Ainda me lembro do que escreveste no Verão passado: João Miguel Tavares foi crítico da abertura revelada pelo PSD de Rui Rio para convergências com o Chega. E estamos no Outono: agora que a convergência com a extrema-direita aconteceu, Tavares, qual salta-pocinhas em versão sonsa, lança mão do abjecto truque ideológico neoliberal desde pelo menos O Caminho para a Servidão de 1944 e faz equivaler o antifascismo mais consequente para a nossa democracia aos herdeiros, em moldes adaptados às novas circunstâncias, desse feixe de práticas políticas antidemocráticas que deu pelo nome de fascismo.
É um processo de normalização em curso que passa também pela televisão: em linha com o domínio das direitas no comentário de política internacional, uma área que consegue ser pior do que a economia, Jaime Nogueira Pinto, um dos ideólogos do Chega que vem de longe, do fascismo, passou a semana passada nos estúdios de vários canais, onde, por exemplo, comunista praticamente não comenta.
Nunca se pode confiar na generalidade dos autodenominados liberais lusos. A concretização da sua ideologia enfraquece objectivamente a democracia, através, entre outros, do aumento das desigualdades económicas e da impotência política associada à europeização. Se no centro do sistema mundial, perante este padrão, muitos liberais podem chegar a abandonar o liberalismo económico para salvar e até aprofundar as liberdades democráticas, nas periferias e semiperiferias lançam mão de tudo para aprofundar o liberalismo económico, mesmo que seja à custa das liberdades para a maioria.
Entretanto, a aceitação do Chega pelo resto da direita inscreve-se num programa que está presente no primeiro e dispensável livro sobre este partido, que abre com uma citação de Jaime Nogueira Pinto. Tudo bem ligado. Aproveito para deixar por aqui o artigo que escrevi sobre essa apologia mal disfarçada da extrema-direita no Le Monde diplomatique – edição portuguesa de Setembro:
Até dizer Chega
Adam Smith, uma das principais referências da economia política liberal, já nos havia alertado no século XVIII: quando os capitalistas de um mesmo ofício se reúnem para conversar, geralmente é para conspirar contra o público. No último século, capitalistas de diferentes ofícios, ou os seus representantes, reuniram-se frequentemente para conspirar contra as democracias. Em Portugal também. A 18 de Junho de 2020, numa quinta em Loures, como relata uma investigação do jornalista Miguel Carvalho na Visão, foi servido um belo repasto a «seletos convidados», que «pesam muitos milhões na economia nacional e até além-fronteiras»: reuniram-se para conspirar com o deputado do Chega André Ventura; a questão do financiamento deste partido não terá estado naturalmente ausente[1]. João Bravo foi o anfitrião. Este capitalista com negócios nas áreas da defesa, da segurança e dos incêndios, necessariamente entrelaçados com o Estado, afiançou: «desde 1974 que o País se afunda»[2].
A investigação de Miguel Carvalho deu-nos assim a ver um momento de consolidação das mais importantes redes sociais deste partido, sem as quais a acção nas outras redes, também chamadas sociais, nunca teria a mesma eficácia, até por falta de recursos. Profundo conhecedor da extrema-direita portuguesa, ou não tivesse sido autor do livro de referência sobre o seu terrorismo a seguir a 1974, Carvalho já havia começado a investigar a galáxia reacionária de que é feito o Chega: de quadros fascistas à mobilização de sectores evangélicos em modo bolsonarista, passando pelos negócios mais ou menos sórdidos – da segurança ao imobiliário de luxo – de muitos dos seus dirigentes, sem esquecer as ligações internacionais ou o caldo cultural obscurantista, de onde o negacionismo climático não está ausente[3]. É aliás neste caldo que mergulha hoje toda uma economia política neoliberal ao serviço do aumento dos poderes discricionários indissociáveis do capital e do Estado securitário.
