quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Percebeu Marcelo o que está realmente em causa?


1. Perante a ordem da Direção-Executiva do SNS dada aos administradores hospitalares, para que procedam a um corte em 10% dos fornecimentos e serviços externos, num contexto de aumento da procura de cuidados, Montenegro afirmou, num exercício de semântica sonsa, que «a palavra corte não é correta», não havendo «nenhuma orientação no sentido de cortar o que quer que seja», mas sim uma «orientação muito exigente» no sentido de «sermos mais eficientes». Eis o regresso da cantilena do «desperdício» (antes eram as «gorduras») e do «fazer mais com menos», impondo cortes prévios para camuflar o desinvestimento e a degradação dos serviços públicos.

2. Ao arrepio das expetativas que o próprio criou, Marcelo Rebelo de Sousa acabou por segurar a ministra da Saúde, apesar do fracasso em toda a linha e do enfraquecimento a que está a sujeitar o SNS desde o primeiro dia. Esse é aliás o ponto. O verdadeiro problema não é Ana Paula Martins, apesar da instabilidade e desorganização que introduziu no setor, mas sim o projeto político da AD para a saúde, que visa a desvitalização do SNS e a canalização de um volume cada vez maior de recursos para os privados, pondo em causa o direito universal de acesso desmercadorizado a cuidados de saúde de qualidade, que apenas uma lógica de cobertura de serviço público pode garantir.

3. Ao assumir funções, e tal como na Educação, o governo criou, com fins eleitorais de curto prazo, a ilusão de que os problemas se resolveriam num ápice, ativando um Plano de Emergência na Saúde. Mas rapidamente se constatou que o propósito era reforçar a contratualização de cuidados com privados, na ilusão de que apenas se estava «aproveitar capacidade instalada». Na prática, a transferência de utentes e de financiamento reforçam a capacidade dos próprios privados para ir buscar profissionais ao SNS, desfalcando-o. Para o serviço público, sobraram no Plano os incentivos ao aumento da produção (horas extra) e da produção à tarefa, acentuando a desmotivação e desintegrando equipas.

4. Sem que nada tenha melhorado, antes pelo contrário, os sinais de definhamento e crescente incapacidade de resposta do SNS acumulam-se, relevando o défice de recursos humanos. Sem surpresa, claro: é o resultado esperado do processo de privatização em curso. E se algumas debilidades induzidas já vinham de trás, como o «tarefeirismo» (para evitar despesa estrutural, em nome das alegadas «contas certas»), o que está em causa é o velho sonho da direita, de retrair o SNS e expandir a saúde privada. É por isso que, tratando-se de uma escolha política abissal, e não de uma questão de consenso, faz pouco sentido que Rebelo de Sousa apele a um «acordo de regime» para o setor.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

A Inteligência Artificial vai salvar a economia?

É difícil discutir o futuro da economia sem que surja o tema da inteligência artificial. A tecnologia tem avançado a um ritmo impressionante e já se tornou um dos temas centrais do debate público. Multiplicam-se as notícias e artigos sobre o potencial de modelos como o ChatGPT, os impactos na forma como trabalhamos e os postos de trabalho que poderão ser substituídos. Ao mesmo tempo, o investimento canalizado para construir centros de dados está a atingir níveis historicamente elevados e o setor tem sido um dos principais motores do crescimento económico de países como os Estados Unidos.

Esta dinâmica tem sido alimentada pelas promessas dos seus promotores. Sam Altman, CEO da OpenAI, disse que “as ferramentas superinteligentes podem acelerar de forma massiva as descobertas científicas e a inovação”, ao passo que Elon Musk, detentor da xAI, prometeu que a sua empresa iria, já este ano, desenvolver um modelo “mais inteligente que o humano mais inteligente”. Todos partem do pressuposto que a IA é a chave para aumentar a produtividade e impulsionar o crescimento das economias.

No entanto, a generalidade das pessoas parece estar mais pessimista em relação ao futuro da economia do que noutros contextos comparáveis, como o da ascensão da Internet na viragem do século. Além disso, têm surgido receios de estarmos perante uma bolha especulativa à beira de rebentar. Para saber o que nos espera, é preciso perceber o que explica o crescimento impressionante da IA, de que forma está a mudar a economia e como se distribuem os ganhos (e os custos) da tecnologia.

Muito barulho por nada?

Nos últimos anos, as cinco maiores empresas tecnológicas – Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft – viram a sua cotação disparar no mercado financeiro. A Nvidia, que fabrica os chips necessários para os centros de dados, tornou-se recentemente a primeira empresa americana com valor de mercado superior a cinco biliões de dólares, enquanto a cotação da Microsoft e da Apple já supera os quatro biliões de dólares.

O entusiasmo dos investidores parte de um pressuposto central: o de que a IA vai permitir aumentar a produtividade da maioria dos setores da economia, passando a ser altamente procurada pelas empresas. Mas, até agora, a realidade não tem correspondido às expectativas. Na verdade, é difícil vislumbrar melhorias na produtividade, que continua a crescer a um ritmo modesto e ainda está longe dos níveis registados na década antes da crise financeira de 2008.

Fonte: The Economist (aqui e aqui, respetivamente)

Embora a IA esteja presente em muito do que fazemos hoje em dia, desde pesquisas em motores de busca como o Google aos chatbots com quem interagimos no apoio ao cliente, um relatório recente do MIT concluiu que 95% das empresas que incorporaram a IA não estão a obter qualquer retorno. O cenário começa a parecer-se com o que se verificou após o início da expansão dos computadores, na década de 1980, quando Robert Solow, um dos economistas mais influentes no estudo do crescimento económico, disse que “vemos os computadores em todo o lado menos nas estatísticas da produtividade”.

