Início de um comunicado que vale a pena ler na íntegra. Fiel a um mote em que tenho insistido: “o futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz”.
quarta-feira, 6 de novembro de 2024
Comunicado
Duas imagens para hoje
Tive recentemente a oportunidade de visitar duas exposições na capital, uma no renovado e ampliado Centro de Arte Moderna (CAM) da Gulbenkian, agora com a apaziguadora e acolhedora pala, e outra no Centro Cultural de Belém (CCB).
A exposição temporária Linha de Maré encarna a forma de dar a ver parte da coleção do CAM (a forma antiga era mais pedagógica). Lá estava a Posta, de Rosa Carvalho. Depois, num dia luminoso, fui ver a perturbadora fotografia de Nan Goldin ao claustrofóbico interior do CCB. É ela na foto.
Peço desculpa pela brutalidade, mas deixo-as lado a lado no dia de hoje, porque sim, porque os tempos são brutos. Nem são só assim, nem serão sempre assim.
Tarefa
Nas presentes circunstâncias da vida internacional, precisamos cada vez mais, com mais estudo e empenho político, de reunir toda a tradição anti-imperialista, começando por tornar visíveis as conexões entre as formas dominantes de capitalismo e a geometria do imperialismo. Começa-se pela economia política e acaba-se na política impura e dura.
Não há ausência de luz
Rashid Tlaib foi reeleita para o Congresso dos EUA, uma exceção que confirma a regra plutocrática. Encarna o humanismo integral num sistema desumano, denunciando o genocídio do povo palestiniano, perpetrado pelo colonialismo sionista e apoiado por Biden-Harris com milhares de milhões de dólares e todo o respaldo diplomático do imperialismo. Sim, “o futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz”.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Uma frase
Há livros, como acontece com a introdução de Pierre Blanc à relação entre geopolítica e clima, que valem por uma frase como esta, que não me sai da cabeça nestes tempos: “A resposta que pode ser dada à degradação por vezes violenta do estado da natureza depende, em última instância, da natureza do Estado”.
segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Economia à dúzia
1. A economia ecológica tem sacudido a complacência dos economistas convencionais, que tratam a natureza, quando a tratam, como se fosse “capital natural”. Tudo é aí comensurável, redutível a uma mesma bitola pecuniária. Avaliam os custos das alterações climáticas através de modelos com uma taxa de desconto, como se o futuro fosse um fluxo de custos e benefícios pecuniários mais ou menos certos, mais ou menos distantes, como se a multidimensional e incomensurável catástrofe não fosse aqui e agora, parte de conflito social sobre custos sociais. “A maior falha dos mercados da história” não se resolve com paliativos ineficazes, simulando mercados ou com taxas e taxinhas incapazes, mas sim com alterações nos modos de produzir e nas relações de propriedade e de coordenação que lhes subjazem – mais plano, menos mercado.
2. A economia feminista tem colocado no centro do debate as questões da desigualdade de género – do “altruísmo imposto” às mulheres na esfera da reprodução social, em particular às mulheres da classe trabalhadora, aos seus custos, privatizados ou socializados, o que faz toda a diferença, sobretudo para elas: por exemplo, “quem paga pelos miúdos?” já é uma pergunta clássica. A economia feminista indica que um Estado social robusto faz maravilhas pela igualdade de género e de classe, do emprego à igualdade salarial, passando pela socialização do tal altruísmo, alimentando outros altruísmos, noutras esferas.
3. A macroeconomia keynesiana, em geral, e a teoria monetária moderna, em particular, tem avançado o nosso conhecimento sobre aspetos fundamentais da totalidade de uma economia monetária de produção moderna, que requer poder soberano na sua pilotagem, uma articulação entre Tesouro e Banco Central, por exemplo: um “grande Banco”, parte de um “grande Estado”, ao serviço da socialização do investimento, do pleno emprego e da eutanásia do rentista, através de taxas de juro tendencialmente nulas por comando e controlo, não é de outra forma.
4. A economia institucionalista fundamental tem exposto a nossa dependência de infraestruturas coletivas cruciais para termos vidas longas, saudáveis e ilustradas, formas de capital social, do real, que, aliás, implicam uma dívida social à nascença e uma lógica intergeracional que só o Estado, domador do tempo e da incerteza, está em condições de garantir.
5. A tradição soberanista na economia tem exposto a importância do protecionismo seletivo ou dos controlos de capitais, a relevância económica da fronteira política, sem a qual a economia não pode ser pilotada e democratizada.
6. A economia desenvolvimentista e evolucionista, aplicada às dinâmicas industriais, tem mostrado a importância do “Estado empreendedor”, da política industrial robusta, incluindo para a missão de descarbonizar a economia.
7. A economia marxista tem aprofundado a nossa compreensão sistémica da evolução do capitalismo, da globalização à financerização (termo de origem marxista que hoje toda a gente interessada no tema usa), passando pelo rentismo fundiário, uma das ausências flagrantes na economia convencional, e pelas dinâmicas conflituais dos sistemas de provisão, pensando, nos seus momentos mais “analíticos”, em utopias reais.
8. A economia das desigualdades tem investigado os determinantes institucionais dos padrões de injustiça social, dos rendimentos à riqueza, e dos processos de igualização socioeconómica; articulada com a investigação na área dos determinantes sociais da saúde, tem confirmado, rigorosamente, que há uma economia que mata.
9. Apesar de já não ser há muito um entusiasta deste programa com algumas décadas, reconheço que a economia comportamental tem sistematizado as “anomalias” dos humanos, que os afastam sistematicamente dos postulados do homo economicus, com implicações para o desenho institucional indispensável para a microeconomia, reconhecendo-se também por esta via que a economia é moral. Afinal de contas, as instituições enquadram e moldam as “preferências”, assim vistas como “endógenas”, o que é uma maçada para tantos modelos económicos e correspondentes apostas políticas.
10. A história crítica do pensamento económico tem exposto as ruturas e continuidades entre liberalismo e neoliberalismo, não sendo ambos um slogan, antes instrumentos de poder; a nova história do capitalismo tem sublinhado como o racismo, o esclavagismo, o colonialismo ou o imperialismo configuraram um “capitalismo de guerra” em várias escalas. E que anda por aí, ou se anda.
11. A metodologia e a filosofia da economia têm confirmado que factos e valores estão entrelaçados, que a separação positivo/normativo, tal como os economistas a afirmam, é uma fraude, que os economistas convencionais têm uma filosofia social espontânea e grosseira – uma variante do utilitarismo – e que o seu fetiche com o mercado e sua putativa magia produz, enquanto encobre, desigualdade socioeconómica e corrosão moral, sendo tudo menos neutro, quer nos seus efeitos, quer nas suas justificações.
12. Numa disciplina demasiado regressiva, tem havido, apesar de tudo, progresso nas margens plurais, em diálogo com outras disciplinas interessadas na economia substantiva. O drama é que muito do progresso ainda passa ao lado da esmagadora maioria dos estudantes de licenciatura, de mestrado e até de doutoramento, dada a falta de pluralismo; e o progresso é demasiado ignorado nos “Prémios Nobel” (aspas, muitas aspas), com uma ou outra exceção, de Myrdal a Ostrom, passando por Sen. Sim, a economia substantiva é demasiado importante para ser deixada apenas a economistas com formação deficiente e com correspondente aposta neoliberal zumbi.
domingo, 3 de novembro de 2024
Habituemo-nos à cooperação
Nos hemos negado a limpiar un Zara, estamos aquí para ayudar a la gente. no entendemos como, estando tantos pueblos llenos de fango y siendo tantas las personas de Alfafar, Sedaví y otras localidades que necesitan ayuda para sacar sus enseres se les ha ocurrido la idea de traernos a limpiar a un centro comercial.