Apologista até dizer chega
Num livro recentemente publicado por Riccardo Marchi, investigações como a última acima referida, onde é feita a denúncia de milhares de perfis falsos nas redes sociais, são apodadas, sem mais, de «boatos» vindos de uma imprensa hostil[4]. O livro de Marchi, que pouco ou nada acrescenta de informativo ao que na imprensa se tem publicado sobre o Chega, é apresentado por António Costa Pinto, na badana, como um primeiro estudo «sério e desapaixonado». Na realidade, contudo, trata-se de uma apologia muito pouco séria por parte de alguém que até parece ter vontade de replicar em Portugal a ainda dissemelhante realidade política do seu país de origem, a Itália, cujo vínculo externo à União Económica e Monetária determinou, desde há décadas, um processo estrutural com algumas semelhanças com o português: neoliberalização acompanhada de estagnação económica e de múltiplas fracturas sociais[5].
Quem conheça o reportório ideológico internacional do objeto de estudo de Marchi, saberá filiar um dos diagnósticos que este faz sobre a função «prosaica, mas extremamente positiva» que o Chega pode vir a desempenhar: a legitimação da direita, num contexto em que o próprio conceito de direita teria sido em Portugal «relegado para o reservatório das palavras tabu pela hegemonia cultural das elites no poder, determinada por contingências históricas recentes»[6]. Deste começo caracterizado por um populismo de direita até à adopção acrítica da expressão «marxismo cultural», oriunda da extrema-direita transatlântica, é só um passo que Marchi não hesita em dar.
O investimento normativo de Marchi está plasmado logo na capa do livro: o Chega seria A Nova Direita Anti-Sistema, formulação que os seus dirigentes naturalmente não enjeitam e que serve perfeitamente para dar uma útil aura a um partido que assumidamente quer purificar o único sistema existente, o capitalista, expurgando-o ainda mais das concessões democráticas que teve de fazer noutras épocas, com outras relações de força nacionais e internacionais, graças também ao programa positivo do antifascismo plasmado na Constituição de 1976. Um partido que procura enraizar o autoritarismo neoliberal recorrendo a um estilo populista triádico, isto é, o que alimenta uma clivagem entre o povo e uma elite político-cultural imaginária, acusada de privilegiar um terceiro grupo, regra geral racializado, que serve então de bode expiatório para fracturas cujas origens, quando são reais, radicam numa economia política que assim se vê ofuscada[7].
A variante de populismo mobilizada pelo Chega casa bem com uma variante de nacionalismo de matriz etno-racial, patente em formulações como as do principal ideólogo da formação partidária, Diogo Pacheco de Amorim, antigo membro da rede terrorista da extrema-direita a seguir a 1974: «Bem-vindos os de todas as raças desde que respeitem a nossa raça (…) Não queremos os qualquer-coisa-Khan que um dia perto do nosso Natal puxam de uma faca e desatam a assassinar pacíficos transeuntes»[8]. Esta citação não vem no livro de Marchi. Ficava mal, certamente, na fotografia imaculada que quis tirar e tornaria mais difícil a narrativa por si feita de um nacionalismo cívico, e até banal, que seria o do Chega. Este partido é, aliás, apresentado pelo autor como um produto retintamente nacional, secundarizando as suas cada vez mais evidentes e assumidas ligações europeias e transatlânticas, de Matteo Salvini ao obscurantismo armado de Jair Bolsonaro, faceta que convém realmente não sublinhar num livro desta natureza lançado em plena pandemia.
Dividido em três partes – o líder, o partido e as ideias –, o livro de Marchi garante-nos, entre muitas outras coisas, que André Ventura «testemunhou a humiliação de ser vítima de assaltos e da subsiodependência»[9]. A par do combate ao nebuloso «politicamente correcto», esta é uma das razões aduzidas por Marchi para defender que nada teria de racista o discurso de Ventura sobre os ciganos em Loures, a sua oportuna rampa de lançamento propiciada por Pedro Passos Coelho quando o actual deputado do Chega era militante e candidato do Partido Social Democrata (PSD). Pelo contrário, Ventura até teria usado um misterioso estudo, que não é referenciado, mas que é aparentemente tomado por bom pelo autor – o que diz tudo sobre seriedade –, segundo o qual, pasme-se, só 15% dos cidadãos de etnia cigana viveriam do seu trabalho. Em contextos delicados como este, Marchi dá à sua prosa uma demão de ciência política convencional, com o seu cortejo de economicismos: André Ventura, um «empreendedor político», e o seu Chega limitar-se-iam a responder de forma racional e instrumental a uma procura política que assim se encontraria com a nova oferta num equilíbrio mutuamente vantajoso. Prologando a metáfora, não há aqui, aparentemente, a hipótese de que esta oferta possa criar a sua própria procura, nem, como agora se vê, incentivar ofertas eventualmente mortíferas de uma extrema-direita agora mais confiante e organizada.