A utilização limitada da IA até agora prende-se com o fosso entre as promessas dos criadores e as aplicações verdadeiramente úteis que tem. Em traços gerais, a IA generativa consiste em identificar padrões em bases de dados cada vez mais abrangentes e gerar textos, imagens ou extrapolações a partir desses dados. E isso envolve limitações significativas. Longe de possuírem capacidade de raciocínio próprio, os modelos atuais reproduzem os padrões dos dados com que são treinados. Produzem informações, imagens ou linhas de código com base em todas as informações, imagens e linhas de código que já foram publicadas (por pessoas reais). São o que alguns críticos apelidam de “papagaios estocásticos”.

Mesmo nestas tarefas, ainda está por provar que o recurso à IA facilite o trabalho das pessoas. Os modelos de IA continuam a ser influenciados pelos enviesamentos dos próprios dados que utilizam, o que significa que contribuem para perpetuar ideias comuns, mas não necessariamente corretas, ou para tomar decisões discriminatórias através dos algoritmos. Além disso, os chatbots também podem contribuir para espalhar informações falsas e, de acordo com uma investigação recente, o ritmo a que produzem desinformação tem aumentado. Um estudo de vários meios de comunicação europeus concluiu que os modelos de IA cometem erros em quase metade das vezes quando lhes são perguntadas informações da atualidade, chegando a inventar informação.

É por isso que, entre os economistas que se têm debruçado sobre o tema, não há consenso sobre o possível impacto da IA na economia. Dois dos estudos mais influentes chegam a conclusões diametralmente opostas: o primeiro, realizado por economistas da Goldman Sachs (Joseph Briggs e Devesh Kodnani), estima que a produtividade e o PIB dos EUA possam aumentar 15% com a adoção generalizada da tecnologia; o segundo, de Daron Acemoglu, vencedor do equivalente ao Nobel da Economia no ano passado, aponta para um crescimento de pouco mais de 1% do PIB nos próximos dez anos.

A diferença está nos detalhes: Briggs e Kodnani assumem que a IA pode substituir 25% das atuais tarefas e reduzir custos de forma substancial, ao passo que Acemoglu projeta potencial para automatizar apenas 4,6% das tarefas. Como há demasiada incerteza envolvida, é difícil saber que hipóteses são mais realistas e prever o papel que a IA pode desempenhar no futuro. Apesar disso, há riscos reais no presente que não têm merecido atenção suficiente por cá.

Até quando dura o hype?

Não seria de esperar que a adoção de uma nova tecnologia disruptiva fosse imediata. Todas as inovações radicais levam tempo até serem incorporadas na economia. A tecnologia pode estar disponível, mas enquanto as empresas não descobrirem o que fazer com ela nem adaptarem a produção, os ganhos são limitados. Além disso, se já é difícil fazer previsões sobre a economia em tempos normais – os economistas que o digam –, é ainda mais difícil prever de que forma novas tecnologias podem transformá-la. A grande questão é saber até quando durará o entusiasmo dos mercados se os resultados tardarem em aparecer.

Entre 2024 e 2025, as gigantes tecnológicas investiram mais de 750 mil milhões de dólares em centros de dados e têm planos para gastar mais 3 biliões até ao final da década – mais ou menos o equivalente ao PIB de França. Só no segundo trimestre deste ano, as big five investiram mais de 100 mil milhões de dólares, dando um grande contributo para o crescimento do PIB dos Estados Unidos. Só que não se vislumbram receitas que permitam compensar este investimento: uma análise da S&P Global prevê que a receita total do mercado de IA pode chegar aos 85 mil milhões de dólares… em 2029. Mesmo nesse cenário, continuaria muito longe de compensar.

O problema acentua-se pelo facto do crescimento da IA estar assente numa lógica de financiamento circular em torno de empresas-chave como a Nvidia, que fabrica chips, a Oracle, que fornece a capacidade de computação, e a OpenAI, que desenvolve modelos de IA (como o ChatGPT). Recentemente, a Nvidia anunciou um investimento de 100 mil milhões de dólares na OpenAI, que, por sua vez, compra os chips da Nvidia para fornecer os seus centros de dados; no dia seguinte, a OpenAI assinou um acordo com a Oracle (de 300 mil milhões de dólares) para a construção de centros de dados, sendo que a Oracle adquire chips… à Nvidia.

Este exemplo pode parecer significativo, mas é apenas a ponta do icebergue: os investimentos cruzados entre a Nvidia, a OpenAI e a CoreWeave (que também fornece capacidade de computação) atingem 1 bilião de dólares, com as empresas a atuarem simultaneamente como investidoras e clientes umas das outras. Como explica a economista Grace Blakeley, “todas reportam aumentos da receita, da cotação na bolsa e dos preços das respetivas ações, mas o dinheiro está essencialmente a mover-se em círculos”.

 
Fonte: Bloomberg
 

As comparações com a bolha do dot-com são inevitáveis. Na década de 1990, as empresas emergentes da Internet também atraíram enorme interesse dos investidores e as cotações bolsistas dispararam antes da bolha rebentar em 2000. O investimento moveu-se sobretudo pelas expectativas sobre o futuro, tal como agora, mas não havia ganhos visíveis que o justificassem. Quando os Estados Unidos aumentaram as taxas de juro e os investidores se viraram para opções mais estáveis, a bolha rebentou e muitas empresas faliram.

Se é verdade que a Meta, a Microsoft ou a Amazon parecem estar menos endividadas do que as empresas tecnológicas que alimentaram a bolha dos anos 90, também há outras que estão a acumular enormes dívidas para financiar esta aposta. Há fontes contraditórias sobre o papel dos fundos de investimento e de outras instituições da finança-sombra no financiamento da corrida à IA. A opacidade destes fundos, que estão à margem da regulação bancária, faz com que seja difícil avaliar a exposição dos bancos e perceber se o fim da bolha implicará uma crise relativamente circunscrita (como a do dot-com) ou uma crise sistémica como a de 2008.

