sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

2015, o ano do contramovimento?


A poucos dias do final do ano, a Comissão Europeia lançou uma séria advertência a Portugal. Temendo a reversão do processo iniciado através do Memorando de 2011, o primeiro relatório de avaliação após a saída da troika enuncia preocupações e críticas. Basta ler a súmula do Diário Económico (23 Dezembro): "Quanto aos avanços face ao que estava previsto, as queixas são mais do que muitas. Os esforços para reduzir o défice estrutural "abrandaram claramente", o progresso nas reformas estruturais "perdeu o ritmo" e cita até recuos nas medidas já implementadas." Em linha com a mensagem da Comissão, o Presidente da República veio lembrar que "2015 não vai ser um ano fácil".

Entretanto, há anos que nos prometem uma viragem: primeiro com Hollande, depois com as eleições na Alemanha, mais tarde com as eleições para o Parlamento Europeu e na Itália, ultimamente com a nomeação de Juncker para presidente da CE. Falemos da última ilusão, porque as anteriores já estão enterradas. A proposta de Juncker para financiamento de um programa de investimentos de grande escala foi construída com base no desvio de muito pouco dinheiro do actual orçamento da UE para, através do BEI, construir um sistema de alavancagem financeira que mobilizaria investimento privado. Ou seja, a proposta de Juncker é uma estrondosa declaração de impotência da CE para utilizar a política orçamental, precisamente quando a Europa vive a sua mais grave crise desde a Segunda Grande Guerra.

Numa conjuntura que ameaça degenerar em deflação, vemos a CE a insistir para que se corte na massa salarial da função pública e nas pensões ("medidas duradouras"), além das chamadas reformas estruturais que mais não visam do que pressionar os salários em baixa. Daí o ataque ao pequeníssimo aumento do salário mínimo. Assim, confrontados com uma gravíssima crise de procura, estes economistas neoliberais mostram, sem qualquer pudor, o seu enviesamento para a oferta. Olimpicamente, ignoram a causa e insistem em medidas que só a agravam, como bem sabemos por experiência dolorosa. Ignorando a natureza endógena do défice, chegam a alertar para a necessidade de serem feitos cortes adicionais "se a recuperação económica abrandar." 

Se alguém ainda tem dúvidas quanto à natureza ideológica desta política económica, recomendo a leitura de um artigo sobre as reformas estruturais em França publicado no The Economist (Cycling, but where to?). Em última análise, trata-se de, fria e calculadamente, liquidar o Estado-social na periferia da UE para, fazendo ajoelhar estas sociedades, as submeter ao interesse estratégico das elites empresariais do centro do capitalismo europeu. Com a reconfiguração geopolítica da globalização em curso, com a China a assumir a liderança na Ásia, interessa à Alemanha uma reserva de mão-de-obra barata na própria Europa. É este o destino que os colaboracionistas preparam para o país, sempre em nome dos amanhãs que cantam numa "Europa social" respeitadora dos direitos humanos.

Na encruzilhada em que nos encontramos, o que espanta é haver quem, à esquerda, ignore a poderosa intuição de Karl Polanyi ("The Great Transformation") sobre as divergências de interesses entre sectores da classe capitalista, afastando a finança e os grandes grupos a ela ligados dos empresários e gestores com pouco poder, e sobre a capacidade de sedução ideológica exercida por líderes de direita, demagogos e carismáticos, sobre importantes sectores da classe trabalhadora. De facto, é um grave erro insistir na retórica da luta de classes e da revolução, desvalorizando, ou mesmo repudiando, a luta pela democracia no quadro nacional, como faz alguma esquerda. A tarefa que nos espera em 2015 é a da construção de uma alternativa política capaz de mobilizar o descontentamento, ou mesmo a raiva, transversal a vários sectores do trabalho e do capital, para que a sociedade portuguesa ponha termo ao empobrecimento que a UE nos impôs.

Esta crise foi uma grande oportunidade para o neoliberalismo, mas 2015 pode também ser o ano do contramovimento, para usar um termo de Polanyi.

(O meu artigo no jornal i)

9 comentários:

Anónimo disse...

" Em última análise, trata-se de, fria e calculadamente, liquidar o Estado-social na periferia da UE para, fazendo ajoelhar estas sociedades, as submeter ao interesse estratégico das elites empresariais do centro do capitalismo europeu"

Lapidar.

António Geraldo Dias disse...