Marchi recorre a argumentos de autoridade, convocando, por exemplo, especialistas não referenciados para normalizar esta direita na sua conclusão.
Mas a técnica principal deste livro, também marcado por uma urgência apressada, é mesmo a seguinte: começa por tomar por boas as opiniões de dirigentes do Chega, recolhidas em entrevistas, a sua principal fonte, aceitando os termos por eles próprios definidos; depois mistura-os deliberadamente com as opiniões do autor, para que o leitor a certa altura já não saiba quem é o emissor, o que tem um óbvio efeito normalizador e até naturalizador – «No tema da educação, denuncia principalmente o marxismo cultural. Aqui, o partido combate a chamada ideologia de género implementada à socapa na escola pública»[10].
Um dos momentos sintomaticamente mais perigosos para o enraizamento popular do Chega ocorreu quando o seu programa político de 2019 foi escrutinado na sua vertente socioeconómica, já que apontava (e continua a apontar) para que as funções sociais do Estado tenham um «estatuto de mera residualidade», sendo o princípio prevalecente o «do utilizador-pagador, ou seja, quem usufrui de bens ou serviços, qualquer que seja o seu produtor ou prestador, terá de os pagar, salvaguardando (…) os casos de absoluta, óbvia e provada incapacidade para uma normal subsistência»[11]. Este trecho programático é claro nos seus propósitos destruidores e é de resto coerente com a defesa de um sistema fiscal regressivo e de uma transformação das relações laborais em versões modernas da praça de jorna. O Chega, assegura-nos um dos seus dirigentes, parafraseado por Marchi, «garante o acesso gratuito e universal a todos os portugueses, através do financiamento de serviços prestados por privados» nas áreas da saúde e da educação[12].
O programa é claro na defesa do cheque-saúde e do cheque-educação como medidas meramente temporárias e transitórias, como aliás Marchi reconhece, por exemplo, quando fala de transição para o «mercado livre», conceito convenientemente nebuloso neste e noutros contextos. A progressiva separação entre financiamento público e prestação privada tem de resto a vantagem de aproximar programaticamente o Chega do PSD, do CDS-Partido Popular ou da Iniciativa Liberal. Esta técnica retintamente neoliberal, com toda a promiscuidade público-privada associada, é na realidade o melhor caminho para chegar ao objetivo final tão claramente enunciado no programa de 2019. Nesta área, Marchi dá ainda espaço a dirigentes do Chega para alardearem algum recuo tático e um pretenso pragmatismo, ao mesmo tempo que elenca as vantagens putativas da visão geral e até diagnostica uma indefinição quanto ao papel do Estado nestas áreas num partido em consolidação. No entanto, todos têm a obrigação de saber que na variante de capitalismo que o Chega quer institucionalizar as coisas estão tão bem definidas quanto podem estar: o Estado que for necessário para garantir os interesses das fracções mais predatórias do capital, as que sempre esperam crescer à custa dos bens e serviços públicos que ainda sobrevivem.
É entretanto caso para lembrar a antiga responsável do BES-Saúde, Isabel Vaz, que disse que melhor negócio do que a saúde só o armamento. Estou certo que o anfitrião do tal almoço conspirativo, João Bravo, saberá isto demasiado bem. Como também saberá que, apesar de alguma retórica crítica do globalismo, o Chega defende os pilares institucionais da globalização mais intensa no continente europeu, o mercado único e a moeda única, ou seja, a política económica, a política cada vez mais unicamente enviesada para a direita. Quando Marchi ainda assim insiste que o Chega também defende um protecionismo re-industralizador – desta forma tornado impossível –, num contexto do que apoda de «mercado livre», num dos momentos de genuína confusão conceptual do autor quanto à economia política e à sua história, aposto que João Bravo saberá que livres são sempre os mercados estruturados por forma a garantir que o recursos fluem de baixo para cima na pirâmide social, aumentando desta forma a liberdade de alguns poucos à custa da vulnerabilidade de muitos. Trata-se de regressar em novos moldes a um certo espírito hierárquico de antes de 1974.
