domingo, 1 de novembro de 2020

Estamos em pandemia, não estamos?

(Roubado no Facebook a António Rodrigues)

Numa ilha, o vulcão está em erupção, mas os donos dos barcos privados - que dizem querer "ajudar" a população - não a deixam embarcar enquanto não se fixar um preço por embarcado. Contudo, a Lei de Bases da Saúde de 2019 - a tal votada contra a opinião da direita - prevê taxativamente que o Estado pode requisitar os barcos privados para a população se salvar. Mas os donos dos barcos resistem, pressionam, lembram que os barcos do Estado não chegam para todos e que estão a morrer mais do que se morria antes: "Nós temos aqui tanto espaço, venham para aqui". Só que os advogados dos donos dos barcos exigem que o Estado compre um bilhete por cada lugar no barco. "Aceitamos que nos paguem o que vos custa por cada lugar nos vossos barcos", diz um deles. "Não é para lucrar com a desgraça. Mas tem de se encontrar preços justos. A ministra tem de ser ministra da Saúde e não do SNS", disse esta noite o ex-porta-voz dos governos Cavaco Silva, Marques Mendes, no seu espaço da SIC. E os membros do governo abanam. 

Mas frise-se os termos da Lei: 

Ponto 2: "Para defesa da saúde pública, cabe, em especial, à autoridade de saúde: (...) d) Proceder à requisição de serviços, estabelecimentos e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes."

Não se fala de "pode" ou "deve": é uma determinação política: "cabe". Ora, atenda-se que uma pandemia parece ser ainda mais grave do que uma epidemia, porque está a ocorrer em todo lado simultaneamente.

Na Lei de Bases acrescenta-se: 

"3 - Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado." 

 

Dir-se-á: "Mas essa não é vocação do sector privado, o Estado é que deve cuidar de todos. O sector privado, em caso de desgraça, não pode perder dinheiro tratando do povo". Então nesse caso, se essa é uma tarefa apenas do Estado, então o Estado deve dotar-se de todos os meios para o fazer para que possa atingir essa sua finalidade colectiva. O bem geral deve estar bem acima da vontade do dono da porta. A porta pode ser mobilizada em nome do bem superior da colectividade. Por isso, a lei dá todos os meios para o Estado não se sentir capturado pela vontade dos interesses privados e egoístas. 

Se o direito constitucional à greve permite o seu afastamento em nome de "necessidades sociais impreteríveis", por que não os direitos legais dos interesses privados na Saúde face à "necessidade social impreterível" de combater a pandemia? Caso contrário, seria como se o Direito servisse sempre para prejudicar os mesmos. 

Mas os responsáveis governamentais parecem não ter vontade alguma de lidar com essa possibilidade, como se não tivessem coragem de requisitar os barcos e colocá-los sob a sua gestão e seu comando. A ministra ainda chegou há dias a adiantar a possibilidade de usar "a figura da requisição", mas nunca mais se ouviu falar disso. Estará esse argumento a ser esgrimido em reuniões? Ou alguém sentiu um calafrio pela coluna já a imaginar o que lhe diriam em Bruxelas?  

A direita e o Presidente da República parecem estar a pressionar para que seja necessário decretar o "estado de emergência". Mas então convirá o sector privado da Saúde - e Marcelo Rebelo de Sousa, que tanto quer intervir em véspera eleitoral - estarem preparados para todas as eventualidades, incluindo a mobilização da "intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado."

O que falta mais? 

10 comentários:

Anónimo disse...

Brilhante

Anónimo disse...

"Ao que parece ..."
Parece? O que parece é que o Governo não quer a colaboração do setor privado para não reconhecer a existência de um Sistema Nacional de Saúde.

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo 2,

Esse é um argumento válido. E é preferivel que o Serviço Nacional de Saúde seja dotado de todos os meios, inclusivé daqueles que esvaziem a necesssidade de um sector privado de Saúde, que todos trate por igual. Por outro lado, é vantajoso que o Estado não fique "capturado" pelo argumento "houve um momento em que contribuímos para o bem geral, agora queremos ser compensados".

Mas refiro-me à imensa chantagem que está a ser feita contra o Estado, com o fim de se sentar à mesa do Orçamento da Saúde. A vantagem legal está do lado do Estado. E essa enorme vantagem não pode e não deve ser esvaziada.

A lógica esgrimida pelo sector privado - "usem-nos em nome dos mais fracos" - pode ser usada contra si próprio. "Se é em nome dos mais fracos que ergue os seus argumentos, então está a colocar à disposição do Estado os seus recursos. E o Estado tomá-los-á, se necessário".

Agora, não se pode ter um pé assente em dois princípios simétricos: "Em nome dos mais fracos" e "em nome dos nossos lucros". Escolham. Mas de qualquer forma, segundo a lei, o resultado será o mesmo: o combate à pandemia comanda as prioridades.

Anónimo disse...

Sistema nacional de saúde?

O que é isso? Isso não faz parte da propaganda dos interesses privados na sáude?

O que fala a Constituição é de um Serviço Nacional de Saúde. O resto é o chouriço dado em troca do porco cobrado. E bem cobrado

Anónimo disse...

"inclusivé daqueles que esvaziem a necesssidade de um sector privado de Saúde"
Esta é a parte que eu não percebo, sinceramente,considerando factos de duas ordens:
- em todos (90%) os setores de atividade, da segurança à produção de alimentos, existe oferta privada que visa o lucro. Porque não na saúde? A saúde é mais importante que a alimentação, por exemplo?
- qualquer médico pode, sozinho ou com outros colegas, abrir um consultório, uma clínica ou um hospital e vender assim os seus serviços (com lucro, como em todas as outras atividades). Devia ser proibido?

Dito isto, acho bem que o Estado tenha o poder de requisitar qualquer tipo de serviço privado em situações excepcionais (como é o caso desta pandemia). Mas com este (grande) poder vem a responsabilidade: deve procurar que o processo seja feito em acordo, e naturalmente pagando os serviços requisitados (como paga todos os serviços ao setor privado, incluindo serviços de segurança privada, por exemplo!). Porquê esta atitude relativa oa setor da saúde em particular? Não percebo.

Unknown disse...

A requisição dispensa o pagamento?
Não.

E nem posso crer que se esteja perante um apelo à caridadezinha pelos mais fracos!

Anónimo disse...

Mais um tipo a confundir chouriços e porcas com a saúde
E a vender a rábula de qualquer médico poder abrir uma tasca e fazer dinheiro. Assim como a CUF. Ou aqueles energúmenos das PPP

Anónimo disse...

Excelente!

Anónimo disse...

Mais um a fazer o papel de cobrador de fraque das multinacionais da saúde.
Já não em nome da caridadezinha dos mais fracos mas sim da engorda dos mais fortes

Jozito disse...

Só não percebe, quem não sabe ler!
A lei fundamental é clara e não oferece duas interpretações!