Desculpai, o excerto da notícia tão reveladora fica numa das línguas dos nossos irmãos.
Seguindo Thorstein Veblen (1857-1929), economista institucionalista original norte-americano, o instinto predador, que tem livre curso no capitalismo, parasita e corrói o instinto cooperativo, o instinto do trabalho bem feito (workmanship), com utilidade social, que nasce e floresce em comunidade.
Todos temos a obrigação de saber que as motivações humanas estão muito para lá da visão esquálida do homo economicus, pensada por alguns economistas para naturalizar a tal predação.
Saibamos, crença inabalável na evolução humana, que as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas, sendo o dever da ação coletiva humanizar circunstâncias e desenvolver potencialidades, consolidar e educar os nossos melhores instintos.
O pessimismo desesperançado de muitos intelectuais progressistas sobre o povo corre o risco de favorecer inadvertidamente os predadores, do rentismo fundiário à alta finança.
Diz que há um efeito nocebo, a desesperança deixa o campo livre, apoucando tanto que ainda funciona e resiste. Saibamos então visibilizar e acarinhar a generosidade. É mais decisiva do que tantos se acostumaram a pensar. Olhar, ver e reparar, nos dois sentidos imediatos e talvez ligados desta palavra.
De resto, como nos ensinou Veblen, as instituições são “hábitos de pensamento”. Não nos habituemos então à predação, antes à cooperação. É que temos mesmo de a acalentar institucionalmente, se quisermos sobreviver e florescer.
sábado, 2 de novembro de 2024
Sem espessura
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
Camilo Mortágua
Na madrugada de sexta-feira, morreu Camilo Mortágua, aos 90 anos. Protagonizou vários episódios da resistência ao Estado Novo e foi condecorado por esse percurso como Grande Oficial da Ordem da Liberdade da República Portuguesa.
Leia-se o obituário completo, questão de combate pela memória, de respeito. Este blogue curva-se perante a memória de um combatente pela libertação do povo e endereça as mais sentidas condolências à sua família, amigos e camaradas, em especial às suas filhas, Mariana e Joana.
Paredes de vido, paredes de granito
O individualismo é em geral produto da sobrestimação do valor próprio e da subestimação do valor dos outros. (...) O individualista tem por vezes a ilusão de que o individualismo é uma manifestação de liberdade individual. A verdade é que, quem pense, decida e actue apenas pela sua cabeça e pela sua vontade individual acaba por ser prisioneiro das suas próprias limitações. Isolado, atrás da aparente liberdade, o indivíduo acaba por ser escravo de si próprio. (...) Ao contrário do que afirmam os defensores do individualismo, a opção pela formação de uma opinião colectiva e de uma actuação colectiva constitui uma afirmação de que o indivíduo se libertou das próprias limitações individuais. Constitui assim uma expressão da liberdade individual.
Álvaro Cunhal, O Partido com paredes de vidro, Edições Avante!, 1985, pp. 85-86
Estes excertos de Álvaro Cunhal ajudam a pensar sobre a relação entre liberdade individual e ação coletiva, para lá do individualismo liberal. Sem ação coletiva, não há liberdade. Cunhal ajuda a pensar politicamente, eticamente. Os que acham que a tradição marxista é desprovida de ética, devem ler, começando em Marx e recomeçando em Cunhal. Não podemos acabar em nós mesmos, realmente.
Nunca começamos ou acabamos em nós mesmos.
Basta pensar na lotaria nacional: a possibilidade de levarmos vidas longas, saudáveis e ilustradas depende sobretudo do país onde nascemos, de toda uma infraestrutura social. Depende também, e cada vez mais, da classe social, da lotaria familiar. O capitalismo de herdeiros aí está, com todo o desplante.
Daí a necessidade de reconhecer a dívida social com que nascemos, daí a necessidade de um imposto sucessório, por exemplo, daí a necessidade de irmos mais longe e alterarmos as relações de propriedade para barrarmos desigualdades tão cavadas. Daí a necessidade de termos consciência social. Há tantas necessidades sociais por satisfazer. E sabemos que existem meios e conhecimento. Falta poder.
Lá fui reabrir o livro herdado, com manchas, e lembrei-me do meu pai. Estávamos em 1985 ou 1986, tinha oito anos ou nove anos, e fui com ele ao Pavilhão dos Olivais, a uma sessão do PCP, com Álvaro Cunhal. Andaria em campanha com Cunhal uma década mais tarde. Lembro-me de ver o livro à venda e de ter fixado logo o nome, como não?
Andava na escola primária dos Olivais, em frente ao pavilhão, na mesma rua da faculdade onde acabei a lecionar, depois de muitas voltas. Também depois de algumas voltas políticas, acabei a apoiar o Partido de novo, desde 2015, depois de uma interrupção de pouco mais de uma dúzia de anos, de um voto no PS à militância no BE. Aprender e reaprender sempre.
Bom, o meu pai comprou o livro. O que é o Partido? E com paredes de vidro? Lá me terá explicado, mas já não me lembro da sua explicação. Leria o livro mais tarde.
É a única memória que tenho do meu pai de punho erguido, envergava um sobretudo esverdeado. Tê-lo-á erguido mais vezes, claro. Imitei-o, tal como imitava as minhas avós na Igreja. Sempre gostei de rituais, somos seres miméticos. Ele teria ainda muitas vidas, faleceria cedo demais, em 2017, num dia de fogo, num ano de centenário. Apesar de não ser militante desde o início dos anos 1990, o Partido estava representado, não me esqueço.
Quase quarenta anos depois dessa memória nos Olivais, prestei-lhe hoje, uma vez mais, a homenagem que devemos aos mortos, da Igreja cheia ao cemitério inundado de flores, onde se vai e não se está, creio que foi Saramago a dizê-lo. Hoje, estive mais tempo do que é costume, houve uma breve cerimónia religiosa. Enfim, é a homenagem aos que só morrem verdadeiramente quando morre a última pessoa que deles se lembra, como gostava de dizer o meu pai, que perdeu o seu pai ainda mais cedo, num acidente de trabalho em França, pouco antes de se tornar o primeiro licenciado da família. Morre-se a trabalhar.
Estou na sua, nossa, terra, geografia sentimental em estado impuro, rodeado de castanheiros e de carvalhos que, entretanto, cresceram, de paredes de granito que, entretanto, escureceram. Tudo o que escrevo parte daqui, agora estou consciente disso. Não estava, antes.
Há paredes de vidro por onde entram raios de sol, deixando ver o que precisa mesmo de ser visto, olhado, reparado.
História com h pequeno e grande, memória individual e coletiva. Sozinhos não somos nada. E somos sempre compelidos a tomar partido nesta vida. Mais vale fazê-lo de forma consciente.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Do capitaloceno
As televisões insistem nos carros deslocados pela violência das correntes, nas pontes tão facilmente derrubadas, nas imagens dramáticas dos resgates ou no cenário pós-apocalíptico que se seguiu. O capitaloceno é real, isso todos têm já a obrigação de saber. Serão cada vez mais os que tiram as conclusões radicais que se impõem.
Pela minha parte, partilho uma imagem particularmente violenta: um trabalhador, compelido por uma empresa capitalista da distribuição, arrisca a sua vida. Morreu-se assim na região valenciana.
Morre-se muito a trabalhar, porque as empresas colocam o lucro acima da vida. Ainda não há freios e contrapesos coletivos suficientes ao seu poder no presente momento da história. Os capitalistas têm ganho demasiadas lutas de classes.