E se corre “bem”?

Apesar dos sinais de uma bolha especulativa, há quem argumente que nem tudo é necessariamente um problema. Há vários exemplos ao longo da história de bolhas especulativas que, apesar de terem rebentado, provocando perdas para os investidores e, por vezes, empurrando as economias para crises, deixaram inovações e infraestruturas que se revelaram fundamentais no longo prazo. Na década de 1840, o desenvolvimento da ferrovia também esteve associado a uma bolha que veio a rebentar, mas a rede de caminhos de ferro construída revelou-se um benefício inequívoco. A própria bolha do dot-com deixou como legado os cabos de fibra ótica que hoje suportam vários serviços digitais.

A investigação de economistas como Carlota Perez ou Chris Freeman sugere que, em todas as grandes revoluções tecnológicas do passado, as primeiras décadas são marcadas por turbulência. Perez vê a IA como um novo passo na era das tecnologias de informação e comunicação e compara o atual período de transição a outras ondas do passado – como a da máquina a vapor ou a da eletricidade –, também marcadas por tensões sociais, destruição de empregos e criação de novas atividades.

No entanto, mesmo que a IA consiga impulsionar a produtividade nos próximos anos, é preciso perceber quem ganha com isso. O que a experiência histórica nos ensina é que, por si só, as inovações tecnológicas não significam benefícios para todos. O desenvolvimento da IA surge numa economia cada vez mais desigual, dominada por grandes multinacionais que operam em setores fortemente concentrados e dominam os mercados, enquanto o declínio dos sindicatos e o aumento da precariedade deixaram os trabalhadores numa posição fragilizada. Neste contexto, a tecnologia está a ser usada como forma de pressão sobre os trabalhadores, para que aumentem o ritmo de trabalho, assumam mais tarefas e aceitem a compressão dos salários e a vigilância algorítmica.

Outro fator crítico é o consumo de recursos naturais. Os centros de dados de IA exigem enormes quantidades de energia e água para processamento e arrefecimento. Atualmente, os centros de dados já consomem mais energia do que países inteiros como a Alemanha ou a França e estão a provocar pressão sobre a oferta existente, contribuindo para um aumento significativo dos preços da eletricidade nos EUA. Com a escala dos investimentos realizados e projetados até 2030, estima-se que a procura de energia possa aumentar em 165%. Tendo em conta o atraso na transição energética, esta expansão está a ser alimentada em larga medida por combustíveis fósseis, o que explica porque é que empresas como a Google, a Microsoft ou a Amazon estão a aumentar as emissões de carbono devido aos projetos de IA, contrariando o compromisso com a neutralidade carbónica, bem como a planear investimentos em centrais nucleares.

Os centros de dados têm gerado preocupação entre as populações, não apenas devido à enorme quantidade de energia que requerem, mas também às necessidades de consumo de água. Cada centro de dados chega a consumir quantidades de água equivalentes ao consumo de cidades com 50 mil habitantes, o que coloca uma enorme pressão sobre este recurso. Nos EUA, já se registaram problemas de escassez de água e subidas dos preços em alguns estados. No México, o estado de Querétaro tornou-se um polo estratégico para centros de dados e as empresas têm extraído água subterrânea para arrefecer os servidores, enquanto bairros inteiros enfrentam cortes frequentes no abastecimento doméstico. Para lá das promessas sobre a desmaterialização da economia, os recursos naturais continuam a ser um foco de disputas.

Mudar o chip

Em Portugal, a chegada de centros de dados de grandes empresas de tecnologia tem sido vista como uma oportunidade de modernização económica. O acesso a energia limpa e barata, a localização geográfica e a segurança são fatores que tornam o país atrativo para este tipo de investimentos. Apesar disso, o papel dos centros de dados na economia continua a ser pouco discutido e o tema só ganhou atenção mediática quando o maior investimento planeado – o da construção do centro de dados de Sines, da Start Campus – se viu envolvido numa investigação do Ministério Público que levou à queda do governo anterior.

Tanto o governo anterior como o atual acolheram de forma entusiástica este investimento devido à criação de postos de trabalho e ao potencial da economia digital. No entanto, há alguns motivos para pôr em causa os benefícios anunciados, como alertou o Ricardo Paes Mamede. Os benefícios do centro de dados de Sines para a economia portuguesa não são assim tão óbvios, uma vez que os lucros serão repatriados e que os centros dependem essencialmente de equipamento eletrónico que deverá ser importado do estrangeiro. Em relação ao impacto ambiental, o centro de Sines promete usar água do mar, com dessalinização, mas desconhecem-se os contornos de outros projetos anunciados (como o do Fundão ou o de Abrantes). De resto, as grandes empresas já estão a inundar a rede elétrica com pedidos para ligação que, de acordo com um administrador da EDP, representam uma mudança “transformacional face à procura que temos tido historicamente”, colocando uma pressão significativa sobre a energia nacional.

O caso português parece ter semelhanças com o de Aragão, no nordeste de Espanha. A corrida à instalação de centros de dados transformou a região de Aragão num dos epicentros europeus da IA, com a Microsoft e a Amazon a investir milhares de milhões de euros para adquirir terrenos e construir centros. Embora as autoridades celebrem os investimentos e a possibilidade de colocar o país na liderança da transição digital europeia, a comunidade local tem-se mostrado preocupada com a pressão sobre os recursos, numa região onde os verões cada vez mais secos e a escassez de água têm afetado a agricultura. Além da água, os centros poderão vir a necessitar de mais energia do que toda a que é atualmente consumida na região, o que pode revelar-se contraditório com as metas de transição energética.

