustentáveis?
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