quarta-feira, 4 de abril de 2018

As duas pobrezas

Toda a gente sabe dizer mal da pobreza, da precariedade e da desigualdade.

Todos valorizam o voluntariado e gostam de dar uns sacos de plástico aos pobres, de ora em quando, ou à noite a quem dorme ao relento. Sabe tão bem: parece que somos úteis.

Até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, há bem pouco tempo fez um discurso muito repetido na comunicação social. "Eu tenho vergonha”, afirmou ele. Até disse algo tão radical como: "É urgente juntar ao crescimento e ao emprego uma estratégia autónoma nacional de combate à pobreza, para a sua erradicação". 

Ora, esta ideia da autonomia da pobreza é uma ideia errada porque dissocia os diferentes fenómenos da mesma causa - a eminente causa laboral. Como se os pobres medrassem nas cidades por autogeração, espontânea e até às vezes voluntária. Este pensamento tem se traduzido numa estratégia de combate autónomo aos pobres que tem, aliás, sido seguida - de forma mais ou menos acentuada - pelas políticas públicas, atacando apenas a juzante do problema.

Por isso, não é de estranhar que Portugal insista em ter - há décadas!! - mais de um quinto da população na pobreza. E tem ainda mais se não fosse o Estado a ajudar.

Mas quando alguém insiste em ligar o problema da precariedade laboral ao da pobreza, - fazendo eco de muitos estudos académico nesse sentido - aí o assunto é rapidamente empurrado para o quarto escuro da discussão política, de preferência acusando quem o suscita de ser comunista, radical de esquerda ou sindicalista da CGTP, o que é uma táctica muito Estado Novo de "resolver" o problema, mas tão actual entre nós.

Por isso, não é de estranhar que, ainda hoje o deputado do CDS António Carlos Monteiro, na audição do ministro do Trabalho sobre as alterações laborais em discussão, clamou que "a reforma laboral tem sido um sucesso". E lá voltou a repetir que foi essa reforma a suscitar o crescimento do emprego que hoje se sente. Ou seja, a reforma laboral de 2012 que aprovou uma longa lista de medidas, reduziu fortemente as retribuições salariais, aumentou o tempo de trabalho sem retribuição, acabou com o descanso compensatório por trabalho extraordinário, impediu a subida do SMN, asfixiou a negociação colectiva, abriu a porta à individualização da negociação, empresa a empresa, embarateceu fortemente o despedimento e ainda - pasme-se! - reduziu substancialmente os apoios aos desempregados... 

Por isso, como alertou o próprio ministro,"é deveras impressionante que os beneficiários do subsídio social de desemprego inicial sejam pessoas que terminaram um contratos a termo sem direito a subsídio de desemprego e com condições de recursos que os habilitam a subsidio social de desemprego... "

Não é por acaso que as sociedades mais felizes - outra notícia muito divulgada na nossa comunicação social - está nos países nórdicos, que têm - ainda... - dos mais elevados níveis de sindicalização. E que esse nível de sindicalização vai de par com os mais elevados níveis de protecção no emprego. E que esses níveis de protecção no emprego andam de mão dada com o incentivo à contratação colectiva e com o papel dos sindicatos nessa negociação. Não é por acaso que nesses países se insista na protecção laboral e social como um bem colectivo.

Nada acontece por acaso e convém olhar para o que se tem feito em Portugal. Todos a legislação laboral tem evoluído - há décadas!! - no sentido de "partir a espinha" ao sindicalismo; de esvaziar  e até asfixiar o papel dos sindicatos (de preferência substituindo-os por comissões de trabalhadores - às vezes promovidas pelo patronato como na AutoEuropa); de esvaziar a contratação colectiva, de facilitar uma contratação em trabalho temporário, reforçando uma negociação individualizada que se reflecte invariavelmente num despedimento individualizado por negociação (protegido pelo Código doTrabalho e como tal pago pela Segurança Social em subsídios de desemprego); de se encontrar formas variadas de contratação precária - e mal paga - em que o trabalhador perdeu todo o poder negocial; de esvaziar as entidades reguladoras (como a ACT) e de dificultar legalmente o papel da Justiça laboral, ao legitimar os despedimentos ilegais.

Também não é por acaso que não se quer olhar o problema de frente. É preferível que Portugal seja um país com produção integrada de pobres, a quem os protegidos distribuem sacos de plástico - algo, aliás, tão Estado Novo! Só dessa forma se poderá manter trabalhadores educados na ideia de que a sociedade é assim e deve ser assim - pobre e mal paga. Somos assim, nós os Portugueses, dizem. E quem não gostar, que emigre.
 
Mas esta foi a lógica que funcionou em Portugal há apenas uns 40 anos. É uma lógica que os filhos das personagens do Estado Novo herdaram e reproduzem no Parlamento como se defendessem, cega e automaticamente, o reino deixado pelos seus pais. Foi de lá que Marcelo veio e medrou. Vamos repetir tudo outra vez?

Está em discussão um conjunto de alterações laborais, introduzidas pela mão do Governo e cujos projectos legais ainda não são conhecidos. É bom que nos debrucemos todos sobre as implicações dessas alterações. Porque delas dependem milhões de pessoas. E o país.

10 comentários:

Paulo Marques disse...

"É bom que nos debrucemos todos sobre as implicações dessas alterações. "

Para quê? Independentemente do que o governo queira ou não fazer, o número de precários sem-abrigo é um KPI a maximizar na Eurolândia.

Anónimo disse...

