quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Racismo, violência policial e o programa do Goucha


Acha que a ida do Mário Machado ao Você na TV é grave? Eu também. Mas considero que há outros convites com efeitos perversos mais devastadores que têm merecido menos atenção.

Esta senhora, comentadora residente no Você na TV, consegue condensar no seu discurso a maioria dos elementos de um discurso neo-fascista: a condenação da crítica ao Estado, a condenação da crítica às instituições que, como a polícia, corporizam esse mesmo Estado, a exaltação da nação, o apelo à revolta contra aqueles que, na sua perspetiva, pretendem atacar a unidade nacional e o instigar do ódio contra os políticos, pagos pelo “dinheiro de todos nós”. É uma campanha gratuita de ódio contra o Mamadou Ba, um ativista que dedica a sua vida ao essencial combate ao racismo.

A presença destas figuras em espaços mediáticos como os programas da manhã é duplamente perigosa. Em primeiro lugar, porque falam sempre investidas de um argumento de autoridade. São sempre o “senhor doutor” ou a “senhora doutora” especialista na sua área. Este elemento, aliado a um espírito mais acrítico do público-alvo destes programas, conduz que as suas palavras sejam tomadas como legítimas e tidas como produto de um raciocínio meramente técnico. Em segundo lugar, são introduzidas por alguém da maior confiança dos espetadores – é a este propósito bom lembrar que muitos espetadores, muitos deles idosos e sugestionáveis, têm uma relação com os apresentadores dos programas da manhã, como Manuel Luís Goucha ou Cristina Ferreira, de grande carinho e proximidade. Por mais exótico que seja a personalidade que escutam, o facto de estar no “programa do Goucha” é percecionado como sendo alguém que merece a confiança do apresentador e, por conseguinte, a sua.

Isto significa que a TVI e o Manuel Luís Goucha querem promover o fascismo? Não creio. Deve-se até notar que Manuel Luís Goucha tem um percurso marcado por posições globalmente progressistas. Significa apenas que o apelo aos piores instintos do ser humano, entre os quais o medo e o ódio à diferença, são muito rentáveis, porque proporcionam muitas audiências. E que os responsáveis televisivos não olham a meios para atingir fins. O perigo é óbvio, mas esses responsáveis ignoram-no de modo negligente – o espetáculo vem primeiro. O fascismo e o racismo que nunca abandonaram as profundezas do senso comum do cidadão português sentem-se legitimados a expressam-se livremente, suscitando um mecanismo que se auto-alimenta e dá audiências a programas que dependem de opiniões polémicas, de dar soluções fáceis a problemas complexos e de ir ao encontro dos instintos mais primários dos seus espetadores. E é por este meio que, pé ante pé, um discurso propenso a soluções autoritárias se consolida: o racista que não gosta de pretos mas tem receio de o dizer sente a sua posição normalizada e começa a assumi-lo abertamente, alavancando a expressão desassombrada de outros como ele; o cidadão comum, que acha que todos os problemas do país se resolveriam se os políticos ganhassem menos e não fossem corruptos, vê a sua perceção reconhecida; as pessoas começam a sentir que o único obstáculo à implementação das soluções simples que resolveriam os seus problemas são os seus representantes democráticos. Afinal, se eles e os “senhores doutores da televisão” estão de acordo, é porque é verdade – a democracia é só uma força de bloqueio que deve ser afastada. Daqui até ao apelo à vinda de uma figura autoritária e redentora que restaure “glorioso destino da pátria” é apenas um sopro.

Sabemos que os tempos são perigosos quando temos de reafirmar os valores mais óbvios e que há muito pensávamos acima de qualquer discussão na sociedade.

Por isso, sejamos claros: o racismo é um problema enraizado na sociedade portuguesa. A PSP, como parte dessa sociedade, é permeável à criação de bolsas racistas no seu seio e tem registo histórico desses processos. O caminho não passa por fingirmos que não é assim. Claro que a maioria dos polícias não são racistas: sabemos isso. Na sua maioria, são trabalhadores assalariados que desempenham uma tarefa imprescindível para a sociedade em condições salariais e materiais muitas vezes difíceis. Mas este reconhecimento não nos pode manietar a crítica àqueles que abusam do poder de autoridade que o Estado lhes confere para abusar de minorias raciais. Não reconhecer o racismo como um problema sistémico das forças de segurança que deve ser combatido é um erro. É imperioso ter uma estratégia de política pública para o combater. Os polícias dignos que se solidarizam com os seus colegas abusadores por instinto de defesa corporativa fazem um péssimo serviço à sua profissão e à imagem da polícia. Deveriam ser os primeiros a condenar aqueles atos e dizer que são atos não representativos da instituição a que pertencem. Infelizmente, poucos seguem este caminho.