Dado o interesse das suas questões:
1- "De facto, é um grave erro insistir na retórica da luta de classes e da revolução, desvalorizando, ou mesmo repudiando, a luta pela democracia no quadro nacional, como faz alguma esquerda."
A que esquerda se refere?Vê alguma oposição entre luta de classes,revolução e democracia?
2-"A tarefa que nos espera em 2015 é a da construção de uma alternativa política capaz de mobilizar o descontentamento, ou mesmo a raiva, transversal a vários sectores do trabalho e do capital, para que a sociedade portuguesa ponha termo ao empobrecimento que a UE nos impôs."
O empobrecimento resulta de um relação de forças favorável ao capital organizado que no mesmo movimento desorganiza o trabalho,um contra-movimento só pode partir do trabalho.

Unknown disse...

Eu atribuo grande culpa das nossas dificuldades ao excessivo endividamento e aos juros exorbitantes que suportamos. Não havendo empresários que criem mais riqueza e empregos, como vamos reduzir as despesas do estado sem agravar o sofrimento de quem tem que pagar impostos, para cobrir as despesas? Vais-se acusando do agravamento da não redução do desemprego e a UE acusa de não haver redução dos excedentes.Esperemos mais vida para 2015 e com mais coerência de argumentos.

Anónimo disse...

"Assim, confrontados com uma gravíssima crise de procura, estes economistas neoliberais mostram, sem qualquer pudor, o seu enviesamento para a oferta."

Aqui só me apetece perguntar:

Ainda não percebeu que a procura não necessita de estímulos?
Qualquer idiota consome ou tem propensão para o consumo.Não é necessário estimula-lo.

Rui Silv

Unabomber disse...

Amigo Rui Silva:
È verdade que "qualquer idiota consome ou tem propensão para o consumo": mas, também é verdade que para consumir qualquer idiota precisa de ter "dinheiro" ou ter "crédito".
E, obviamente que, para os idiotas terem dinheiro é necessário "produzir" - e é aqui que está o principal problema: há economias que consequem "produzir" bens e serviços de alta tecnologia, ao passo que outras só conseguem produzir produtos de baixa tecnologia, como é o caso de PT.
E, obviamente que as economias de baixa tecnologia têm muita dificuldade em gerar dinheiro para os idiotas puderem consumir decentemente, bem como para sustentar um Estado social decente.

Anónimo disse...

Caro Unabomber,

Abstraindo-nos agora do tipo de economia ( tradicional ou tecnológica ) , o dinheiro deverá representar ou corresponder a bens/serviços/riqueza efetivos. E portanto a ordem da sua "produção" não é comutativa. Só após a criação de bens/serviços/riqueza poderá "aparecer" o dinheiro, e não o contrário.

cumprimentos

Rui Silva

Anónimo disse...

Por acaso, a esquerda que defende a luta cá dentro é aquela que é atacada pela esquerda a que Bateira tem ultimamente andado ligado. Felizmente, há por lá quem tenha olhinhos (Bateira), mas não é esse o discurso do mais mediático autor dessa esquerda, nem dos outros media´ticos grandes umbigos de que se tem rodeado.

Jorge Bateira disse...

Caro Anónimo de 29 Dezembro às 19:19,

as minhas intervenções públicas são apenas isso, sem qualquer outro compromisso com os que simpaticamente me convidam. Tenho opções políticas próprias que publico nos meus artigos no jornal i, e sou o autor da primeira versão do Manifesto por uma Democracia Solidária (ver FB). Por isso, engana-se no seu comentário sobre más companhias. E digo-lhe mais: é saudável o debate crítico, com elevação intelectual, entre as diferentes correntes da esquerda.

Caro Rui Silva,

o seu pensamento económico ficou nos clássicos que Keynes muito bem criticou. Ao contrário do que afirma, o dinheiro precede a produção. É isso o que significa uma economia moderna baseada no crédito. Mas creio que não vale a pena continuar a falar disto para quem continua agarrado à Lei de Say.

Anónimo disse...

Caro Jorge Bateira,

E a Lei da Realidade já foi abolida?
Durante a década passada com o investimento público maciço crescemos tanto tanto, que ... falimos.

Ainda em Novembro e seguindo esta vossa teoria, a Venezuela aumentou o salário mínimo 15%. Vamos seguir com atenção o êxito desta medida...

Votos de Bom Ano.

cumprimentos
Rui Silva