Em países como a Irlanda ou os Países Baixos, projetos de novos centros de dados foram suspensos ou adiados recentemente, uma vez que, embora possam criar emprego e atrair capital, colocam pressão sobre os recursos e levantam preocupações sobre o impacto ambiental. Os casos de Portugal e Espanha mostram como esta tensão é particularmente visível nas economias semi-periféricas, onde a chegada de multinacionais é muitas vezes apresentada como sinónimo de progresso inevitável. Na ausência de planeamento, o investimento estrangeiro é encarado como um fim em si mesmo. Enquanto os interesses privados das multinacionais que pretendem aceder a terrenos, energia barata e água são claros, o interesse público permanece difuso e pouco debatido.

Os investimentos astronómicos no desenvolvimento da IA são possíveis porque, nos últimos anos, as multinacionais tecnológicas têm acumulado enormes lucros, monopolizado o acesso aos nossos dados pessoais e pago taxas efetivas de imposto bastante inferiores às da maioria das empresas, o que lhes permitiu consolidar o poder que detêm e a capacidade de influenciar comportamentos individuais e coletivos. A verdade é que temos muito pouco controlo sobre os investimentos e, por isso, pouco voto na matéria sobre os objetivos prosseguidos, que tanto podem ser socialmente úteis – substituir tarefas penosas, reduzir o tempo de trabalho ou descobrir novos medicamentos – como ser pouco interessantes ou até nocivos para a sociedade. Sem socializar os ganhos da tecnologia, é tudo menos garantido que se traduzam em melhorias da qualidade de vida. O entusiasmo dos mercados tem enviesado o debate público e ofuscado as principais questões em aberto. É preciso mudar o chip.

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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Hoje, em Lisboa


«Depois da Crise Financeira Global de 2008, o turismo ganhou uma nova importância. O número de visitantes disparou, o comércio descaracterizou‑se e o alojamento para turistas transformou cidades e bairros. O turismo criou milhares de postos de trabalho e reforçou o seu peso nas exportações, mas acentuou velhas fragilidades da economia portuguesa e contribuiu para novos problemas sociais. Afinal, é uma atividade de baixa produtividade, assente em precariedade e salários baixos, além de agigantar a crise na habitação».

Na Casa do Comum (Rua da Rosa, 285), a partir das 18h00, lançamento do livro Oportunidade ou Maldição - A indústria do turismo em Portugal, de Ana Drago e Mariana Mortágua. A apresentação da obra está a cargo de Helena Roseta e Ricardo Cabral.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O que vai para armas não vai para saúde


O que vai para armas não vai para saúde. São estas as políticas que estão a destruir a democracia à frente dos nossos olhos. Não, não é o tik-tok.



A Direita, o PS e todos os outros que, incluindo o decrépito comentariado luso, produzem consentimento para a corrida armamentista são cúmplices neste desastre.

Só uma Esquerda pela paz e pela soberania nacional, disposta a dizer não ao tributo norte-americano de 5% do PIB em canhões e capaz de resgatar da União Europeia a liberdade, alienada pela direita e pelo PS com o aplauso do Livre, de produzir autonomamente uma política orçamental, só essa esquerda pode realisticamente apresentar um plano de salvação do SNS e dos serviços públicos em geral.

O resto são abstenções, mais ou menos violentas, mais ou menos exigentes, que são o espelho da derrota da social-democracia às mãos do social-liberalismo e que só acentuam o declínio e a desafeição do povo a um sistema que se tornou disfuncional e desumano para uma parcela cada vez maior dos que aqui vivem e trabalham e que, por isso, vê a sua legitimidade crescentemente questionada.

*Atingir os 5% na década de 2030 significaria incorrer em despesa militar num valor igual a 88% do que se gasta hoje com saúde pública no nosso país.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Amanhã, também em Coimbra


Amanhã, em Coimbra


Apresentação, por José Reis, do livro Um plano ferroviário para Portugal, de Frederico Francisco. A sessão terá lugar na Livraria Almedina do Estádio Cidade de Coimbra, a partir das 18h00. Apareçam.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Quem seremos depois de Gaza?


«Em março de 1988, o historiador israelense Yehuda Elkana, sobrevivente de Auschwitz, publicou um artigo no jornal Haaretz sobre “a necessidade de esquecer”. (...) Havia um motivo para isso: Elkana achava que a memória do Holocausto havia sido cooptada para fins destrutivos; que vinha sendo utilizada maldosamente para insuflar o ódio e a violência contra o povo palestino. (...) Argumentou que, “se o Holocausto não tivesse penetrado tão profundamente na consciência nacional”, o conflito entre judeus e palestinos não teria gerado tantos atos de terrorismo e violência. (...) Para Elkana, em 1988, chegara finalmente o momento de o povo judeu abandonar a ideia de que “o mundo inteiro está contra nós, e somos eternas vítimas".
(...) No Ocidente, o Holocausto foi, de certa forma, o marco fundador do século XX; antes disso, havia sido a Revolução Francesa. Esses eventos definiram suas épocas porque, segundo Confino, encarnaram “um novum histórico que serve como uma régua moral e histórica, como uma medida do que é ser humano”. Representaram, respectivamente, o auge da aspiração humana e o grau de sua depravação. (...) Mishra e Beinart argumentam que a devastação de Gaza levou a humanidade a um novo patamar de degradação. (...) Os efeitos históricos e geopolíticos dessa catástrofe, segundo ele [Beinart], serão fundamentalmente diferentes de tudo o que os antecedeu.
E se o mundo pós-Gaza não for tão diferente assim daquele com o qual estamos habituados? E se as condições desse mundo não forem definidas por Gaza, mas por algum outro cataclismo que ainda está por vir? E se este momento não sinalizar uma virada, um novo despertar moral, mas apenas um pontinho histórico num mundo de devastações cada vez piores? Essa possibilidade, real e inquietante, é a mais aterrorizante que os dois livros [de Mishra e Beinart] obrigam os leitores a considerar
».

