quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Promiscuidades 1

"Obedeçam", fotograma do filme "Eles vivem" de John Carpenter

Fixem estes valores. 

Cerca de 20 mil milhões de euros anuais é o volume de contribuições sociais, pagas pelos trabalhadores (cerca de um terço) e pelo patronato (cerca de dois terços) para proteger a vida dos trabalhadores nas eventualidades que atravessam a sua vida, desde o nascimento, a infância, a formação profissional, passando pela doença, o desemprego, pela velhice, até à morte. E ainda mais cerca de 20 mil milhões de euros que é o capital detido pelo Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, uma espécie de "almofada" para casos de ruptura.

Agora, pensem como um banqueiro ou como um accionista de uma companhia de seguros. Imaginem no que poderiam fazer com esse dinheiro. São 20 mil milhões todos os anos - cerca de 6% do total de depósitos do sector bancário no 2º trimestre de 2022. Mas esse dinheiro está nas mãos do Estado para protecção dos trabalhadores. Pensem como poderiam convencer o Governo e os trabalhadores de que esse dinheiro está melhor nas suas mãos no que nas mãos de um Estado. 

Primeiro passo: criem um cenário de risco, de caos, de "insustentabilidade" das pensões, do sistema da Segurança Social. 

Segundo passo: façam a sugestão ao Governo de criar uma comissão - digam que é uma comissão técnica - que estude os "desafios" pela frente e como atenuar os riscos. Omitam os efeitos negativos das políticas que defenderam noutros tempos: que era necessário uma recessão (para, ao criar desemprego, baixar salários ou inflação) ou que era necessário que os salários nominais descessem (para aumentar a competitividade nacional). Digam que é para estudar. 

Terceiro passo: escolham para presidente dessa comissão "técnica" alguém desconhecido, de baixo perfil, sem capital político, sincero, bem intencionado, para dar um ar de credibilidade: afinal, trata-se de uma comissão menor, para discutir minudências técnicas de um assunto longínquo. Para a composição da comissão, proponham vários nomes "amigos" (em maioria ou mais influentes) e outros nem tanto (em minoria ou menos influentes, para "compor o ramalhete"). Como equipa "técnica", afastem da composição os representantes dos principais interessados - os trabalhadores.  

Quarto: Enquanto a comissão trabalha, lancem uma nuvem de opiniões na comunicação social. Para isso, contratem agências de comunicação que organizem conferências, encontros, debates, sugiram reportagens, passem dados estatísticos, relatórios da Comissão Europeia (os seus serviços são "amigos"). Convoquem os jornalistas para encontros informais, pequenos almoços, almoços, jantares, festas, férias na neve. Não, férias é demais. O Ricardo Salgado é que fazia isso e não se deu bem. 

No fundo, criem um ambiente propício para que, quando a comissão técnica surgir com o seu "livro verde" - com ideias no mesmo sentido das conversas havidas - tudo passe como faca quente na manteiga. Os jornalistas já estarão ambientados aos conceitos, à narrativa traçada, ao diagnóstico feito, à terapia sugerida. Todos falarão do mesmo. E todos - comentadores e jornalistas - passarão uma mensagem para os trabalhadores: façam o que vos digo ou terão pensões mais baixas. 

Repitam comigo: Façam o que vos digo ou terão pensões mais baixas.

Façam seguros de reforma ou terão pensões mais pequenas. Façam fundos de pensões de empresa ou terão pensões mais baixas. Façam fundos de pensões sectoriais ou terão pensões mais baixas. Aprove-se benefícios fiscais para as empresas que criem esses fundos de pensões ou terão pensões mais baixas. Aprove-se benefícios fiscais para os fundos de fundos de pensões ou terão pensões mais baixas. Nomeei-se "amigos" para as autoridades reguladoras dos sectores bancário e segurador para que falem a mesma linguagem ou terão pensões mais baixas.

Este é o primeiro plano. Depois, a prazo, falaremos do valor da TSU. Mas não é para já... 