Lembro-me da economia que mata do Papa Francisco, que dá a ver as conexões, da fórmula imorredoura de Chico Mendes, sindicalista da Amazónia morto a tiro - “ambientalismo sem luta de classes é jardinagem” -, ou de um slogan que vai à raiz - “fim do mundo, fim do mês, a mesma luta”.
Temos de ligar tudo, já que é de superar o capitaloceno que se trata.
quarta-feira, 30 de outubro de 2024
O imobiliário na sua própria bolha
«O regime fiscal de Residente Não Habitual (RNH) e o programa de autorização de residência para investimento [Vistos Gold] deveriam ser revisitados para atrair investimento direto estrangeiro», defendeu há dias o presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII).
Hugo Santos Ferreira considera que Portugal está a perder capacidade de captar investidores devido à perda de atratividade destes regimes, havendo por isso a «legítima expectativa do setor na revisão destes dois programas». Tanto mais quanto, argumenta o presidente da APPII, o atual ministro da Economia já sublinhou que o governo quer promover o investimento direto estrangeiro.
Além da referência aos cidadãos brasileiros interessados em viver em Portugal («com altíssimo poder aquisitivo, são bilionários, para quem o tema segurança e atratividade fiscal é essencial», sublinha), o presidente da APPII dá também o exemplo de «muitos americanos a desejar sair do país», advogando que «é preciso colocar Portugal no mapa». Até porque, acrescenta, Portugal concorre com outros países europeus, que têm programas semelhantes.
Conclui-se, portanto, que não há nenhuma crise de habitação em Portugal, nem nenhum desfasamento entre os preços das casas, que não param de subir, e os rendimentos das famílias. Dir-se-á, ouvindo os representantes do setor, que o problema reside apenas na falta de casas e que nada tem que ver com o impacto das novas procuras, incluindo obviamente as procuras externas, nessa elevação dos preços e inacessibilidade das famílias a um alojamento.
Bem sabemos, claro, que Santos Ferreira está a defender os interesses do setor, clamando por mais matéria-prima (casas) e, no caso, incentivos fiscais que alimentem a procura por cidadãos estrangeiros com posses. Sabemos tudo isso. E por isso sabemos também que devemos desconfiar de quaisquer sinais de preocupação, mais gerais, sobre a crise de habitação e o seus impactos nas famílias e até no funcionamento das economias locais. São só lágrimas de crocodilo, vertidas por um setor que apenas vive e pensa na sua própria bolha.
A economia muito política do genocídio
Israel já lançou 85500 toneladas de explosivos em Gaza, o equivalente a sete bombas atómicas.
Linda Bilmes é uma economista convencional, professora de política pública em Harvard, que ficou conhecida do grande público por ter publicado, com Joseph Stiglitz, uma estimativa dos custos da guerra imperialista no Iraque: três biliões (3 trillion, em inglês), três milhões de milhões de dólares. Enfim, mais vale estar vagamente certa.
Publicou recentemente um estudo, em coautoria, onde estima que os EUA financiaram 70% do genocídio na Palestina, sublinhando as conexões financeiras entre o sistema imperialista capitaneado pelos EUA e o colonialismo sionista. Afinal de contas, num ano, os EUA gastaram cerca de 22,7 mil milhões de dólares em ajuda militar a Israel (22,7 billion, em inglês).
Diz-se que o que não se conta, não conta. O que conta também, e muito, é que a embaixadora dos EUA na ONU tenha insultado Francesca Albanese, como se denunciar rigorosamente o genocídio em curso fosse antissemita. Este insulto foi, na realidade, uma confissão da parte dos EUA.
Adenda. Um gráfico, que vale mil palavras, retirado do estudo acima referido:
terça-feira, 29 de outubro de 2024
Uma fé nos peitos
“O futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz.” A 11 de março de 1939, em pleno regime fascista, num mundo prestes a soçobrar perante as hordas nazifascistas, um jovem intelectual de 25 anos perscrutava o futuro.
Atrevia-se então a afirmar o amor pela vida e o imperativo da felicidade, “dada pela satisfação da linha de conduta, pela satisfação de que se procede bem”.
Álvaro Cunhal terminava o artigo, intitulado “um problema de consciência”, deixando um testemunho, fazendo a si próprio e aos outros uma promessa, consciente do que tinha já passado e do muito que haveria de passar: “Atravessar-se-ão tragédias com lágrimas nos olhos, um sorriso nos lábios e uma fé nos peitos”.
Fé, notai, secular, certamente, mas fé, salto para o que, no fundo, é desconhecido, embora se possa antever aqui e agora em potencialidade. Este salto implica, sabia-o bem, a declinação de uma primeira pessoa do plural, feita de muitos, com a tal fé nos peitos, ali e agora.
Em boa hora decidiram as Edições Avante! reeditar em opúsculo este artigo, acompanhando-o de belas ilustrações de Ana Biscaia, numa edição de primorosa simplicidade, impressa em Agosto de 2021 na tipografia Damasceno, em Coimbra.
Adquiri-a na Festa do Avante! de 2024 e li-a numa noite quente, mas de janelas encerradas, numa Coimbra cheia de fumo, devido aos incêndios – “o exterior parece terrivelmente inimigo”, como afirmou Cunhal na primeira frase do artigo.
Há consolo na leitura, embora isso não seja o mais importante. O mais importante é mesmo a renovação de uma fé, pelo testemunho partilhado, numa cadeia do tempo sem fim, tentado pela analogia.
Desse opúsculo passei para outro, em busca de ligações: Comunistas e Católicos, um caderno também das edições Avante!, já de 1975. O seu primeiro texto é um excerto – “a mão estendida aos católicos” – do Informe Político ao Primeiro Congresso do PCP na clandestinidade.
Já se nota o estilo inconfundível de Álvaro Cunhal, que fez trinta anos durante os dias que durou o Congresso, como informa Pacheco Pereira na sua monumental biografia, cada vez mais empática, digamos, de volume para volume.
Nas mais duras condições nacionais e internacionais, Cunhal fazia as distinções que se impunham, em particular entre “política da Igreja Católica”, de recorte fascista – “não os combatemos pela sua atividade religiosa”, sublinhava – e a massa de trabalhadores católicos, “explorados e oprimidos como nós”. Seria um ponto de partida para o reconhecimento de que os católicos fazem parte da primeira pessoa do plural, para a qual contribuem de pleno direito.
A política com p grande passa sempre por um esforço para fazer distinções moralmente justas e politicamente produtivas em conjunturas históricas bem concretas. E para isso o conhecimento não basta: é necessária uma fé nos peitos.
Publicado na Terra da Fraternidade, “um espaço independente e inclusivo de encontro e intervenção no âmbito religioso, alimentado por vozes de diferentes tradições e espiritualidades que lutam pelo progresso social”.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Da luta pela democracia
No sábado, fomos muitos, muitos mil a gritar: “justiça para Odair” ou “vida justa, estamos fortes”. O contraste ético-político com o viva a morte da escumalha fascista, na ordem das dezenas, não podia ter sido maior. A democracia, a vida justa para todos, defende-se na rua, de forma militantemente antifascista.
Ontem, entrei numa livraria e dei de caras com um livro marcante, traduzido com quase três décadas de atraso, da autoria de Christopher Lasch (1932-1994), um historiador e crítico norte-americano. O leitor português não tem direito a uma introdução contextualizadora e enquadradora, numa obra publicada postumamente, em 1996, naturalmente datada aqui e ali, escrita tomando por referência sobretudo o contexto dos EUA, com um olhar por vezes demasiado nostálgico em relação ao passado democrático. Às vezes até é melhor não ter introdução à edição portuguesa, dados os frequentes atentados intelectuais, da deturpação ao pretensiosismo.