Análise muito pertinente, sem dúvida. Mas tb me parece que seria importante reflectir se os sindicatos não têm a sua quota parte de responsabilidade no problema. Noticias como a que li hoje por aí, de que só na PSP haveria trinta e tal sindicatos ( e que não vi desmentida....) parece-me que justifica que se questione o sindicalismo que existe.

Cump.

MRocha

Anónimo disse...

Correcção ao meu comentário anterior sobre os sindicatos na PSP: a noticia refere 16 sindicatos e trinta e tal mil folgas para trabalho sindical.

MRocha

Geringonço disse...

O beato Catavento quer tanto acabar com a pobreza quanto a beata Jonet, ou sejam, não querem acabar com a pobreza querem é que, como exímios beatos que são, se perpetue tanto porque vivem da miséria dos outros como lhes incha o ego.

Se pensam que o Catavento é sincero quando diz que a pobreza tem que acabar estão no vosso direito, mas não se esqueçam que este tipo mui beato andou a receber milhares de €uros para preparar a sua candidatura nas TVs, incluindo a TV pública, durante anos a fio.

Falcão disse...

Bom, parece-me que os sindicatos têm uma quota parte bem dilatada no problema. Quando os sindicatos são vistos pelos trabalhadores como negociadores que têm uma agenda própria e por isso mesmo cedem naquilo que interessa aos trabalhadores em prole da sua agenda politico-sindical, não fiquem pois admirados que trabalhadores que em termos de informação e formação já não são como os seus congéneres de há século e meio criem as suas comissões de trabalhadores pagando depois do seu bolso o apoio juridico necessário. Os sindicatos em Portugal, nomeadamente as associações dos mesmos mais poderosas (ex: UGT) são disso mesmo uma boa montra. Por pura sobrevivência politica desfazem o que que os trabalhadores conseguiram com décadas de luta, como há uns anos, um senhor "sindicalista" que assinou em concertação social mais um arraso aos direitos dos trabalhadores, vindo mais tarde rasgar as vestes quando constatou o que foi sempre evidente... que o governo na altura não iria cumprir a sua parte no acordo. Que cabrões de sonsos e malabaristas!!!!

R.B. NorTør disse...

Mas deve-se criticar o sindicalismo que existe como?

Baseado no número de sindicatos? Deveria então haver um sindicato único, no fundo a comissão de trabalhadores aceite pelo patronato? Ou qual o número "tolerável" de sindicatos e como chegamos a ele?

Ou o problema são as folgas para trabalho sindical? São muitas? São poucas? Como se define um número aceitável? E na hora da concertação, a entidade patronal também tira tempo ao seu trabalho "normal" para preparar reuniões ou acções?

Fico sem perceber nada sobre qual o problema do sindicalismo na polícia...

Jose disse...

Pensar que tudo que não é conforme a um qualquer ideal de sociedade é o resultado de leis imperfeitas, de medidas de governação erradas ou incompletas é o mesmo que dizer que só o Estado Totalitário é solução.
Mas obviamente só se dirá que a Democracia está em crise...

Anónimo disse...

O esforço do pobre jose para fazer passar a bondade de leis paridas por criminosos em busca perpétua do seu saque.

Percebe-se o incómodo.

Adivinha-se até a lagrimazinha da ordem, em que sobressai a auto-piedade pelo facto dos legisladores não serem compreendidos ( afinal trata-se apenas de um ideal não conforme da sociedade). Mas em que se destaca também a conivência e a cumplicidade manhosa com as leis "imperfeitas" e com as "medidas de governação erradas ou incompletas".

Que diabo. O desemprego galopante, a miséria, o roubo de salários e de pensões foram apenas produto de"leis imperfeitas" e medidas de "governação erradas e incompletas". Mas o que é mau mesmo é o modelo de sociedade que não respeita,compreende, acata e apoia tais leis incompletas e tais medidas governamentais.

É no "ideal de sociedade" que se tem a ousadia de invocar, que reside a culpa de todos os crimes cometidos pela governança neoliberal. E quem lhes denuncia as pulhices ainda é crismado como apologista de um Estado Totalitário.

Não está nada mal para um defensor do Estado Novo e da perfeição legislativa do fascismo. Agora a fazer pela vida na perpetuação da actividade legislativa que lhes permita a continuação da transferência da riqueza de baixo para cima.

Mas francamente jose pensará mesmo que tais idiotices singram como argumentos?

Anónimo disse...

De facto a democracia está em risco. Desde Israel e a sua selvajaria que tende a imitar a dos seus antigos verdugos, até à trampa que reina nos EUA. Desde a Espanha, onde o franquismo esteve sempre colado ao poder judicial e onde aristocratas de meia-tigela foram deixados como legado de Franco, até ao estado pos-democratico que marca a nossa UE

Anónimo disse...

O que não sabíamos é que só se diz que a democracia está em crise.
E está em crise porquê?
Porque se diz que o Estado totalitário é a solução
Mas porque se diz tal asnice idiota, passe o pleonasmo?
Porque há quem diga que tudo o que não é conforme a um qualquer ideal de sociedade é o resultado de leis imperfeitas etc etc etc.

Mas há quem diga que tudo é resultado de leis imperfeitas?

E se não há quem diga tal, há que calar a crítica às leis imperfeitas e aos erros da governação?

Porque quem ouse afirmar tal é acusado de apologista de um estado totalitário?

O que é isto?

Um discurso tido como claro e lúcido a defender leis injustas e governações erradas? E a tentar calar vozes recalcitrantes, invertendo os termos da equação e fazendo a apologia da censura em nome da defesa deste ideal de sociedade?

Será que vem daqui a admiração confessa e expressa pelos censores duros e puros de quem assim tenta condicionar o debate?