quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Rendas «antigas» e rendas «congeladas» não são a mesma coisa

Com a divulgação dos resultados dos Censos de 2021 generalizou-se a ideia (ver por exemplo aqui, aqui ou aqui) de que o universo de «rendas antigas» (contratos celebrados antes de 1990) é ainda significativo, representando cerca de 16% do arrendamento total. Um dado a que acresce o facto de 48% destes fogos terem valores de renda inferiores a 100€, percentagem que atinge os 79% quando se consideram as rendas abaixo de 200€.

Não é por acaso, contudo, que se invoca o ano de 1990 para definir o dito universo de «rendas antigas»: é esta a data a partir da qual o arrendamento passou a estar completamente liberalizado. De facto, a opção por esse marco temporal é o que permite associar as «rendas antigas» às «rendas congeladas», atribuindo-se assim um significado político aos cerca de 151 mil fogos arrendados antes de 1990 (os tais 16%), sugerindo que a questão do «congelamento das rendas» continua a ser relevante no mercado de arrendamento.

Sucede, porém, que não se pode falar em «rendas antigas» como equivalendo a «rendas congeladas». Porquê? Porque o total de «rendas antigas» não diz apenas respeito ao arrendamento privado, incluindo também o arrendamento público, assente num princípio da «renda social» e que, por isso, se dissocia das «rendas de mercado» e da questão da regulação da oferta privada. Ou seja, apenas excluindo a oferta pública do universo de contratos anteriores a 1990 se torna possível determinar o universo de «rendas congeladas» que ainda subsiste.


É esse exercício, de aproximação ao valor real de «rendas congeladas», que o gráfico aqui em cima procura ilustrar. Considerando que 94% das cerca de 85 mil habitações públicas construídas até 1990 se encontram arrendadas (ou seja, aproximadamente 80 mil fogos), o número de contratos de arrendamento privado passa a ser de 7,8% (cerca de 72 mil) e não de 16,4%. O que, tendo em conta o universo de rendas com valores inferiores a 100€, aponta para um número de fogos com «rendas congeladas» a rondar os 34 mil, que representam apenas cerca de 3,7% do total de arrendamentos. Muito aquém, portanto, das cerca de 151 mil «rendas antigas» e dos 16% que as mesmas representam.

Por precipitação, desconhecimento ou de forma deliberada, faz-se muitas vezes uma equivalência entre «rendas antigas» e «rendas congeladas», contribuindo, em qualquer caso, para alimentar o eterno «mito do congelamento das rendas». Isto é, a ideia de que as «rendas congeladas» têm ainda um peso relevante no mercado de arrendamento e que, por isso, constituem a principal causa da alegada «crise do arrendamento» (ignorando-se, nestes termos, a importância decisiva da preferência das famílias pela aquisição de casa própria, como se procurou demonstrar aqui).

8 comentários:

Anónimo disse...

Chame-lhe o que quiser, o facto é que quase ninguém arrenda casa. Porquê? Porque perde de facto a posse e o direito sobre a casa. É isso que explica que haja tanta casa fechada. Vai mudar? Claro que não. Fica tudo na mesma. O que não há é dinheiro para construir "habitação social" para os filhos da burguesia citadina obrigados a irem viver para os subúrbios. É a vida. Não há Príncipe Real mas há Brandoa.

Nuno Serra disse...

Caro Anónimo,
O mercado de arrendamento está muito mais dependente das condições de acesso à aquisição de casa própria do que do quadro legislativo do mercado de arrendamento, como muitas vezes se pensa. Não por acaso, aliás, o número e peso relativo do arrendamento aumentou em 2021 face a 2011, como demonstram os Censos.
A questão dos fogos devolutos é de facto muito importante. Tão importante como complexa na diversidade de situações que envolve, devendo realmente ser tratada e explorada em termos de soluções.
Cumprimentos,
Nuno Serra

Anónimo disse...

Caro Nuno Serra, perdoe-me a burrice, mas não consigo perceber o seu raciocínio, pelo menos a partir do que escreveu.

Há cerca de 151 mil fogos arredondados antes de 1990. Aproximadamente 80 mil fogos, das cerca de 85 mil habitações públicas construídas até 1990, encontram-se arrendados. Daqui parece concluir, pela diferença, que apenas cerca de 72 mil (arredondando) das «rendas antigas» são de arrendamento privado.

Mas quem lhe garante que os 80 mil fogos públicos atualmente arrendados são de «rendas antigas»? Podem perfeitamente – até diria, sem mais informação, que será o caso da grande maioria – ser de arrendamento posterior. Não significa que não fossem eventualmente arrendados antes de 1990, significa apenas que os arrendatários atuais, eventualmente diferentes dos originais, os podem ter arrendado depois disso.

Se for o caso – e volto a insistir que o Nuno não nos fornece dados para concluir diferentemente – não é lícito proceder à subtração para apurar a dimensão do arrendamento privado nas rendas antigas.

Jose disse...

Como sempre a questão de 'como, quando, e a que custo' se põe na rua um inquilino que não paga a renda, ou que a abandona degradada, não é mencionada!
Quanto às rendas sociais: qual é mesmo a relação do rendimento do agregado com a renda da habitação social?

Nuno Serra disse...

Caro Anónimo,
Este exercício é uma tentativa de aproximação ao número de rendas congeladas que subsistem, no conjunto das rendas antigas. E assenta por isso num pressuposto: a oferta pública, seja qual for o valor das rendas, não deve ser contabilizada para este efeito. E o que temos é, de facto, cerca de 85 mil fogos propriedade pública construídos antes de 1990, que representam 70% do atual parque público. Estimar que a parcela de fogos arrendados, neste universo, está em linha com o peso relativo de fogos arrendados apurado pelo INE em 2015 (93%) não me parece irrazoável, na falta de informação censitária mais precisa sobre o parque público, de que o INE não dispõe.
Cumprimentos

Anónimo disse...

Caro Nuno, não é bem isso que contesto, ou que continuo a não perceber. Admitamos, como primeira aproximação, que há de facto cerca de 80 mil fogos de propriedade pública arrendados atualmente. O que me parece erróneo é admitir que essas 80 mil rendas são antigas, anteriores a 1990.

Imagine, meramente a título ilustrativo, que desses 80 mil arrendamentos, 60 mil são de arrendamentos modernos, entenda-se posteriores a 1990, e apenas 20 mil são de arrendamentos antigos, anteriores a 1990. Neste caso, pelo seu raciocínio, o número de arrendamentos privados anteriores a 1990 seria cerca de 151 mil - 20 mil = 131 mil e não cerca de 71 mil.

Nuno Serra disse...

Caro Anónimo,
Compreendo a sua questão e infelizmente o INE não desagrega, de facto, a tabela relativa à época de construção e escalões de renda por entidade proprietária. Isso seria o ideal, para as contas que sugere (chegar ao número de «rendas congeladas», privadas, até 100€, pela subtração das rendas públicas com valores abaixo de 100€.
Só que a questão é mesmo a de não considerar, integralmente, o parque público, independentemente do valor da renda, para se poder aferir o universo onde a questão do «congelamento» das «rendas de mercado» se coloca (o universo das rendas privadas).

Anónimo disse...

A localização dos imóveis dos contratos anteriores a 1990, pode ser um dado importante para explicar tanta saloiice política.

A minha hipótese aponta para que os imóveis desses contratos se localizam hoje em espaços hoje muito valorizados nas cidades (eventualmente até em espaços ditos como centrais).