Não nos equivoquemos: é sempre possível existirem abusos por parte de qualquer grupo social. Mas a questão do poder é determinante. A obrigação do poder público é colocar-se ao lado do agente que tem a posição mais fraca na relação de forças. É por isso que o código de trabalho se deve colocar do lado do trabalhador contra o abuso do patrão – não significa que o trabalhador não possa incumprir nos seus direitos. Significa somente que tendo o patrão mais poder, a probabilidade de exercer abusivamente a sua ação é maior. O mesmo raciocínio se pode estender aqui: sendo a polícia o agente a quem a autoridade do Estado é conferida,a probabilidade de cometer abusos é maior e o Estado deve agir com mão férrea sobre os que abusam das suas funções. Porquê? Porque nos representam a todos nós. Num momento em que está tão na moda dizer que o “Estado falhou”, este é o melhor exemplo de um falhanço do Estado. Quando um polícia abusa da força contra um cidadão, fá-lo em nome de todos nós. E nós, como democratas, não podemos tolerar isso.

Não é por acaso que os abusos policiais tendem a a acontecer em bairros onde as pessoas são mais pobres e as minorias étnicas são mais numerosas: é que, sendo mais marginalizadas pela sociedade, têm menos visibilidade e capacidade de queixa e isso potencia o abuso. Ou alguém acha que as consequências disciplinares de abusar da força contra o filho de um branco de classe média são iguais às de violentar a filha de um empregada de limpeza negra num bairro periférico?

Nestes momentos, é também importante colocar-nos ao lado dos justos. Daqueles que dedicaram o seu percurso a prevenir o abuso e a trazer os de baixo ao de cima. A trazê-los à condição de cidadãos de plenos direitos. É por isso que quero expressar a minha admiração pública pelo Mamadou Ba, que dedica há muitos anos o melhor do seu esforço a defender os que menos têm voz na sociedade, os excluídos dos excluídos. A ação do Mamadou e do SOS Racismo tem sido inexcedível nesse combate. Poder-se-á ter excedido nas suas declarações? Porventura. Nenhuma generalização a partir de um grupo é boa. Mas esse desabafo mais imponderado não nos pode impedir de cerrarmos fileiras a seu lado na defesa de um país para todos, onde nenhum tipo de racismo, nem o explícito nem o latente, são tolerados.

Vivemos tempos estranhos. Estejamos atentos.

5 comentários:

Jose disse...

«O fascismo e o racismo que nunca abandonaram as profundezas do senso comum do cidadão português»

Trata-se aparentemente de uma especificidade do cidadão português.
São um 'natural' do ser português traduzido em senso comum.
Noutros lugares, pressupõe-se, os cidadãos não sofrem dessas maleitas que são as profundezas do 'ser português'.

Jose disse...

«os abusos policiais tendem a acontecer em bairros onde as pessoas são mais pobres e as minorias étnicas são mais numerosas...»
Poder-se-á induzir que os polícias vão a esses bairros cevar a sua mais profunda natureza de portugueses, fascistas e racistas, confiantes na impunidade que resulta de aí existirem «menos visibilidade e capacidade de queixa»

Sempre se ignora que:
- Nesses bairros mais provavelmente se acoitam gangues violentos, marginais e criminosos
- Que aí vivem cidadãos que de cidadania sabem pouco e exercem coisa nenhuma, vitimando a maioria dos seus moradores
- Que o uso da violência pela polícia tem a óbvia justificação de para ela serem treinados
- Que em relação aos polícias, como em relação a qualquer outro cidadão temos que considerar que um «desabafo mais imponderado não nos pode impedir de cerrarmos fileiras a seu lado na defesa de um país para todos»; que o desabafo seja uma bastonada a mais, só quem nunca se viu numa arruaça o não compreende.

Manuel Simões disse...

Racismo .......racismo social ?! religioso ?! cultural ?! elitista ?! qual ? ou o racismo é algo que apenas é exercido da parte de brancos contra pretos ? os pretos não são racistas ?!

Meus Senhores , racistas sempre existiram , mas nunca foi um problema em Portugal , temos sim problemas de miséria , educação , cultura, saúde, igualdade de oportunidades ( onde estudam os filhos da Catarina ?! ) falta de apoio dos serviços públicos que se encontram decrépitos.

