sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Metidos num sarilho


Merkel e Schäuble concordam com a Comissão Europeia: a França e a Itália podem adiar o cumprimento do Tratado Orçamental desde que prossigam o caminho das reformas estruturais. Quanto a estas, sabemos bem o que significam. Quem tiver dúvidas pode consultar o "Annual Growth Survey 2015", onde se referem algumas dessas reformas. Por exemplo, promover o emprego exige reformas que acabem com a "segmentação" do mercado de trabalho, quer dizer, a eliminação de direitos, para que a precariedade seja a regra. Um mercado de trabalho sem Código do Trabalho - um mercado como o de uma qualquer mercadoria básica - parece ser o objectivo último desta reforma estrutural. É este o roteiro da UE para promover o emprego.

A política económica "séria", a que é partilhada pelos economistas que trabalham para os governos, CE e BCE, concentra-se nas condições da oferta nos mercados de bens e serviços - custos de produção, burocracia, leis laborais, "activação" dos desempregados, carga fiscal, etc. - e, quando a conjuntura é má, recorre à política monetária (juros, crédito). No seu discurso está sempre presente um pressuposto: a oferta é geradora da respectiva procura. Com base neste e noutros pressupostos (expectativas racionais) há muito criticados, a política orçamental foi desvalorizada com a ascensão do neoliberalismo. É isso que explica a incapacidade da UE para lidar com os efeitos desastrosos da austeridade que adoptou a partir de 2010.

Essa linhagem da teoria económica, na versão alemã do ordoliberalismo, formatou o Tratado de Maastricht e os seus aditamentos, caso do Tratado Orçamental. Como lembra Simon Wren-Lewis ("Why We Need Our Fiscal Policy Instrument Back"), até no auge da crise, em 2009, choveram críticas à decisão da UE de recorrer à política orçamental: "Porque deveriam os governos endividar-se mais quando os consumidores e as empresas tinham de reduzir as suas dívidas? Para os que não fizeram uma cadeira de Economia (o que inclui a maior parte dos jornalistas da política), o discurso dos políticos da direita, dizendo que os governos deveriam actuar como donas de casa prudentes, parecia fazer sentido. A Grécia e a subsequente crise da zona euro só pareciam confirmar esta ideia. O fetichismo do défice generalizou-se.

Perante a ameaça da deflação, e com a política orçamental bloqueada, cabe à política monetária salvar a UE. Sim, com o fim do euro também se afunda esta UE. Aflito, Draghi promete que levará a intervenção do BCE até aos limites da mais flexível interpretação do seu mandato: imitar, em menor escala, os bancos centrais que inundaram de liquidez o sistema financeiro mundial, provocando as bolhas especulativas que estão para rebentar. O que Draghi não pode dizer com clareza é que só uma política orçamental em grande escala pode salvar a zona euro. Ele sabe que, por maior que seja a liquidez nos bancos, as empresas não vão aumentar a procura de crédito para investir quando as vendas estagnaram ou estão em baixa. E também sabe que o grande plano de investimento de Juncker não passa de uma complicada engenharia financeira que visa contornar a impossibilidade, política e legal, de uma política orçamental expansionista com impacto relevante na periferia sul da zona euro. Aliás, o Tribunal Constitucional alemão nunca permitiria a participação da Alemanha numa UE dotada de uma política orçamental digna desse nome.

Em 1971, o economista Nicholas Kaldor percebeu que uma moeda europeia com esta configuração, programada no Relatório Werner, não era viável: "Ela requer um governo comunitário e um parlamento que assumam, pelo menos, a responsabilidade pela maior parte da despesa dos Estados-membros e a financie por impostos, com taxas uniformes, cobrados em toda a Comunidade" ("The Dynamic Effects of the Common Market"). Ou seja, para salvar o euro e esta UE, e na melhor das hipóteses fazer de Portugal uma região assistida, é preciso que aconteça o impossível: instituir rapidamente uma política orçamental europeia. É este o sarilho em que estamos metidos e, por responsabilidade das elites europeístas, o povo português não foi preparado para se livrar dele.

(O meu artigo no jornal i)

2 comentários:

Unknown disse...

Para quem frequente a França nota um desajustamento flagrante nas posições dos trabalhadores comparando com a Alemanha ou Holanda e percebe como a glória gaulesa é de fachada. Com salários superiores os alemães têm quatro marcas de automóveis pujantes, a França duas deficitárias; isto repete-se em toda a cadeia industrial. Só que em filosofia os gauleses vivem de quimeras e são os herois.

Anónimo disse...

Este pequeno rancor semi-encoberto contra a filisofia é a marca de água de alguns que a vêem como um trilho perigoso.
Porque esta história de por as pessoas a pensar é sumamente perigosa.

Mas vejamos mais de perto alguns dos dados, pela boca de Alexandre Abreu:
" Se é certo que o desempenho económico da economia alemã é bastante superior ao das economias da periferia da zona Euro, a verdade é que, pelo menos na última década, não deixa de ser apenas sofrível: o crescimento económico real da economia alemã entre 2002 e 2013 mal ultrapassou, em media, 1% anual. A diferença face à economia francesa, em termos de taxa media de crescimento económico real nos últimos dez anos, é de escassas décimas de ponto percentual - mas poucos seriam aqueles que o adivinhariam tendo em conta o discurso habitual acerca da "robustez alemã e da esclerose francesa"-

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