O acto de contrição de Cavaco perante o seu homólogo alemão, Joachim Gauck, mostra, mais uma vez, como o debate em torna da natureza da crise que vivemos não é sobre o passado. É sobre o futuro. Para Cavaco, para Passos, para Portas, e para os nossos credores, Portugal tem a crise que tem por culpa própria. A expiação é, portanto, um dever nacional.
Seja porque não soube adaptar-se às exigências da moeda única, seja porque viveu acima das suas possibilidades, seja porque não fez as reformas que devia, seja porque foi despesista e não se preocupou com a sustentabilidade do Estado Social, seja porque não travou as PPPs - seja qual for a versão escolhida desta história, todas pressupõem que a nossa crise é, na sua origem, uma crise de finanças públicas, causada por uma certa forma de despesismo.
Quem pensa assim nunca conseguirá verdadeiramente criticar e opor-se às políticas deste governo. Pode dizer que foram excessivas, pode dizer que foram injustas, pode lamentar os seus resultados, mas não pode dizer que são erradas. Se o problema é o despesismo, então a austeridade - em maior ou menor grau - é necessariamente a solução.
A rejeição das políticas deste governo requer uma alternativa à narrativa que as sustenta. Sem essa alternativa, estamos condenados a jogar no terreno do adversário. E a perder.
Desde meados dos anos 90 que Portugal tem acumulado dívida externa, sobretudo privada. Com a crise financeira internacional de 2008, o mecanismo através do qual essa dívida era financiada implodiu. Quando o Estado interveio, o que era uma crise de balança de pagamentos, transformou-se numa crise de finanças públicas. A crise de finanças públicas não é uma causa, mas sim uma consequência da crise.
É simplista e redutor interpretar os nossos desequilibrios externos como sendo causados por despesismo. Se olharmos para a primeira década do século como o culminar desse alegado excesso, incorremos mesmo num erro factual: entre 2002 e o início da crise, Portugal foi, juntamente com a Alemanha, o país da zona euro onde a procura interna menos cresceu. A ter havido um período despesista, ele ocorreu entre 1997 e 2001, período em a procura interna cresceu quase o dobro da média da zona euro. Depois disso, e até ao início da crise, não houve qualquer tipo de "festa".
O que caracteriza a chamada década perdida não é o despesismo, mas sim uma fortíssima desaceleração do crescimento económico. E é sobretudo a estagnação económica que explica o aumento do peso do endividamento na economia, não o contrário.
A estagnação económica deve-se a vários choques, todos eles negativos.
Depois um curto mas forte crescimento na procura interna, que a adesão ao euro e a queda das taxas de juro havia tornado possível, acabou a "festa". O investimento em construção, por exemplo, está em queda desde 2002. Ao mesmo tempo, o país assistiu a uma significativa alteração das suas condições de competitividade. O alargamento a leste agravou a condição periférica do país, na medida em que desviou fluxos de investimento privados, que não foram compensados por um reforço dos fundos europeus. A entrada da China no comércio internacional, teve efeitos assimétricos nos diferentes estados-membros. A estrutura e especialização produtiva Portuguesa foram fortemente afectadas. E a apreciação do euro só agravou a situação.
Quando a crise chegou, Portugal estava a responder a estes choques e a investir no combate aos défices estruturais da economia portuguesa, procurando requalificá-la. A chamada década perdida é, na verdade, uma década de profunda transformação estrutural. É uma década de resposta a sucessivos choques, não é uma década de despesismo e desvario. Os números, pelo menos, não o mostram.
A crise financeira de 2008 não veio expor os pecados do país e os seus alegados excessos, mas sim as suas fragilidades e as contradições de uma união monetária incompleta e disfuncional. Para quem não se conforma com a culpa, para quem não aceita a narrativa que divide a zona euro entre países virtuosos e pecadores, esta é a primeira lição a aprender.
(artigo publicado na edição online do Expresso)
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5 comentários:
"A falta de competitividade externa foi combatida através da despesa pública e políticas sociais (que aumentou cerca de 60% na primeira década do século), o que retirou incentivos aos agentes para a necessária transformação. Ao invés de incentivar a transformação com vista a uma maior competitividade externa, os consecutivos governos incentivaram os agentes a virarem-se para a procura interna."
http://oinsurgente.org/2014/07/01/da-transformacao-estrutural-que-nao-aconteceu/
Podemos até recusar a culpa, o que não podemos é recusar a responsabilidade.
Um artigo mole que não explica coisa nenhuma. Não lhe parece estranho que haja (ao mesmo tempo e em todo o mundo) uma «Crise Financeira» nos bancos, quando são precisamente estas as únicas entidades a quem é permitido criar dinheiro (do nada)?
Depois, os Estados pedem dinheiro emprestado aos Bancos a 5%, 6%, … 12% para o oferecer a (“recapitalizar”) esses mesmos Bancos?
É tudo tão absurdo que me custa compreender como é pessoas medianamente inteligentes engolem isto.
Parabéns João Galamba: não é fácil escrever tantos parágrafos e não dizer nada de relevante. Neste exercício de branqueamento - para lá da mediocridade técnica e intelectual que ele encerra - consegue o J. Galamba essa coia notável que é a de falar num conjunto de consequências sem nunca lhe abordar as causas, em especial, a primeira de todas elas: a da decisão política que subjaz à aplicação de todos os tecnocratismos europeus. Fala do Euro, ignorando por exemplo o desarrincanço meio chula - como diria o B. Bastos, que assim mesmo qualificou o "porreiro pá" de Sócrates e Barroso - do seu correligionário Guterres ao fazer citações bíblicas para falar da importância da moeda única enquanto pilar da sustentação do edifício europeu. Então e nesse tempo, não eram previsíveis e não foram efectivamente previstos os efeitos assimétricos e divergentes do Euro em diferentes economias nacionais? E quanto ao alargamento a Leste, não era também sabido que as alterações da estrutura institucional europeia e dos mecanismos de tomada de decisão que lhe estavam associados, trariam as consequências que de facto trouxeram? E que posição teve o PS a que o Galamba pertence e em cujo seio vive, quanto a estas matérias (O PS no seu todo e não este ou aquele para deixar de fora nesse tiroteio selectivo precisamente o outro ou outros)? Nada, absolutamente nada, que não fossem exercidos deste mesmo jaez: da redondilha da vacuidade, do sofisma e do lugar comum. Mas deixe lá Galamba, o seu trabalho está feito e o lugar no Céu há-de estar assegurado em conformidade.
«Quando o Estado interveio, o que era uma crise de balança de pagamentos, transformou-se numa crise de finanças públicas.»
«Quando a crise chegou, Portugal estava a responder a estes choques e a investir no combate aos défices estruturais da economia portuguesa, procurando requalificá-la.»
Eis os dois misteriosos factos que erradicam a culpa!!!
Interveio, como?
Estava a responder desde quando, e a investir em quê?
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