Mas, como neste momento tudo está óptimo e maravilhoso, neste País governado pela esquerda, não são temas para serem debatidos e muito menos resolvidos, assim como já não se fala de PPP`s, de ajudas à banca , já ninguém morre em hospitais , as escolas já não estão a cair . a CGD já não fecha agências pelo País deixando o interior ao abandono ( o banco publico ) os idosos não são tema , a EDP não é tema , a China e os acordos que faz com Portugal não é tema , os grandes investimentos públicos não são tema, os impostos não são tema , as cativações / cortes não são tema , as bolsas em atraso aos estudantes não são tema, a pobreza infantil não é tema , o abandono escolar não é tema , o banco de Portugal já não tema até anda por lá Srº Louça, a o corrupção está longe de ser um tema , a falta de meios na justiça não é tema, as demissões dos directores hospitalares não são tema , os tempos de espera para consultas e cirurgias não são tema , a subcontratação de médicos não são tema , os cheques de cirurgia não são tema , já nem existe emigração ............ Todos vivemos muito melhor.

O que restam a estes Senhores como causas ? como podem mostrar a sua indignação ? Como pode, tapar a falência do estado nas suas obrigações bem à vista de todos ?!
descobriram as tais causas fracturantes.

Um Senhor que veio do Senegal , que foi acolhido por Portugal em que lhe foi dada a nacionalidade Portuguesa , que está ao serviços da Assembleia da Republica , pago com os impostos de todos os Portugueses, se dirigi com tanto ódio e o instiga, no País que o acolheu, à sua população e às instituições.

Pergunto-me, quem é que neste caso transporta o racismo e o veste.

Se este País tivesse a mesma postura em relação a este Senhor , era imediatamente impedido de exercer qualquer cargo na Assembleia da Republica e retirada a nacionalidade.

Já fui emigrante , quando estamos em casa dos outros respeitamos as suas regras e de algum modo nos sentimos agradecidos por nos receberem e quando estamos mal, voltamos para nossa casa !

Estes Senhores apenas procuram protagonismo , vivem de dinheiros públicos , como é o caso deste Senhor . Não procuram resolver problemas.

São uns verdadeiros populistas .

Qualquer tema que os incomode é : aproveitamento politico. ( tudo em silêncio ).
Quem não concorde com o seu ponto de vista é apelidado de : fascista . ( tudo em silêncio).

A democracia , o debate , a diferença , não existe para esta gente detentora da verdade absoluta .

São racistas , todos temos que ser iguais ..........a eles !

Tudo o resto é excluído. E seria , se tivessem esse poder .

Quem são os racistas ?!

Moradores do Bairro da Jamaica dizem que acção da policia "não foi racista "

https://rr.sapo.pt/noticia/138573/moradores-do-bairro-da-jamaica-dizem-que-acao-da-policia-nao-foi-racista

( foram recebidos à pedrada e reagiram )

Qualquer abuso, a Senhora Joana Mortágua, sabe que vive num estado democrático e existem as instituições competentes para averiguarem .










S.T. disse...

Não própriamente um comentário ao texto de Diogo Martins, que estimo globalmente correcto porque não sigo os detalhes informativos do diz que disse nacional. E não sigo por considerar que se cai numa patologia da "distracção pela indignação" bem-intencionada mas que perde de vista questões mais globais.

A minha perspectiva é mais esta:

https://www.zerohedge.com/news/2019-01-24/ruling-elites-love-how-easily-were-distracted-and-turned-against-each-other

"Let's say you're one of the ruling elites operating the nation for the benefit of the oligarchy. What's the best way to distract the populace from your self-serving dominance in a blatantly neofeudal system?"

"Digamos que você pertence às elites dominantes que operam a nação em benefício da oligarquia. Qual é a melhor maneira de distrair a populaça do seu domínio de domínio que se auto-favorece num sistema descaradamente neo-feudal?"

"2. Divide the populace with calculatedly divisive cultural issues and turn the commoner class against itself: with no middle ground and no shared class identity allowed, the populace is easily sliced and diced into angry, disaffected tribes who blame whomever media propaganda has targeted as "the other" for the nation's woes."

"2. Divida a população com questões culturais calculadamente divisivas e volte a classe comum contra si mesma: sem terreno comum e nenhuma identidade de classe compartilhada permitida, a população é facilmente fatiada e dividida em tribos enfurecidas e descontentes que culpam quem quer que a propaganda dos meios de comunicação designe como "o outro" pelos problemas da nação."

S.T.

Anónimo disse...

O comentário de Manuel Simões é paradigmático, incorpora na perfeição a dialéctica que permite a entrada da extrema direita no espaço publico e no arco representativo dos países. A esquerda falhou e continua a falhar, e a falhar de forma óbvia, e sim são também responsáveis pelo ressurgimento de quem apenas pensa tirar a voz ao adversário seja de que forma for.