Lasch soube precocemente que a desdemocratização é um projeto de elites crescentemente globalistas, um processo com um conteúdo de classe evidente, em sociedades com fracturas socioeconómicas e culturais crescentes. O perigo não vem das massas, não vem das classes trabalhadoras enraizadas, pelo contrário, vem mesmo de cima, incluindo do apoucamento elitista e ideológico do Estado nacional, sem o qual não há democracia. Esta e outras pistas importantes dão à obra a sua atualidade, digamos.
O saudável populismo democrático de Lasch contrasta com preconceitos antigos, propagados por elitistas como Ortega y Gasset, um dos muitos liberais que permaneceu silencioso e pretensamente equidistante quando era necessário lutar contra os fascismos, por exemplo ali entre 1936 e 1939. Houve liberais que fizeram pior, claro. Não se pode contar com os liberais no sentido continental do termo.
sábado, 26 de outubro de 2024
Hoje, manifestação Vida Justa, em Lisboa
O Vida Justa condena a decisão das autoridades de permitir que o Chega termine a sua contramanifestação no mesmo local da manifestação «Sem Justiça não há Paz» - na Assembleia da República. Por isso, a organização decidiu alterar o local de destino da sua manifestação para os Restauradores. Início no Marquês de Pombal, hoje às 15h00.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Social-democrata o tanas
Saindo em defesa de Montenegro e do seu governo - o que já de si é sintomático - Cavaco Silva regressou hoje às páginas do Público, aproveitando de caminho para divulgar mais um livro de sua autoria (desta vez não publicado no estrangeiro). Com a costumeira sobranceria, declara que a dicotomia esquerda-direita é «uma velha divisão totalmente ultrapassada», sugerindo, como motivação para a escrita, ter sido «levado a pensar que, nos meios mediáticos e opinativos, reinava um certo esquecimento do que é a social-democracia europeia moderna».
No referido artigo, Cavaco defende que a moderna social-democracia «reúne o melhor dos valores do liberalismo e da justiça social». Mas em nenhum momento faz a mais ténue alusão à provisão direta de serviços públicos, marca de água incontornável da social-democracia. Não espanta, claro, ou não fora Cavaco quem instaurou a concorrência entre público e privado na saúde e a substituir o princípio matricial de acesso «universal, geral e gratuito» do SNS por um acesso «tendencialmente gratuito». Sim, o mesmo PSD que votou contra a criação do Serviço Nacional de Saúde, que tentou limitar a gratuitidade à «insuficiência de meios económicos» em 2021, e que hoje, com Montenegro, arranja mil formas de transferir recursos públicos para os privados, fomentando o mercado da doença, em vez de investir no SNS.
Para Cavaco, catalogar as medidas anunciadas por Luís Montengro nos termos da referida dicotomia, serve apenas como «arma de radicalização do discurso e do combate político», por parte de «alguns políticos e analistas» (e sim, só se for mesmo de alguns, nas televisões, dado o manifesto e continuado desequilíbrio e enviesamento da opinião). Mas o Ricardo Paes Mamede já tinha até tratado de assinalar, de forma lapidar, a dissimulação retórica deste partido liberal, mas que continua a apresentar-se como social-democrata. Social-democracia o tanas, de facto.
Haja mundo
Guterres deixou de ser bom aluno de maus mestres há muito e daí mais um ataque dos liberais até dizer chega da IL. Estes apoiantes do genocídio na Palestina, estes negacionistas das alterações climáticas, não lhe perdoam as posições corajosas.
Obviamente, Guterres fez bem em estar presente na cimeira dos BRICS em Moscovo. Estava lá grande parte do mundo representado e é preciso dialogar com todos, mesmo com quem, como a Rússia, violou o direito internacional. Deixaria de falar com EUA, nesse caso?
Não, Guterres não alinha nas noções liberais, e logo indisfarçavelmente racistas, de “comunidade internacional” ou de “ordem baseada em regras” à moda dos EUA. A ONU e o direito internacional são outra coisa.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Momento de incultura
David Bernardino perdeu 130 euros, mas sobreviveu para nos contar toda a verdade sobre um mediático evento organizado pela sociedade indigente de comunicação – Tribeca Lisboa: Um Insulto ao Cinema, ao Espectador e à Cultura em Portugal.
O grupo Impresa insulta-nos regularmente com falsificadores, facilitadores e fascistas. Três nomes, três exemplos: José Gomes Ferreira, Marques Mendes e José Miguel Júdice.
Gera assim poluição ideológica, dada a ausência de freios e contrapesos jornalísticos e culturais suficientes.
Ao invés de ver os seus privilégios cortados por manifesto incumprimento da missão pública de informar e de formar, é direta e indiretamente subsidiada pelo Governo, evitando assim a falência. Este grupo paga às direitas em propaganda maciça: a oferta ideologicamente condicionada cria a sua própria procura em política, aposta-se aí.
As consequências estão à vista, por todo o lado e em toda a parte, até porque a TVI-CNN do pirata do Douro é igual: erosão da cultura democrática e da democratização da cultura. A destruição da RTP faz parte do mesmo processo.
Vida justa
Os familiares e amigos de Odair Moniz, associações de moradores do Zambujal e de outros bairros, a Vida Justa e outros movimentos sociais e antirracistas convocam uma manifestação pacífica para reclamar justiça para Odair, paz nos bairros e respeito pelas pessoas que lá vivem.
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Não nos podemos abster
O novo Procurador-Geral da República está à espera de quê para abrir processo de inquérito contra este criminoso e constituí-lo arguido por crime de ódio? É absolutamente revoltante e pornográfico que alguém que se diz cristão se compraza com a morte de um ser humano!
Perante mais uma declaração fascista de André – viva a morte! – Ventura, de apoio à criminosa violência policial no Bairro do Zambujal, o jurista Miguel Prata Roque interpelou justamente o novo Procurador-Geral. Merece quatro ou cinco comentários complementares.
Em primeiro lugar, e começando pelo fim, é preciso relembrar o Papa Francisco, pois ele estava a pensar em “cristãos” como Ventura: “Quantas vezes vemos o escândalo dessas pessoas que passam o dia na igreja, ou que lá vão todos os dias, e depois vivem a odiar”.
Em segundo lugar, Ventura quer destruir o que resta da ideia e da prática do Estado de Direito Democrático e Social, com primazia das classes trabalhadoras, ou seja, da maioria, no quadro de uma economia mista, base material mínima da subordinação do poder económico ao poder político. Os que o acompanham na defesa da violência policial, como os liberais, querem o mesmo. O capitalismo televisionado quer o mesmo. Como disse António Brito Guterres:
“Trinta mil especialistas de segurança em todo o lado. Malta, isto é uma questão de acessos, de direitos fundamentais: educação, saúde, emprego, qualificação, direito ao lugar, direito ao imaginário. Deixem-se de tretas.”
Em terceiro lugar, já se sabe qual é o projeto das direitas, dos que as financiam, e em relação ao qual não pode haver abstenções: menos Estado social, mais Estado penal, mais Estado-Garantia para os grandes negócios, fórmula popularizada por Passos Coelho, pai desta gentalha, de Montenegro a Ventura, passando por Rocha; herdeiros de uma troika que nunca superámos em aspetos fundamentais.