Linda Kinstler, Quem seremos depois de Gaza?

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Quem ganha e quem perde com a turistificação?


Esta semana, o jornal Público traz uma entrevista ao economista Lucio Baccaro, diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, que esteve em Lisboa para participar numa sessão no ISCTE. Baccaro é um investigador que se tem dedicado ao estudo dos modelos de crescimento das economias, procurando identificar os diferentes mecanismos que contribuem para o crescimento do PIB em diferentes países e as implicações que daí decorrem sobre a distribuição dos ganhos.

Nem todos os países crescem da mesma forma. Nos países que aderiram ao Euro, criou-se uma clivagem entre dois modelos de crescimento distintos: um assente em exportações e na procura externa e outro assente no endividamento e no consumo. A Alemanha constituía o exemplo mais emblemático do primeiro modelo: com a adoção de uma moeda subvalorizada face às suas características estruturais, a economia alemã cresceu com base nas exportações, comprimindo os custos salariais internos para garantir a competitividade do seu setor industrial e acumular excedentes comerciais. Por outro lado, os países do sul (Espanha, Portugal, Grécia e Itália) representavam o segundo modelo, em que o crescimento era assente no crédito e os países acumulavam dívida externa.

A seguir à crise financeira de 2008, a clivagem entre os modelos tornou-se menos evidente. As políticas de austeridade impostas às economias do sul reduziram os custos internos com o objetivo de orientá-las para as exportações, à imagem do modelo alemão. Embora o peso das exportações tenha aumentado, sobretudo em Portugal, isso aconteceu maioritariamente em produtos de média-baixa tecnologia ou serviços de baixo valor acrescentado como o turismo, o que coloca questões sobre os seus benefícios.

Na entrevista, Baccaro aborda vários assuntos, desde os impactos de uma guerra comercial que parece colocar em causa o modelo alemão aos riscos da instabilidade política em França. Sobre o caso português, o economista aborda os problemas do modelo de crescimento adotado nos últimos anos, com argumentos que vão ao encontro do que aqui se tem discutido. A sua leitura ajuda a compreender melhor as tensões e limitações do modelo português que, apesar da aparência de prosperidade, também cria distorções na economia e acentua desigualdades na sociedade.

O turismo é um motor de que economia?

Na última década, o crescimento da economia portuguesa foi impulsionado pelo desempenho do setor do turismo, cujo peso cresceu de 6,9% do Valor Acrescentado Bruto total em 2016 para 9,1% em 2023 e atingiu máximos históricos. Os serviços associados ao turismo - hotelaria, alojamento local, restauração, entre outros - têm sido responsáveis por boa parte da criação de emprego desde que o país saiu do programa de austeridade após a última crise financeira. Mas há um reverso da medalha, como explica Baccaro:

“O crescimento assente no turismo tem características de um modelo baseado em exportações, mas também de um modelo baseado no consumo. Do lado exportador, porque essencialmente está a vender serviços a não-residentes, ou seja, é uma forma de exportar. Mas no modelo exportador clássico, há contenção de preços internos para estimular as exportações. No caso do turismo, acontece o contrário: há um impacto sobre os preços dos ativos, especialmente da habitação, que aumentam. E, com a subida dos preços das casas, sobem também outros preços.”

As dinâmicas descritas por Baccaro são evidentes no caso português. Entre 2014 e 2024, o preço das casas em Portugal subiu mais de 135%, enquanto o salário médio dos residentes cresceu apenas 36%. Portugal foi o país em que o fosso entre os salários e os preços da habitação mais se alargou na última década, o que explica porque é que a habitação passou a representar uma fatia cada vez mais importante das despesas das pessoas e porque é que cidades como Lisboa passaram a surgir no topo dos rankings que medem a dificuldade de acesso à habitação.

A valorização imobiliária é parte integrante do modelo de crescimento da economia portuguesa. A expansão do turismo levou a uma recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, nomeadamente através do crescimento do alojamento local, em especial em Lisboa, Porto e Algarve. Além disso, os diversos mecanismos destinados a atrair o investimento estrangeiro para o mercado imobiliário, desde os vistos gold aos incentivos fiscais para fundos imobiliários e residentes não-habituais, contribuiram para alimentar a subida dos preços.


O relatório Housing in the European Union, publicado este mês pela Comissão Europeia, aponta neste sentido: as casas em Portugal estão sobrevalorizadas face aos rendimentos médios e a valorização não se explica apenas pelo crescimento económico ou pela procura interna. Na verdade, há uma componente especulativa associada ao investimento estrangeiro e à natureza da habitação, que se tornou um ativo financeiro seguro e apetecível para os investidores. Portugal é, de resto, apontado como o país da UE onde a acessibilidade mais se deteriorou.

O relatório da Comissão destaca o papel do turismo nesta tendência: “Há cada vez mais evidência empírica que sugere que a expansão do turismo em geral, e das plataformas de alojamento local em particular, contribuiu para o aumento das rendas e dos preços das casas em algumas zonas, como os centros históricos das cidades”. E o relatório sugere que “Portugal é o país da UE onde o turismo teve maior impacto sobre os preços das casas”.

Cidades como Lisboa e Porto tornaram-se destinos muito procurados por turistas, mas também cidades onde morar se tornou um luxo. As plataformas de alojamento local e o investimento em propriedades para arrendamento de curta duração reduziram substancialmente a oferta de habitação permanente. Além disso, nas áreas metropolitanas, pelo menos 1 em cada 10 casas encontra-se vazia, sendo que boa parte destas não está à venda nem disponível para arrendar no mercado, o que agrava os problemas de falta de acesso.