Normalizador até dizer chega
Na sua recensão ao que apodou de «panegírico ao Chega», Marina Costa Lobo defendeu que se lê «como um daqueles livros que os políticos lançam antes da campanha eleitoral para mobilizar o seu eleitorado e que são rapidamente esquecidos depois da eleição»[13]. Se é verdade que alguns dirigentes políticos lançam livros deste tipo, creio que este pode além disso ser lido como uma tentativa de dar um sentido à trajetória de André Ventura, líder de que reconhecidamente o partido depende hoje, e de branquear e depurar o ideário do Chega, o que é de molde a dar confiança a um círculo de apoiantes que também estará em expansão, num partido que precisa de conquistar eleitorado e de ser visto como um interlocutor aceitável pelos outros partidos da direita, impedindo qualquer lógica de círculo sanitário tributária, por exemplo, do antifascismo, assente num patriotismo constitucional. Se o Chega conseguir os seus intentos, creio que este livro e o seu autor não serão esquecidos pelos seus responsáveis.
Entretanto, alguns autodenominados liberais, como João Miguel Tavares, anteciparam criticamente a abertura revelada pelo líder do PSD, Rui Rio, para alinhamentos com o Chega, o que é de resto coerente com o autoritarismo antiparlamentar de que Rio também tem dado mostras[14]. Tratar-se-á de transpor para Portugal uma solução política que tem feito o seu caminho em vários países da União Europeia. Estes liberais fingem esquecer que este tipo de convergência entronca numa economia política, com escala europeia, que é partilhada pelas direitas e que economiza de forma cada vez mais visível na democracia.
Quem também leia a entrevista dada pelo líder do PSD-Madeira, Miguel Albuquerque, no seguimento da abertura de Rui Rio, conseguirá identificar uma sintomática sintonia ideológica entre os termos fixados previamente no livro de Marchi e as declarações normalizadoras do Chega feitas por Albuquerque[15]. Marcadas por um anticomunismo tão primário que o leva a imaginar um espaço público atravessado por uma cultura marxista, na realidade dele praticamente ausente, estas declarações confirmam que não existirá cordão sanitário e que na política das direitas, e nos seus investimentos, raramente há coincidências.
[1] «Chega: As mãos que embalam Ventura», Visão, 23 de Julho de 2020.
[2] Idem.
[3] «Chega, SA: Por dentro do reino de “Deus” Ventura», Visão, 21 de Maio de 2020. Ver igualmente Miguel Carvalho, Quando Portugal Ardeu – Histórias e segredos da violência política no pós-25 de Abril, Oficina do Livro, Lisboa, 2017.
[4] Riccardo Marchi, A Nova Direita Anti-Sistema – O caso Chega, Edições 70, Lisboa, 2020, p. 103. Esta secção retoma alguns dos termos de uma primeira nota crítica a este livro: https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2020/07/chega-de-apologias.html.
[5] Para uma análise das raízes estruturais e conjunturais da ascensão da extrema-direita em Itália, num contexto de abdicação e de esvaziamento das esquerdas, ver David Broder, First They Took Rome – How the Populist Right Conquered Italy, Verso, Londres, 2020.
[6] Riccardo Marchi, Ibid., p. 17.
[7] John Judis, A Explosão do Populismo, Presença, Lisboa, 2017.
[8] Citado em João Rodrigues, «A economia política que diz chega», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2020.
[9] Riccardo Marchi, Ibid., p. 33.
[10] Riccardo Marchi, Ibid., p. 94.
[11] https://partidochega.pt/programa-politico-2019.
[12] Riccardo Marchi, Ibid., pp. 161-162.
[13] Marina Costa Lobo, «A “verdade” do Chega», Público, 11 de Agosto de 2020.
[14] João Miguel Tavares, «Rui Rio e o caminho para o centrismo autoritário», Público, 28 de Julho de 2020.
[15] Público, 8 de Agosto de 2020.
4 comentários:
Muito bom
Muito bom.
Creio que esta tudo dito neste texto, sobre o terrorismos, fascista, neofascista, liberal e neoliberal em Portugal-, pouco devo acrescentar, a não ser; dizer que a maioria da comunicação social (e não só), é responsável de fazer propaganda a esta canalha...
O Sr. Rui Rio derrete-se todo ao pá do Sr. Ventura.
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