Em quarto lugar, é sempre do Estado que falamos, da natureza do Estado. Infelizmente, falamos de um Estado que viu a sua soberania perfurada pela integração europeia, que viu fragilizadas a sua autoridade democrática e a sua capacidade de ser um baluarte contra o fascismo, através do Estado social – direito do trabalho, pleno emprego, serviços públicos e prestações sociais universais. Com austeridade perpétua, inscrita nas regras europeias, teremos insegurança social perpétua e um caldo político cada dia mais autoritário.
Finalmente, aqui estamos: o antifascismo tem de partir do aqui e agora, da reconquista da soberania popular, da reconstrução do Estado social, e logo da economia mista também prevista na Constituição, com socialistas a sério, comunistas, ecologistas, católicos progressistas e tantos outros democratas e patriotas. Ainda somos poucos, mas não nos podemos abster, insisto.
Amanhã, debate da Causa Pública, em Lisboa
A pandemia de COVID-19 marcou um ponto de viragem, ao levar à suspensão temporária das regras orçamentais, permitindo uma resposta mais robusta através do aumento dos gastos públicos. Esta suspensão criou um precedente para repensar a forma como a UE gere as suas regras fiscais, abrindo a porta a um novo debate sobre como conciliar as preocupações com a estabilidade macroeconómica com o investimento em políticas que promovam o crescimento sustentável, a equidade social e o combate às alterações climáticas.
Com o regresso das regras orçamentais reformuladas, surge uma nova oportunidade – e um novo desafio. De acordo com o anunciado, as novas regras visariam permitir um maior foco no ajustamento estrutural a médio prazo e uma maior ênfase no crescimento sustentável e verde. No entanto, os limites ao défice e à dívida continuam a ser pontos de pressão, especialmente para os governos que desejam aumentar o investimento público e expandir os serviços de saúde, educação e protecção social.
O debate que agora se impõe é, portanto, crucial: que margem de manobra resta para políticas progressistas dentro deste novo enquadramento? Será possível expandir os serviços públicos, aumentar a proteção social e investir em áreas estratégicas sem comprometer a sustentabilidade orçamental e, ao mesmo tempo, cumprir com as novas exigências europeias?
É este o dilema a tratar no debate «Que espaço existe para políticas progressistas com as novas regras orçamentais europeias?», promovido pela Causa Pública, que contará com a participação de João Nuno Mendes e José Guilherme Gusmão. A moderação estará a cargo de Maria Valente. A sessão realiza-se amanhã, a partir das 18h30, na Livraria Almedina no Atrium Saldanha, em Lisboa. Entrada livre.
Com o regresso das regras orçamentais reformuladas, surge uma nova oportunidade – e um novo desafio. De acordo com o anunciado, as novas regras visariam permitir um maior foco no ajustamento estrutural a médio prazo e uma maior ênfase no crescimento sustentável e verde. No entanto, os limites ao défice e à dívida continuam a ser pontos de pressão, especialmente para os governos que desejam aumentar o investimento público e expandir os serviços de saúde, educação e protecção social.
O debate que agora se impõe é, portanto, crucial: que margem de manobra resta para políticas progressistas dentro deste novo enquadramento? Será possível expandir os serviços públicos, aumentar a proteção social e investir em áreas estratégicas sem comprometer a sustentabilidade orçamental e, ao mesmo tempo, cumprir com as novas exigências europeias?
É este o dilema a tratar no debate «Que espaço existe para políticas progressistas com as novas regras orçamentais europeias?», promovido pela Causa Pública, que contará com a participação de João Nuno Mendes e José Guilherme Gusmão. A moderação estará a cargo de Maria Valente. A sessão realiza-se amanhã, a partir das 18h30, na Livraria Almedina no Atrium Saldanha, em Lisboa. Entrada livre.
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Menos de um minuto
- Em quanto países é que a China interveio militarmente nos últimos quarenta anos?
- Interveio no Vietname.
- Isso foi há mais de quarenta anos. Em quantos países existem bases militares da China?
- Em alguns.
- Num país apenas, o Djibouti. Por outro lado, os EUA atacaram pelo menos treze países no mesmo período e os norte-americanos têm pelo menos 750 bases, em cerca de oitenta países, muitas delas em redor da China.
Em menos de um minuto, um excelente jornalista norueguês fez perguntas simples e informadas ao antigo Secretário-Geral da OTAN, o norueguês Jens Stoltenberg. É quanto basta para expor as mentiras do imperialismo.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Da desinformação à demagogia eleitoralista é um passo
A massa de congressistas que ontem se levantou em peso e aplausos, quando Luís Montenegro falou em «libertar» a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento «das amarras de projetos ideológicos ou de facção» - numa indisfarçável aproximação ao Chega -, não só não fará ideia dos temas realmente tratados na disciplina, como não terá noção de que os mesmos já faziam parte das orientações da
Educação para a Cidadania, no tempo de Passos Coelho e Nuno Crato.
Sim, é verdade. Por estranho que possa parecer a muitos dos militantes que estiveram ontem no Congresso do PSD em Braga, os temas da educação sexual, igualdade de género e interculturalidade já constavam - e bem - dos currículos do básico e secundário no tempo do anterior governo de direita. Aliás, as questões relacionadas com as «instituições e a participação democrática», que Montenegro diz querer agora «cultivar», foram integradas no programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em 2018, por um governo do PS.
Não esqueçamos, porém, que já em 2020 o manifesto pela «objeção de consciência» reuniu figuras diversas, algumas das quais expectáveis pelo seu conservadorismo (Cavaco Silva, Helena Matos ou José Miguel Júdice), outras mais surpreendentes (António Araújo, David Justino ou Joaquim Azevedo), sendo de admitir, nestes casos, que possa não ter sido claramente percebido o que estava em causa. O próprio ministro Fernando Alexandre, aliás, visivelmente desconfortável com a iniciativa de ontem, foi incapaz de dar um exemplo de queixas concretas, assumindo apenas que a disciplina continuará a ser obrigatória.
De qualquer modo, como refere Eunice Lourenço, «que as mudanças numa disciplina que pretende formar melhores cidadãos tenha sido o momento alto do discurso de Luís Montenegro diz muito sobre o PSD que esteve reunido em Congresso». Pois diz, diz mais até. Excetuando quem se levantou e aplaudiu por convicção informada, diz muito sobre a permeabilidade dos congressistas, por desinformação, ao discurso do Chega. Desinformação a que Luís Montenegro não hesitou deitar mão, num impulso demagógico e desprovido de escrúpulos, com objetivos meramente eleitorais.
Sim, é verdade. Por estranho que possa parecer a muitos dos militantes que estiveram ontem no Congresso do PSD em Braga, os temas da educação sexual, igualdade de género e interculturalidade já constavam - e bem - dos currículos do básico e secundário no tempo do anterior governo de direita. Aliás, as questões relacionadas com as «instituições e a participação democrática», que Montenegro diz querer agora «cultivar», foram integradas no programa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em 2018, por um governo do PS.
Não esqueçamos, porém, que já em 2020 o manifesto pela «objeção de consciência» reuniu figuras diversas, algumas das quais expectáveis pelo seu conservadorismo (Cavaco Silva, Helena Matos ou José Miguel Júdice), outras mais surpreendentes (António Araújo, David Justino ou Joaquim Azevedo), sendo de admitir, nestes casos, que possa não ter sido claramente percebido o que estava em causa. O próprio ministro Fernando Alexandre, aliás, visivelmente desconfortável com a iniciativa de ontem, foi incapaz de dar um exemplo de queixas concretas, assumindo apenas que a disciplina continuará a ser obrigatória.
