terça-feira, 5 de abril de 2022

Verdades cruas e falsas virtudes


Uma verdade crua emerge cada vez mais evidente da Guerra da Ucrânia: apenas os que estão disponíveis a ceder estrategicamente a Putin para pôr fim ao conflito têm como preocupação primal o povo ucraniano. Os intransigentes, que se julgam puros nesta história, são, na verdade, os que revelam a maior frieza e cinismo.

Os que defendem uma contra-invasão da NATO têm obrigacção de não ignorar que, tal como em experiências semelhantes no passado, o custo de vidas civis apenas seria amplificado. Já para não mencionar as vidas dos soldados europeus e americanos que morreriam no conflito.

Os que defendem aguardar sem ceder, porque as sanções tratarão de causar um golpe palaciano para depor Putin, fazem uma aposta com as vidas do povo ucraniano. Não sabem como nem quando tal irá acontecer. Semanas, meses, anos? E até lá o massacre continuará.

A orientação justa só pode ser condenar a invasão, rejeitar a escalada militar, rejeitar apostas improváveis de mudança política na Rússia e tudo apostar na via negocial, com vista a um "second best", uma solução menos má, que poupe o máximo de vítimas. Não é capitular. É ser realista.

Negociar não implica nunca concordar com a outra parte. Os que insinuam que os defensores da via negocial e da paz simpatizam secretamente com o agressor fazem um processo de intenção infame, sacrificador da honestidade intelectual e da lealdade do debate.

Trata-se apenas de avaliar a relação de forças e a consequência de assim não proceder, para nós mesmos e para quem está a ser agredido. Sempre houve negociações entre países com posições políticas totalmente opostas, não raras vezes após as mais bárbaras agressões. Quem defende a não negociação tem obrigação de olhar para as alternativas e avaliar se são melhores para o povo ucraniano e para o mundo. Será melhor uma invasão que soma guerra à guerra e morte à morte? E o que dizer da espera sebastiânica pelo putsch em Moscovo?

Não, não são soluções viáveis. Apenas na mundividência dos que apregoam falsas virtudes. Não raras vezes para mobilizar ódios e ganhos políticos internos. Estão muito pouco interessados no povo ucraniano que dizem defender.

4 comentários:

Jose disse...

«Não é capitular. É ser realista.»

Ser realista é não ser dissimulado.
O que os 'realistas' cá do sítio dissimulam é muito simples:
À Ucrânia compete ser realista cedendo a Crimeia e as repúblicas reconhecidas pela Rússia, mais uma neutralidade desarmada, mais uma genuflexão ritual periódica.
Se conseguir salvar a fronteira marítima a sul será já um ganho assinalável.
A adesão à UE talvez o Putin lha conceda se puder convencer-se poder ter aí um potencial agente infiltrado, e desde logo se lhe levantarem as sanções e o sentarem à mesa dos grandes deste mundo, com a reverência devida a um criminoso contumaz.

Lúcio Ferro disse...

Um dos melhores posts que tenho lido nas últimas semanas sobre esta guerra entre impérios. Partilho na minha rede, embora saiba que é de antemão um esforço inglório que só me trará dissabores e insultos.

Anónimo disse...

No fim tudo se resume a interesse ou a ignorância.

Anónimo disse...

Post muito bom, difícil de refutar.