Ao mesmo tempo, a pressão sobre os preços tem consequências para as outras atividades económicas. Na área metropolitana de Lisboa, a especialização em atividades turísticas ao longo da última década ocorreu em detrimento de setores mais inovadores: a indústria e os serviços de informação e comunicação perderam importância relativa, ao contrário do que aconteceu no resto do país, e houve uma queda da produtividade por trabalhador, como conclui um estudo publicado pela Causa Pública.

A maré que sobe eleva todos os barcos?

As dinâmicas descritas implicam a existência de vencedores e perdedores dentro do modelo de crescimento. Como explica Baccaro, nos países onde o turismo assume o papel de motor da economia, estabelece-se uma clivagem vincada entre aqueles que arrecadam os ganhos do crescimento e aqueles que ficam à margem:

“Quem ganha são os proprietários de imóveis, que podem rentabilizá-los, por exemplo através do alojamento local. Os perdedores são aqueles que não têm casa própria — geralmente os mais jovens —, que não só não beneficiam, como enfrentam preços mais altos e mais dificuldades no acesso à habitação. E também os trabalhadores do setor, que têm empregos pouco qualificados, mal pagos, precários e, muitas vezes, sujeitos a exploração. E, claro, paga-se um preço em termos de desindustrialização, já que esse nível de preços torna difícil a sobrevivência da indústria transformadora, sobretudo a de baixo e médio nível tecnológico”.

O próprio setor fornece o exemplo mais claro dos impactos desiguais deste processo: embora os serviços associados ao turismo sejam responsáveis por boa parte da criação de emprego na última década, o setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo do país, de acordo com os dados do INE. Mais de 40% dos trabalhadores do setor recebem o salário mínimo. Apesar das receitas recorde, o turismo representa emprego essencialmente precário e mal pago.

Para além das desigualdades internas do setor, há uma tendência mais abrangente de redistribuição do rendimento na economia. A valorização da habitação implica, na prática, uma transferência de rendimento de quem vive do salário para os proprietários de imóveis. Uma fatia crescente do rendimento disponível das famílias acaba por ser canalizada para o pagamento de rendas, prestações ou serviços encarecidos pela pressão imobiliária.

Fonte: OCDE

Este fenómeno tem criado problemas que não são captados pelas estatísticas. O caso da inflação é o mais evidente. Embora a renda paga ao senhorio ou a prestação paga ao banco sejam normalmente a principal despesa das pessoas e o seu peso tenha aumentado de forma significativa, o indicador que usamos para medir a inflação e o custo de vida das pessoas não capta esta subida, uma vez que não inclui a despesa com prestações e atribui um peso muito pequeno à das rendas.

Entre 2021 e 2024, as rendas de novos contratos aumentaram 32%, mais do dobro do valor da inflação registada, e a prestação média dos empréstimos para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80%. O que isto significa é que o indicador da inflação subestima o aumento do custo de vida de muitos grupos. Tendo em conta que este é o é o referencial usado nas negociações salariais e na atualização das pensões e de outros apoios sociais, traduz-se em aumentos que são mais baixos do que os que seriam necessários para travar a perda de poder de compra.

A subida dos preços, que para uns se traduz em perda de poder de compra, representa também um ganho de riqueza para outros. Num país como Portugal, em que mais de 75% das pessoas são proprietárias de casa, poder-se-ia pensar que a maioria da população beneficia deste modelo de crescimento em que o valor das propriedades sobe a um ritmo assinalável e a habitação se torna, cada vez mais, o principal ativo das famílias. À primeira vista, a subida dos preços das casas parece traduzir-se num aumento generalizado da riqueza e num sinal de prosperidade económica.

Quando olhamos para as estatísticas sobre a riqueza líquida das famílias - isto é, o valor total dos ativos menos o valor das dívidas - aumentou de forma assinalável desde a pandemia. Essa evolução deve-se, em grande medida, à valorização da habitação (a vermelho, no gráfico abaixo), que passou a representar uma fatia ainda maior do património das famílias portuguesas e se tornou o principal motor do aumento da riqueza nacional.

Fonte: Boletim Económico do Banco de Portugal (dezembro de 2024)

No entanto, é importante ter em conta que a distribuição da riqueza acumulada é profundamente desigual. Os 10% mais ricos concentraram, nos últimos quatro anos, tanta riqueza como os 40% seguintes. Já entre os 50% mais pobres, o aumento da riqueza líquida resultou sobretudo da redução do valor real das dívidas (uma consequência pouco discutida da inflação). De resto, a desigualdade continua a ser acentuada: os 10% do topo detêm cerca de 60% da riqueza total, enquanto a metade de baixo da população fica com apenas 3,6%. A desigualdade na distribuição de riqueza ainda é maior do que a que se verifica na distribuição do rendimento. E isso é relevante, porque a riqueza - e, sobretudo, a capacidade de a mobilizar - não é igual para todos, especialmente no caso da habitação.

Embora, para quem detém uma casa, a subida dos preços implique um aumento da riqueza, isso nem sempre se traduz numa melhoria efetiva das condições de vida. Uma pessoa que detenha uma casa vê a sua “riqueza” aumentar, mas é discutível que retire ganhos dessa subida (já que podia vender a casa e obter mais-valias, mas precisaria de encontrar outra para viver aos preços atuais). A subida dos preços das casas é sobretudo vantajosa para quem detém mais do que uma habitação. Nesse caso, é possível aproveitar a valorização para vender, converter em alojamento turístico ou aproveitar a inflação das rendas.

Ou seja, a subida do preço das casas beneficia essencialmente quem tem património acumulado. Mesmo quando não se tratam de grandes fortunas, quem possui ativos como uma segunda habitação ou uma propriedade herdada, que lhe permite transformar a valorização imobiliária em ganhos reais, fica automaticamente numa posição muito diferente da de quem apenas possui uma casa própria, e mais distante ainda da de quem depende exclusivamente do salário.