De qualquer modo, como refere Eunice Lourenço, «que as mudanças numa disciplina que pretende formar melhores cidadãos tenha sido o momento alto do discurso de Luís Montenegro diz muito sobre o PSD que esteve reunido em Congresso». Pois diz, diz mais até. Excetuando quem se levantou e aplaudiu por convicção informada, diz muito sobre a permeabilidade dos congressistas, por desinformação, ao discurso do Chega. Desinformação a que Luís Montenegro não hesitou deitar mão, num impulso demagógico e desprovido de escrúpulos, com objetivos meramente eleitorais.
Economia política em Coimbra
O economista Costas Lapavitsas estará em Coimbra nos dias 24 e 25 de outubro, próximas quinta-feira e sexta-feira. No dia 24, dinamizará um seminário no CES em torno do seu mais recente livro - The State of Capitalism; no dia 25, dará a aula inaugural, na FEUC, dos doutoramentos em que o CES participa. Aparecei.
Empatizar
Ahmad de Gaza, ontem, dia 380.
O sociólogo Pedro Adão e Silva (PAS) escreveu ontem sobre o declínio da empatia na sociedade, assim, demasiado em geral. Não refere o papel do capitalismo sem freios e contrapesos neste processo de desumanização, apesar de ser um tema clássico da sociologia, da economia moral.
Entretanto, dezenas de crónicas depois, PAS continua sem empatizar publicamente com o martirizado povo da Palestina, vítima de um holocausto colonial perpetrado pelo Estado de Israel. Já empatizou com Kamala Harris, vice-Presidente de um país que acha legitimo atacar civis do lado errado da linha de cor.
Há silêncios que têm de ficar registados. O poder de escrever três vezes por semana no principal diário nacional acarreta responsabilidades, como Carmo Afonso bem sabia.
E haja memória e história: por comparação com a guerra da Ucrânia, a social-democracia lusa tem sido, em geral, de um silêncio sepulcral; sempre é melhor do que a social-democracia alemã, claro, cuja sombra do apoio vocal ao genocídio do povo palestiniano paira por aí, fazendo lembrar o opróbrio de 1914, o apoio à guerra imperialista. Há um cheiro a químicos no ar.
A falta que faz um Olof Palme, a social-democracia europeia a sério, de recorte tão anticolonialista quanto eurocético.
domingo, 20 de outubro de 2024
Crise de habitação e uma conversa amena, à margem do problema
Na recente conferência promovida pelo Grupo Casais sobre «Aceleração da Construção da Habitação» discutiram-se, como assinalou o Expresso, «possíveis soluções da crise de habitação em Portugal». Como seria de esperar, a redução de impostos no setor (do IVA ao IMI, passando pelo IMT), a opção por novos modelos de construção, a colocação de devolutos no mercado ou a utilização de terrenos vazios, a par da reabilitação, foram colocadas em cima da mesa.
Como pano de fundo, nas intervenções citadas pelo Expresso, o pressuposto adquirido, e não questionado, de que a questão se resume à falta de casas, sendo apenas necessário construir mais e mais rapidamente. Ou seja, referências ao papel central das novas procuras especulativas na génese e agravamento da crise e à necessidade de formas de regulação que as travem, aparentemente nenhumas. Tudo se resume, uma vez mais, à simples escassez de oferta, por mais que o número de famílias e de alojamentos quase não se tenha alterado na última década. Continuamos nisto.
Sendo certo que os oradores no debate, como Ricardo Guimarães (Confidencial Imobiliário) e António Ramalho (ex-CEO do Novo Banco) assinalam a redução do volume de transações nos últimos anos (de cerca de 44 mil para 21 mil entre 2021 e 2023), associando essa redução à subida das taxas de juro - e constatam, igualmente, que os preços continuam a subir (não sendo acompanhados pelos rendimentos) - não retiram dai, contudo, as devidas ilações.
De facto, e ao contrário da tendência para que à diminuição das transações corresponda uma redução dos preços da habitação, como sucede até 2018, observa-se a partir de então, e sobretudo após 2021, que a quebra nas transações não impediu a subida dos preços, atingindo estes em 2024 os seus valores mais elevados. O que sugere, de forma clara, a presença de novas formas de procura solvente de natureza especulativa, internas e externas, que no limite poderão absorver toda a nova construção, por mais que os seus preços baixem e sem que o custo dos alojamentos se altere.
A insistência numa leitura simplista da crise da habitação, resumindo-a a uma mera falta de casas, que ignora o papel das novas procuras e a necessidade de as regular (com o atual governo a agravar a situação, nos recuos que já fez nesta matéria), faz assim lembrar a história de alguém que procurava a chave de casa à noite junto a um candeeiro, não por achar que aí a tinha perdido, mas antes porque o lugar onde suspeitava tê-la deixado cair não estava iluminado.
Como pano de fundo, nas intervenções citadas pelo Expresso, o pressuposto adquirido, e não questionado, de que a questão se resume à falta de casas, sendo apenas necessário construir mais e mais rapidamente. Ou seja, referências ao papel central das novas procuras especulativas na génese e agravamento da crise e à necessidade de formas de regulação que as travem, aparentemente nenhumas. Tudo se resume, uma vez mais, à simples escassez de oferta, por mais que o número de famílias e de alojamentos quase não se tenha alterado na última década. Continuamos nisto.
Sendo certo que os oradores no debate, como Ricardo Guimarães (Confidencial Imobiliário) e António Ramalho (ex-CEO do Novo Banco) assinalam a redução do volume de transações nos últimos anos (de cerca de 44 mil para 21 mil entre 2021 e 2023), associando essa redução à subida das taxas de juro - e constatam, igualmente, que os preços continuam a subir (não sendo acompanhados pelos rendimentos) - não retiram dai, contudo, as devidas ilações.
De facto, e ao contrário da tendência para que à diminuição das transações corresponda uma redução dos preços da habitação, como sucede até 2018, observa-se a partir de então, e sobretudo após 2021, que a quebra nas transações não impediu a subida dos preços, atingindo estes em 2024 os seus valores mais elevados. O que sugere, de forma clara, a presença de novas formas de procura solvente de natureza especulativa, internas e externas, que no limite poderão absorver toda a nova construção, por mais que os seus preços baixem e sem que o custo dos alojamentos se altere.
A insistência numa leitura simplista da crise da habitação, resumindo-a a uma mera falta de casas, que ignora o papel das novas procuras e a necessidade de as regular (com o atual governo a agravar a situação, nos recuos que já fez nesta matéria), faz assim lembrar a história de alguém que procurava a chave de casa à noite junto a um candeeiro, não por achar que aí a tinha perdido, mas antes porque o lugar onde suspeitava tê-la deixado cair não estava iluminado.
sábado, 19 de outubro de 2024
Comparar, olhar, ver, navegar
Lembro-me regularmente do historiador José Medeiros Ferreira (1942-2014), um antifascista que foi dos mais argutos e críticos representantes da elite nacional na democracia. Para tomar o pulso ao declínio desta elite, é só comparar este socialista com os pigmeus intelectuais e políticos que dominam hoje a política externa do bloco central, dentro e fora da academia.
Estes últimos, tal como os economistas dominantes – as duas áreas mais policiadas de ciências sempre sociais e políticas –, consideram que a melhor política externa é a ausência de política externa nacional, ou seja, a submissão ao eixo Washington-Berlim, no caso das relações internacionais, e ao eixo Bruxelas-Frankfurt, no caso da política económica. Como dizia Medeiros Ferreira, são bons alunos de maus, péssimos, mestres. Aqui estamos, estagnados e cada vez mais submissos. Neste longo interregno surgem todo o tipo de monstros, alimentados pela ação e abstenção da social-democracia rendida ao euro-liberalismo.
