sábado, 1 de março de 2014

Mais uma década de missões deste capital?


As características da esfera social em Portugal têm implicações relevantes na esfera económica porque a preferência distributiva condiciona a afectação dos recursos e a preferência reivindicativa da população activa cria incerteza competitiva nas empresas, que não têm flexibilidade na organização do trabalho que possa responder com rapidez e eficiência às variações das condições do mercado. 

A miséria da novilíngua do empresarialmente correcto está ao nível da miséria do projecto político destes intelectuais orgânicos dos grupos económicos predadores em “missão crescimento” esta semana, “uma plataforma promovida pelo Fórum de Administradores de Empresas, Ordem dos Economistas, Ordem dos Engenheiros, Associação Comercial do Porto e pelo Projecto Farol”, com PowerPoint, claro. Queixam-se então de um “distributivismo” português, o de cima para baixo, que tornaria a vida impossível às empresas, coitadas. Demasiado Estado social e direitos laborais são mesmo os problemas de um dos países mais desiguais da Europa num momento em que até o FMI, em teoria, reconhece que a desigualdade excessiva prejudica o crescimento, embora a prática seja a que se conhece.

Na realidade, o seu projecto é o de reforçar o presente “distributivismo”, o de baixo para cima, do trabalho para o capital, de dentro para fora, acentuando a pobreza de cada vez mais face à riqueza de cada vez menos. Sabem no fundo que este projecto, dado que muitos cidadãos querem um Estado social robusto e segurança e decência no trabalho, tem de passar pelo condicionamento externo da democracia na escala onde esta existe. No fundo, querem um Estado ao seu serviço, reconfigurado para todas as capturas. Querem ir ao pote do Estado social, que promete muita consultoria, mais parcerias e boas rendas, e demolir os direitos laborais, aumentando os direitos patronais, assim garantindo que os salários reais não acompanham o crescimento da produtividade e que os rendimentos do capital crescem no rendimento nacional. Tudo é muito claro: da miséria da linguagem ao capitalismo de miséria, passando pelos usos e abusos de um Estado ao serviço do seu miserável projecto.

Não creio que a fórmula usada recentemente por António José Seguro – “Estado mínimo para mercado máximo” – seja o melhor enquadramento para o projecto neoliberal em curso, de Bruxelas a Lisboa e que os grupos económicos subscrevem e sustentam. Proponho outro enquadramento: a esquerda só faz sentido se defender o Estado para gerar regras do jogo que façam distribuição de cima para baixo, opondo-se a uma direita que defende o Estado para gerar regras do jogo que façam a distribuição de baixo para cima. Estado e regras do jogo, e seus efeitos distributivos, não são uma opção. A questão não é Estado mínimo para mercado máximo ou mercado mínimo para Estado máximo, até porque todos sabemos que os mercados pressupõem um Estado bem forte, porque não se auto-regulam e porque não surgem espontaneamente pela retirada do Estado. No fim, a esquerda defende o Estado social para minimizar o chamado Estado penal. A direita defende o Estado mínimo no campo social, mas não se importa dele máximo no campo repressivo ou noutros serviços para as fracções mais poderosas do capital poderem captar recursos. Fazer de guarda-nocturno, transferir recursos de baixo para cima, de dentro para fora e, já agora, limpar os cacos são tarefas que dão uma trabalheira política.

Temos de saber identificar bem os adversários. Derrotá-los exige controlar os grupos económicos que são a sua base material e a ingerência externa que é a sua grande alavanca política. Há coisas que não mudam. O que tem de mudar é a relação de forças.

1 comentário:

Um judeusito disse...

Texto que tem várias frases, que me apetecia salientar... mas escolho esta "No fundo, querem um Estado ao seu serviço, reconfigurado para todas as capturas. Querem ir ao pote do Estado social"

Ou seja, é o mesmo que todas as empresas quererem exportar, mas como se sabe isso não é possível. E lentamente se vai destruindo a
nossa economia, numa espécie de "hunger games" para empresas.