Embora seja verdade que o aumento da riqueza não se concentra apenas no topo da distribuição, o facto de existir uma maioria de proprietários não garante automaticamente que estes se encontrem alinhados com o atual modelo de valorização imobiliária. Isso é ainda mais evidente quando se consideram os impactos indiretos da turistificação sobre o custo de vida e sobre os hábitos de sociabilização no país.

As cidades-montra são para quem?

A transformação da economia por via da expansão turística tem impactos que não se resumem à acessibilidade da habitação. O modelo de crescimento assente no turismo leva não apenas a uma recomposição da oferta de casas disponíveis para arrendamento ou compra pelos residentes, mas também a uma reconfiguração das atividades económicas nas zonas de maior pressão turística.

Em Lisboa e no Porto, as freguesias com maior densidade de Alojamento Local atraíram novos serviços orientados para os turistas, como restaurantes e bares, em detrimento do comércio local tradicional, como concluiu um estudo publicado no ano passado sobre o impacto do AL. A subida das rendas impulsionada pela expansão do alojamento local também afeta o comércio local e tem sido responsável pelo encerramento de vários espaços tradicionais nas principais cidades. Embora o pequeno comércio que sobrevive até registe um aumento das vendas, o estudo conclui que a dinâmica favorece principalmente as empresas orientadas para o turismo e que o setor da restauração é o que mais se tem destacado.

Estas mudanças têm impacto nos hábitos de socialização. O Inquérito sobre as Práticas Alimentares em Portugal, realizado por investigadores do ICS, dá-nos algumas pistas sobre esse impacto. Nos últimos anos, quase 30% das pessoas em Portugal diz ter diminuído o número de vezes que comeu em restaurantes e 20% cortaram nas celebrações de dias festivos fora de casa, sendo que esta mudança se verifica sobretudo entre quem ganha menos. “Comer fora em ocasiões celebrativas está agora muito mais associado a classes sociais do que antes”, explica um dos autores do estudo.

É provável que o aumento do custo dos alimentos e da energia nos últimos anos seja responsável pelo encarecimento das refeições, mas os preços dos restaurantes e cafés já vinham a crescer acima da média há mais tempo. O relatório refere que “os dados aludem a uma reconfiguração das práticas de lazer e sociabilidade”, identificando um “eventual movimento de ‘domestização’ ou reprivatização das ocasiões de consumo coletivo”. Os autores concluem que “resta saber se estamos diante de uma situação conjuntural, em resposta ao recente contexto inflacionário, ou de mudanças mais duradouras nas dinâmicas de sociabilidade e consumo”. Nas zonas de maior pressão turística, é possível que a subida dos preços seja mais do que conjuntural e reflita o fenómeno de gentrificação das cidades.

Fonte: INE

Os problemas alastram-se a outras dimensões da forma como as pessoas aproveitam o tempo livre. Exemplo disso tem sido a proliferação de praias de luxo no Algarve ou no litoral do Alentejo, onde se anunciam serviços exclusivos e ofertas especiais a preços dificilmente comportáveis para a maioria. Nestas regiões normalmente procuradas para férias, a subida dos preços do alojamento torna o acesso cada vez mais difícil para os residentes. O presidente da Associação de Hotéis e Empreen­dimentos Turísticos do Algarve reconhece que que “é notório que as dificuldades económicas têm afastado os clientes nacionais”, embora sublinhe que ainda “somos acessíveis para mercados com outra disponibilidade” financeira.

Portugal continua a ser um dos países onde maior percentagem das pessoas é incapaz de comportar uma semana de férias por ano. Mais de um terço das pessoas (35,2%) tem rendimentos que não lhes permitem pagar uma semana de férias, bem acima da média europeia (27%) e apenas superado pela Grécia e pelos países mais pobres do Leste europeu. Com a subida dos preços no litoral do país, muitos dos residentes são excluídos do acesso às zonas de praia.

A proliferação de serviços de luxo associados ao turismo constitui uma tentativa do setor extrair mais valor dos turistas que procuram o país. Numa atividade pouco propícia a incorporação de tecnologia e ganhos de produtividade, a via que resta é a de aumentar os valores cobrados pelos serviços e comprimir os custos salariais. No entanto, esta estratégia também mostra os limites do setor como motor do crescimento. Voltando à entrevista, Baccaro alerta que “se não houver capacidade de “subir de patamar” e atrair turistas cada vez mais ricos, chega um momento em que o país perde competitividade, porque os preços internos crescem mais depressa do que noutros mercados.”

Com uma economia dependente de setores de baixos salários e baixa produtividade, começam também a tornar-se visíveis os limites deste modelo de crescimento, onde há pouca margem para progressos sustentados. Estes constrangimentos ajudam a perceber o debate que se reabriu sobre o futuro do trabalho em Portugal e o tipo de economia que se quer construir.

Que trabalho pela frente?

Além dos problemas associados à dependência do turismo, a entrevista a Baccaro também se debruça sobre o mercado de trabalho português e, em particular, sobre a proposta do governo para alterar a legislação laboral e introduzir maior flexibilidade. O economista mostra-se pouco convicto sobre os benefícios da flexibilização:

“Nunca vi provas convincentes de que as reformas laborais aumentem a produtividade. Pelo contrário, vi muitas provas de que a reduzem. Depois das reformas [flexibilizadoras], as empresas têm menos incentivos para inovar e para investir em capital humano. Há estudos que mostram que o impacto na produtividade é negativo: quando o trabalho fica demasiado barato e as rigidezes institucionais são enfraquecidas, investe-se em setores que não têm potencial de progresso tecnológico. […] A liberalização pode, no melhor dos casos, criar muitos empregos de baixa produtividade, altamente precários.”

