sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Salvação nacional?


1. Fez ontem um mês que Vítor Gaspar apresentou, através de carta tornada pública pelo próprio, a demissão a Passos Coelho. Ao contrário do que tem sido dito, o ex-ministro das Finanças não reconheceu, com a sua demissão, o falhanço da austeridade. Para Gaspar, o que falhou foram outras coisas: não houvesse democracia, com as suas insolentes instituições (Tribunal de Contas) e as suas amplas liberdades (manifestações) e tudo correria bem; não fora a liderança incompetente do primeiro-ministro (incapaz de impor a TSU e de pôr ordem no governo e na coligação) e tudo teria andado nos eixos; não fora uma «inesperada» quebra excessiva da procura interna (fruto de incontroláveis «intempéries» e «ventos desfavoráveis») e o plano teria funcionado como vem nos livros e nas folhas de excel. A economia de um país em concreto - e onde há pessoas - é que estorva tudo: na lua o programa de ajustamento teria corrido às mil maravilhas.

2. Todos os episódios surreais que se sucederam à saída de Gaspar ajudaram a ir desviando a atenção do essencial: a demissão do ministro constitui, em todo o seu esplendor, uma irrevogável certidão de óbito passada à austeridade (agravada nas suas consequências pelo afinco em «ir além da troika»). Gaspar não o assume nesses termos, mas a sua receita fracassou: pela sua própria natureza, não serviu, não serve e não servirá para nenhuma espécie de consolidação, de ajustamento ou de retoma. A comparação entre as previsões inscritas na versão inicial do Memorando com o resultado obtido dois anos depois apenas confirmam essa evidência. De facto não se trata, ao contrário do que Cavaco Silva tentou sugerir no discurso do 25 de Abril, de simples «falhas nas estimativas». Trata-se da consequência, palpável, de uma abordagem errada (tanto na teoria como na prática) e que por isso não resolve, antes agrava, a crise. Cavaco sabe-o bem e há muito tempo.

3. O elemento central da crise política é pois o demonstrado fracasso da austeridade. E por isso a única tomada de posição, consciente e responsável, digna de um imperativo de «salvação nacional», teria sido a de pedir contas ao governo e à própria troika, afirmando que a sangria inútil não mais poderia prosseguir. Que um governo sem qualquer escrúpulo, e ávido por poder continuar a chafurdar no pote, não tenha esse sentido de responsabilidade e de decência, não surpreende ninguém. Que um presidente alinhe pelo mesmo diapasão, fingindo que nada se passa e que o caminho é continuar a escavar o buraco, de modo a agradar à tutela externa, só surpreende quem possa desconhecer que é Cavaco Silva o actual inquilino de Belém. Nesta matéria, os seus primeiros sinais, logo após a demissão de Gaspar, foram inequívocos: aceitou de imediato dar posse a Maria Luís Albuquerque (assegurando a prossecução do desastre) e procurou, já depois da demissão irrevogável de Portas, amarrar o PS ao andor do memorando e do pós-troika. Como se a crise não fosse mais do que uma fractura que se abriu no vaso da coligação e que a cola socialista ajudaria a remendar e reforçar.

4. Mas para a história ficará também o entendimento singular que Cavaco Silva tem da democracia, mesmo em tempos de salvação nacional. Para não marcar eleições antecipadas (o único mecanismo consistente e credível de clarificação política - e capaz de permitir inverter a queda para o abismo), o presidente não só decidiu ignorar o divórcio crescente entre o governo e o povo, como determinou que o «compromisso de salvação nacional» apenas se faria com PP, PSD e PS, recorrendo ao argumento de que estes partidos «representam 90% dos Deputados à Assembleia da República». Para Cavaco, as sondagens não contam para demonstrar que BE e CDU até já significam, hoje, 20% do eleitorado. Mas já valem para afirmar que a antecipação de eleições elevaria «o grau de incerteza e a falta de confiança dos agentes económicos e dos mercados no nosso país», perante o cenário - tido como altamente provável - de que nenhum partido alcançasse a maioria absoluta, ou de que não fosse possível encontrar acordos partidários estáveis.

Mas não se preocupem, pois o presidente garantiu que vai estar atento e vigilante, mesmo que se estejam a reforçar os sinais de coerência, insuspeição e integridade deste governo.

2 comentários:

antónio m p disse...

Excelente documento. 'Tá tudo aí!

Anónimo disse...

Na sua carta de demissão, Vítor Gaspar nunca disse que a austeridade tinha falhado enquanto política. Nem que a culpa era dos portugueses por não se ajustarem ao modelo.

Gaspar apenas disse que ele foi incapaz de aplicar o modelo de austeridade correctamente. Segundo Gaspar, a culpa de isto estar a correr mal não era da política de austeridade, nem de um obstinado povo que não age de acordo com o previsto (essa é a cantiga actual do Passos Coelho). A culpa é apenas de Vitor Gaspar que foi incapaz de aplicar a magnífica e imaculada política da austeridade.