Olhar e ver. Ao invés da busca de soluções diplomáticas, eventualmente aceitando uma reconfiguração territorial da Ucrânia, em linha com o precedente por si aberto nos Balcãs, a UE apostou tudo na guerra, sobretudo depois que esta foi agigantada com a condenável invasão russa. Entretanto, as contraproducentes sanções encareceram uma parte da energia a uma parte do continente. A UE, vassala da NATO, ou seja, dos EUA, aceitou alimentar uma catástrofe militar e humanitária, cada dia mais perigosa e que irá terminar com as tais concessões territoriais em zona de maioria russa, num quadro de eventual neutralidade da Ucrânia, se tudo correr pelo melhor, na ausência de um conflito generalizado entre potências nucleares. E, não, a economia russa não está a sofrer, pelo contrário, já que se adaptou, com o uso de todos os instrumentos de política económica imagináveis e por imaginar. E, não, a Rússia não está isolada, como será atestado pela cimeira dos BRICS em Moscovo, com Xi, Modi ou Lula.
Olhar e ver. Os EUA estão relaxados, porque são mais do que autossuficientes energeticamente, têm para vender, mas nunca para dar, têm a UE na mão e quase um continente, mais um oceano, a separá-los do enredo no leste europeu, no qual testam armas, ajudando os lucros de um complexo militar-industrial gigantesco. Este financia toda a propaganda de tanques ideológicos, jornalistas, académicos, campanhas políticas, tudo o que for necessário. Ajudaram a criar o enredo ucraniano, com a expansão da NATO para leste, para lá das responsabilidades russas e das do cada dia mais forte setor nazifascista ucraniano. No fundo, tudo isto é parte do trágico fim da URSS, uma catástrofe sem fim.
Olhar e ver. Em flagrante contradição com a posição sobre a invasão da Ucrânia (ou talvez não), a UE, pela voz da sinistra Presidente da Comissão Europeia, apoia o genocídio na Palestina, perpetrado pelo Estado colonial sionista. Há aqui uma indesmentível e racista linha de cor, que combina bem com a história sombria da integração europeia, de recorte colonial e neocolonial, já bem escalpelizada. Aos palestinianos ninguém dá armas, só a Israel.
Olhar e ver. A UE, depois do interlúdio pandémico, voltou à sua essência austeritária desde Maastricht, a sua fundação, agora com controlo antidemocrático da despesa, como tem assinalado Paulo Coimbra, quase sozinho nesta tarefa crucial. Tudo é ainda pior, com a aposta na corrida armamentista, como também advogado num relatório de que já ninguém se lembra, mas que Vicente Ferreira escalpelizou como ninguém. Esta corrida é mais um dos muitos pretextos para futuros cortes nos Estados sociais; os pigmeus da economia e das relações internacionais do bloco central já o disseram.
Sim, excelentes alunos de maus mestres, piores a cada ano que passa.
Num dos seus últimos livros - Não há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)dita da Integração Europeia - Medeiros Ferreira lembra que o seu amigo Vítor Cunha Rego lhe tinha pedido, pouco antes de morrer, para fazer soar a campainha quando fosse a hora de sairmos. Afinal de contas, tinha sido Medeiros Ferreira a fazer o pedido de adesão à então CEE, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Constitucional, em 1977, o ano em que nasci. Medeiros Ferreira nunca se sentiu preparado para o fazer, mas a questão passou-lhe reconhecidamente pela cabeça. Tem de continuar a passar pelas cabeças que estão vivas e que recusam este declínio.
Mais vale uma jangada de pedra, realmente, sem mapas cor-de-rosa, obviamente, numa integração de geometria mais variável, sem esta amarra monetária, por exemplo. Este retângulo e dois arquipélagos bastam. E há muito mar, para ir e voltar.
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
Não podemos mesmo desviar os olhos
Tenho à minha frente o raio-x do crânio de uma criança pequena. Vê-se nitidamente uma bala. Apontada para baixo em direção à nuca. Sinto uma náusea. Acabei de deixar os meus filhos na escola e, enquanto bebo um café, vejo as imagens partilhadas com o The New York Times por uma médica, chamada Mimi Syed, que trabalhou em Gaza entre 8 de agosto e 5 de setembro. É fisicamente doloroso ler os relatos compilados para o jornal por um outro médico, Feroze Sidhwa, sobre o que se passa nos hospitais da Palestina. Mas não posso desviar os olhos. Não podemos desviar os olhos (...) Hoje, são os filhos de Gaza com as cabeças desfeitas por balas. Amanhã serão os nossos. Estamos a abrir o caminho para isso.
Início e fim da última crónica da jornalista Margarida Davim na Visão. Leiam o que está no meio, por favor. É muito importante ainda haver jornalistas com coragem para escrever assim sobre o genocídio perpetrado pelo Estado colonial israelita na Palestina. Haja humanismo, rigor e memória histórica, incluindo sobre o previsível e desgraçado efeito boomerang na história europeia.
Pedalada - Pôr a economia a crescer... para quem?
Nos últimos meses, o desempenho económico da Europa tem motivado um intenso debate. A estagnação do investimento no continente e as perspetivas de recessão na Alemanha contrastam com o crescimento dos EUA e da China e com o seu avanço nas tecnologias de ponta. Um relatório publicado recentemente por Mario Draghi (ex-presidente do Banco Central Europeu) defende uma intervenção mais seletiva dos Estados europeus na promoção de setores estratégicos – uma espécie de regresso da política industrial. Mas há mais dúvidas do que certezas neste processo. Onde é que devemos concentrar esforços? Precisamos de mais dívida conjunta para financiar investimentos? Onde entra a transição justa? E que papel é que será destinado a Portugal na divisão de tarefas?
Este é o ponto de partida para mais um episódio do “Pedalada”, o vodcast do Ladrões de Bicicletas em parceria com a plataforma MyGig.
Quatro recapitulações sem ausência de luz
1. No longo interregno surgem monstros políticos. Os monstros liberais e fascistas estão mais à solta, desde o anúncio abstencionista, sem violência, por parte do PS, com a correspondente abertura de uma viragem ainda mais para a direita no panorama nacional. Chega e IL têm razões para festejar. Durante dois anos serão oposição, fictícia, mas oposição.
2. Os monstros alimentam-se da oposição ao que designam por sistema, invariavelmente considerado socialista e/ou corrupto, eles que são financiados pelas frações mais reacionárias do sistema que realmente existe, o capitalista, cada dia mais antidemocrático.
3. A política de direita está inscrita nas estruturas austeritárias da integração europeia que nos submete e da qual Chega e IL não prescindem. Afinal de contas, são alimentados pela impotência democrática. Por sua vez, quem apoia os termos inscritos em estruturas destinadas a fazer com que a mera social-democracia de recorte keynesiano pareça radical, acaba a viabilizar Montenegro e companhia, ou seja, um país a ser sucateado por entreguistas; pobre país, pobre povo.
4. Sem alguma desintegração, sem a luta pela reconquista de soberania no campo da política económica, nada feito, confirma-se pela enésima vez. Este é o horizonte estratégico, o que autoriza flexibilidade tática. Já se sabia, mas às vezes até apetece esquecer a escala do desafio. Não há atalhos. Somos poucos ainda. O tempo é de resistir e de organizar a potência plebeia, a alternativa que existe realmente, sem ilusões, mas com esperança: “o futuro é negro, mas na própria negrura não há ausência de luz”.
quinta-feira, 17 de outubro de 2024
Curiosidades da economia política europeia
É curioso que Vital Moreira subscreva o social-liberal Enrico Letta, num diagnóstico ainda mais curioso: «Se não atuarmos, a UE acabará a discutir se queremos ser uma colónia chinesa ou norte-americana».
