quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Derivados de matéria-prima: o mercado ameaça sempre com mais opacidade

Está em curso na União Europeia uma discussão sobre a criação de um teto para o preço do gás nos mercados grossistas. 

A proposta da Comissão está a ser controversa e a dividir os Estados-Membros entre aqueles que a consideram pouco ambiciosa e os que defendem que vai estrangular o fornecimento por ser demasiado rígida. De formas simples, os lados dividem-se entre os que têm e os que não têm capacidade orçamental para comprar ao preço dos mercados e controlar domesticamente o preço do gás aos consumidores. 

Para além das diferentes respostas nacionais, que já de si são interessantes analisar, o que me parece mais importante sublinhar é como os mercados financeiros estão a reagir. 

O gás, como muitas matérias-primas, é vendido dos produtores aos distribuidores através de derivados futuros, isto é, um instrumento financeiro que assegura a previsibilidade do preço no futuro. Isto faz com que a matéria-prima seja vendida ao preço de referência destes instrumentos nas praças financeiras mais proeminentes. No caso do gás na União Europeia é o índice de preços associado à bolsa e (hub de gás) holandesa TTF (Title Transfer Facility). 

Já foi explicado pelo Paulo Coimbra neste blog como as grandes empresas energéticas que se socorrem destes produtos financeiros estão a ser confrontadas com uma crise de liquidez ao mesmo tempo que têm lucros extraordinários. Deixou claro o que isto pode querer dizer daqui a uns meses em termos de fardo nas finanças públicas. 

Para resolver este problema de liquidez, a Comissão Europeia decidiu flexibilizar as regras de exigência de colateral a estas empresas. Regras essas que foram criadas para salvaguardar o sistema financeiro. 

Agora, que está em causa uma eventual limitação do preço do gás, os mercados voltam a queixar-se dos impactos que esta medida terá em termos de liquidez. Diga-se de passagem que este teto apenas será acionado em circunstâncias de tal forma restritas que nem teria sido ativado quando em agosto o TTF atingiu o pico perto dos 340 euros/Megawatt. É uma medida em larga medida simbólica e cuja decisão continua a ser adiada. 



Mesmo assim, as plataformas que organizam estas transações financeiras já reagiram e estimam que iria prejudicar ainda mais a liquidez das empresas, com um aumento de 33 mil milhões de euros em colaterais. E daqui alertam que pequenas alterações no funcionamento dos mercados regulamentados (e com intermediários) faria os participantes migrar para mercados ao balcão (over-the counter, OTC). Estes são encontros entre duas partes privadas, sem uma instituição intermediária que garanta a cobertura do risco, e que, por isso, apresentam menos salvaguardas de transparência e justificação na formação dos preços. 

O BCE recentemente publicou um estudo sobre o impacto dos mercados de derivados energéticos na estabilidade financeira da UE. Sublinha dois aspetos importantes: o risco da grande concentração de posições neste tipo de contratos, ou seja, intervenientes no mercado terem muito poder de decisão, e a verificação desta tendência de migração para mercados opacos nos últimos meses, particularmente notória nos contratos de gás natural.


Esta discussão é relevante porque as dinâmicas nos mercados financeiros também contribuem para a formação do preço da matéria-prima inerente. A escalada no TTF deveu-se em grande parte à invasão da Ucrânia e ao estrangulamento na oferta de gás, refletindo o que se chamam de “fundamentos do mercado”. Contudo, também há indícios de uma parte da formação de preços ser explicada por pressões especulativas por instituições financeiras (e por não-financeiras que também se dedicam parcialmente a estas atividades) transacionarem entre si este tipo de contratos n vezes, lucrando com pequenos diferenciais de preços. 

É difícil mensurar a parte do preço que corresponde a estas pressões, e os próprios reguladores europeus têm dificuldades em responder a esta pergunta, não fazendo uma distinção clara entre o que são dinâmicas de "especulação saudável" e de manipulação. 

Contudo, estas não são negligengiáveis e já se verificavam muito antes da Rússia utilizar o corte do gás como arma de guerra. Por exemplo, um estudo de julho do ano passado mostra que a taxa líquida de rotatividade (net churn rate) do TTF, isto é, o número de vezes que um contrato financeiro é revendido depois da primeira vez que é formalizado, aumentou de forma constante na última década de 13,9 em 2011 para 114,5 em 2020. 

O que está a acontecer com o mercado europeu do gás (e energético em geral) é um bom exemplo dos perigos da financeirização, especialmente em setores-chave: o controlo da economia em função do que é socialmente útil fica subordinado às vontades dos agentes financeiros.

1 comentário:

JF disse...

Convém ter em conta:
1) Os preços do GN na Península Ibérica são estabelecidos mais pelo Mibgás, https://www.mibgas.es/pt, do que pelo TTF
2) Os preços Mibgás geralmente são inferiores aos do TTF.
3) O TTF está voltado sobretudo para o norte da Europa.
4) O volume de GN comercializado na bolsa TTF representa apenas uns 2% do volume total de GN comercializado na Europa.