Vá, repitam comigo!

3 comentários:

Anónimo disse...

Eu tenho um desses complementos de reforma. Há 30 anos. Comecei por pagar 5 contos, agora são mais de 200 euros por mês. O capital que lá tenho dava-me para passar fome durante 20 anos. Depois morria de fome. Que crescimento teve o bolo? Muito relativo. A fase final é dura de pagar. Quando acabar, pego na massa e ponho-a numa conta poupança (espero poder fazê-lo). Valeu a pena? De certo modo, sempre pôs disciplina nas poupanças. É solução? Nem coisa que o valha.
Benefícios fiscais? No princípio sim, depois acabou. Aquilo funciona como isca para apanhar o peixe. Se quiser sair antes do tempo lá se vão os benefícios.
É possível que se for um grande grupo profissional a fazer o investimento haja algum rendimento. Se for um particular estou convencido que quem fica com a fruta do bolo é o fundo.

Anónimo disse...

Qual é a alternativa? Deixar as poupanças dos contribuintes definhar ao ritmo da inflação?
Por que não olha para os fundos de pensões canadianos, americanos e outros, que conseguem investir de forma responsável os fundos à disposição ao mesmo tempo que obtêm retornos que aumentam a segurança e condições de vida de milhões de pessoas?
Esta última pergunta é retórica: não faz este exercício porque requer capacidade de análise e algum conhecimento financeiro, o que é bastante mais trabalhoso do que criticar tudo e atacar tudo com base meramente na ideologia. Continuem em frente... rumo ao abismo.

João Ramos de Almeida disse...

Uma coisa é a defesa da manutenção do poder de compra das poupanças dos portugueses, degradadas com a inflação, outra coisa é discutir o futuro das pensões em Portugal.

A defesa das pensões dos portugueses faz-se, estrutural e estrategicamente, pela salvaguarda do pleno emprego, pela valorização salarial, com salvaguarda do seu poder de compra, e uma justa distribuição do rendimento criado. A par dessa salvaguarda de base, dever-se-iam pugnar por um novo papel do Estado, nomeadamente regressando a uma preocupação – esvaziada a partir do mandato dos governos de Cavaco Silva - da criação de condições do Estado para a conseguir uma actividade de pensamento estratégico, económico, social, laboral, o que contribuiria para melhores escolhas nacionais do investimento e, com ele, da vida colectiva. Em terceiro lugar, haveria que rever as normas legislativas que, atropelando o papel do do Direito Laboral, foram aprovadas para dar todo o poder aos donos das empresas e colocando os trabalhadores no vil papel de peças de produção, voltando a criar todas as condições para uma vida saudável, equilibrada entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio, estimulando a constituição de famílias e, com ela, a natalidade.

Não se trata de dirimir uma ideologia por oposição a uma opção técnica. Trata-se de uma opção política, de uma diferente política do que aquela que tem sido aplicada até aqui e que acaba por ter tão maus resultados, em prejuízo dos pensionistas. Esta base deveria permitir a viabilidade das pensões, sem necessidade de recorrer às poupanças dos pensionistas. Não vou discutir por isso o que deveria fazer com as suas poupanças.

Não se deve é confundir as duas questões. Pessoalmente, tenho as maiores dúvidas sobre a utilização de fundos de pensões para salvaguarda das pensões. Por vários motivos: a primeiro é que em Portugal, os fundos de investimento têm tido remunerações abaixo das conseguidas pelo FEFSS público, o que demonstra bem o prejuízo que teriam os pensionistas. Segundo, que garantias tem que os fundos de investimento nacionais não desapareçam um dia? E nesse caso, quem pagaria as remunerações dos capitais investidos pelos trabalhadores? O Estado?

Como vê, há muitas questões técnicas por detrás daquilo que lhe parece apenas ideologia. Talvez o defeito seja meu ao não o tornar mais evidente. Tentarei ser mais claro para a próxima.