Então, os EUA, que lideram a NATO, pilar absolutamente essencial do Consenso de Bruxelas, estão apostados em “colonizar” a UE? Como pode ser? Será que já todos sabem que as questões económicas estão inevitavelmente entrelaçadas com as questões políticas, incluindo militares?
E onde fica o ordoliberalismo no meio disto, com as suas distinções tão claras quanto ideológicas? Vale toda a ideologia para justificar a aposta no brutal reforço do complexo industrial-militar das grandes potências da UE, outra razão para erodir os Estados sociais?
Tantas questões.
Já não compreendo nada da elite do poder na UE ou então ainda a compreendo demasiado bem, já nem sei. E começo a temer (ou será a saudar?) que esta já não compreenda nada do mundo...
E também não compreendo, agora mesmo, como se pode colocar a República Popular da China, que tem uma abordagem fundamentalmente pacifica às relações internacionais, no mesmo saco do país que lidera o sistema imperialista e que mais sanções, agressões, guerras e estatocídios tem no seu currículo, por exemplo.
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
OE 2025: Estado máximo para poucos
Hoje em dia as grandes empresas têm benefícios fiscais para contratar trabalhadores, têm benefícios fiscais para aumentar os salários dos trabalhadores, têm benefícios fiscais para desenvolver ciência e investigação, têm benefícios fiscais para capitalizar, tem benefícios fiscais para recapitalizar empresas. No fundo, eles estão sempre disponíveis para fazer o que é preciso, o que é suposto uma empresa privada fazer, desde que haja contrapartidas do Estado. Isso não é Estado mínimo. Isto é Estado máximo, mas convertido num instrumento de favorecimento dos grupos económicos e financeiros (Vasco Cardoso, Comissão Política do PCP).
A despesa, ou seja, a quantidade de recursos que o nosso país produz e pode usar de acordo com a sua discricionariedade, passou a ser definida inteiramente em Bruxelas. É o simulacro, o logro, o desrespeito pela assembleia da República e pelos portugueses (Paulo Coimbra, economista).
Eu tenho uma opinião desfavorável da redução da taxa de IRC. Com raríssimas exceções, esta medida junta-nos a um grande grupo de países subdesenvolvidos que utiliza o receituário simplista que, ao invés de contribuir para o desenvolvimento, contribui para o seu atraso (Ricardo Cabral, economista).
A própria expressão carga fiscal já é um viés. Despesa, rendimento e produtos são os 3 lados da mesma coisa. Eu tanto posso dizer, a carga fiscal é de 40%, como dizer o estado contribuiu para 40% do produto. As palavras são um instrumento de poder (João Carlos Graça, Sociólogo).
Nesta discussão sobre as questões da fiscalidade, aquilo a que nós temos assistido é um conjunto de deturpações. (...) Aquilo que se verifica é que a haver uma relação, a relação é inversa daquela que nos tentam colocar (Tiago Cunha, economista).
Nós temos uma lógica dos sucessivos governos em Portugal que consiste na ideia de que a economia portuguesa irá crescer se conseguimos fazer uma política permanentemente restritiva da atividade económica. (...) uma segunda dimensão que é o que no jargão oficial se chama flexibilização da economia, e que tipicamente tem a ver com a desregulamentação do mercado de trabalho, (...) o país vai naturalmente, transformar-se e crescer. Mas nós vamos com 25 anos disto. Isto ainda não produziu muitos resultados e não é difícil perceber por que é que isto não produz muitos resultados (Ricardo Paes Mamede, economista).
O problema do investimento é dos problemas mais graves que nós temos em Portugal; nem tem sido suficiente para compensar o chamado consumo do capital fixo (Eugénio Rosa, economista).
Acima, excertos do debate sobre Orçamento do Estado num evento promovido pelo PCP.
Ideologia zumbi
Starmer descende político-ideologicamente do milionário e criminoso de guerra Blair, declarado por Thatcher como o “meu maior triunfo”.
A Terceira Via, qual zumbi ideológico, sobrevive por aí, na social-democracia neoliberalizada, de silêncios e cumplicidades genocidas, de austeritarismo, privatizações, reduções de direitos laborais e logo sociais e parcerias público-privadas sem fim.
Lembrai-vos de quem abriu serviços públicos a privados, de quem criou serviços geridos por privados, dos cuidados às cantinas, de quem abria garrafas de champanhe por cada privatização que fazia, de quem cortou alegremente na segurança social, ao mesmo tempo que aumentava direitos patronais e correlativamente reduzia os laborais.
No PS, os da Terceira Via andam por aí, na imprensa e na televisão, às vezes tão sonsos, tão cobardes: de Pedro Adão e Silva a Vieira da Silva, passando por Fernando Medina ou Sérgio Sousa Pinto. São os que querem acabar a tarefa de diluição da social-democracia no caldo do extremo-centro, abstendo-se, uma vez mais, de combater a política de direita. Pudera, já tinha sido assim com a troika.
Os social-democratas alemães também mostram o caminho, em aliança com os verdes e os liberais: apoio incondicional ao genocídio na Palestina e à guerra sem fim na Europa e incapacidade socioeconómica, reforçando por tantas vias a extrema-direita. Por cá, nesta periferia europeia, é tudo de facto pior, por causa da subordinação ao eixo Bruxelas-Berlim, por sua vez cada dia mais vassalo de Washington.
terça-feira, 15 de outubro de 2024
Quem ganha com o OE 2025?
Além da redução do IRC, há outros benefícios para as empresas que não têm tido tanto destaque: a isenção de TSU e IRS nos prémios de desempenho e a majoração da despesa das empresas com seguros de saúde privados. O problema destas medidas é maior do que pode parecer.
Com a isenção de TSU e IRS dos prémios, as empresas vão poder decidir pagar uma fração maior da remuneração dos trabalhadores por esta via em vez de a incluir no aumento salarial dos trabalhadores (que beneficiariam dos descontos para a Segurança Social).
As contribuições para a Segurança Social não são apenas um custo. São rendimento dos trabalhadores, que se pode considerar salário indireto. São o que garante que todos possamos beneficiar de proteção na doença, na parentalidade e de uma pensão de reforma.
Com esta medida, as empresas evitam pagar uma parte das contribuições e impostos que teriam de pagar se aumentassem os salários dos trabalhadores no valor equivalente. É uma boa forma de descapitalizar a Segurança Social para depois se dizer que o sistema é insustentável.
Em relação à majoração de 20% no IRC dos gastos com seguros de saúde, é uma transferência de rendimentos do SNS para o privado: o Estado abdica de receita com que se financia o serviço público para favorecer a contratualização de seguros privados. Sem surpresa, a proposta já foi aplaudida pelas seguradoras: “A Associação Portuguesa de Seguradores considera muito positiva a medida que prevê a majoração em 20% em sede de IRC dos custos com seguros de saúde dos trabalhadores e seus agregados”.
Serve de pouco olhar para os valores orçamentados para a saúde quando se sabe que quase metade das verbas já vão para o privado (através de serviços externalizados e de medicamentos) e quando o governo cria novos mecanismos fiscais para incentivar o recurso aos privados. Sobretudo tendo em conta que, ao incentivar o recurso à saúde privada, se dá às seguradoras a oportunidade de aumentar os preços dos seguros.
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