Apesar de ter ganho tração no debate público, a ideia de que a flexibilização do mercado de trabalho conduz a um melhor desempenho da economia tem sido contrariada por alguns estudos recentes. Uma revisão de literatura que analisou 75 estudos assentes em diversos indicadores de proteção laboral concluiu que não é possível estabelecer uma relação robusta entre a flexibilização e variações na taxa de desemprego. Outros estudos (como este ou este) sugerem que a flexibilidade teve impactos negativos sobre a produtividade e a inovação, particularmente nos setores mais inovadores e dependentes de conhecimento acumulado.

Existem boas razões para explicar esta tendência. Trabalhadores com vínculos mais estáveis dispõem de mais tempo e melhores condições para adquirir e acumular conhecimento específico sobre a atividade das empresas, o que favorece a melhoria dos processos produtivos. Ao mesmo tempo, uma maior integração no trabalho fortalece o compromisso e a cooperação entre colegas. Além disso, a proteção laboral incentiva as empresas a investir na formação dos seus trabalhadores, promovendo tanto a melhoria das qualificações como o crescimento da produtividade.

A proposta do governo para flexibilizar a legislação laboral não pode ser dissociada do modelo de crescimento em que o governo tem apostado as suas fichas. O modelo de crescimento da economia portuguesa baseou-se na expansão de setores de baixo valor acrescentado, intensivos em trabalho e assentes em baixos salários. A dependência destes setores implica uma dependência de mão-de-obra barata para satisfazer as necessidades das empresas.

A reforma laboral apresentada não ajuda a combater os problemas do modelo de crescimento português e, pelo contrário, contribui para os acentuar: a flexibilização que tem como principal objetivo reduzir os custos laborais beneficia sobretudo as empresas em setores intensivos em trabalho, em que esses custos são mais expressivos. O que isso significa é que favorece os setores mais desqualificados e as empresas cuja estratégia assenta em salários baixos e contratos precários, em detrimento do investimento em tecnologia e formação.

Portugal parece ter trocado uma dependência por outra. Depois de um modelo de crescimento baseado no acesso ao crédito barato do exterior, a economia passou a apoiar-se no turismo e na valorização imobiliária, ambos fortemente dependentes da procura externa e geradores de impactos desiguais. Sem uma estratégia pública para aproveitar as condições favoráveis no país - incluindo os baixos custos da energia renovável - e combater fragilidades estruturais - como o atraso da ferrovia ou a dimensão irrisória do parque habitacional público -, construindo as bases para uma economia mais justa, arriscamo-nos a perpetuar o ciclo de dependência e vulnerabilidade.

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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Sábado, no Fólio, em Óbidos


«No tempo convulso que estamos a atravessar à escala internacional, marcado pelo regresso da guerra, os avanços da extrema-direita e a consolidação das políticas neoliberais – que no seu conjunto ameaçam, de forma inaudita, as conquistas sociais do último século e as próprias instituições democráticas – o número 8 da Revista Manifesto assume como reflexão central os desafios que se colocam às esquerdas, perante uma nova (des)ordem internacional».

A partir das 11h00, na Escola de Hotelaria e Turismo do Oeste, Carlos Branco e Isabel do Carmo dinamizam a sessão de apresentação da revista Manifesto, cujo oitavo volume tem como tema «As esquerdas e a (des)ordem mundial». A sessão está integrada na 10ª edição do Fólio (Festival Literário Internacional de Óbidos), dedicado à questão das «Fronteiras».

E se for a Europa a dizer o óbvio?


O recente relatório da Comissão Europeia sobre a crise de habitação na UE não podia ser mais claro. Como assinala Rafaela Burd Relvas, no Público, «Portugal é o país da União Europeia (UE) onde as casas estão mais sobrevalorizadas e onde, apesar desse cenário já especulativo, os preços continuam a aumentar a ritmo mais acelerado». Ou seja, o nosso país é «onde os preços a que as casas são vendidas mais se distanciam do seu valor intrínseco» em 2024, ultrapassando em 35% o seu real valor.

Sublinhe-se, neste âmbito, que o valor médio do desfasamento, à escala da UE, se situa em apenas cerca de 5%, tendo a sobrevalorização dos alojamentos sofrido em Portugal um agravamento de 5 pontos percentuais entre 2023 e 2024, refletindo o efeito dos incentivos à procura criados pelo governo, responsáveis pela aceleração do ritmo de aumento dos preços desde que a AD tomou posse. Conclui-se no relatório, aliás, que Portugal «é o único país onde a sobrevalorização aumentou significativamente em 2024».

Mas as conclusões da Comissão Europeia não ficam por aqui. Reconhecendo que «o crescimento das plataformas de partilha de casas desestabilizou o mercado habitacional tradicional, ao esbater as linhas que separam o arrendamento de curta e de longa duração», o relatório agora divulgado refere que «há evidências de que Portugal é o país da UE onde o turismo teve maior impacto sobre os preços das casas», contribuindo para o aumento das rendas e dos próprios valores de aquisição, sobretudo «em algumas zonas, como os centros históricos das cidades».

Por cá, continua contudo a insistir-se na ideia de que as novas procuras de habitação, potencialmente inesgotáveis, movidas por lógicas de investimento especulativo e pela expansão da oferta de alojamento turístico, são irrelevantes na explicação da crise e da sua persistência e constante agravamento. Recusando a adoção de medidas de regulação destas procuras, sem as quais o problema dificilmente se resolverá, a narrativa continua a ser a de que simplesmente faltam casas e basta construir mais.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Manifesto nº 8 em breve nas bancas

«Dificilmente se conseguiria antever, ou sequer imaginar, há cerca de duas décadas, os tempos convulsos e de retrocesso que hoje estamos a atravessar, marcados, à escala internacional, pelo regresso da guerra à Europa, pela consolidação das políticas neoliberais e pela verdadeira vaga da extrema-direita em quase todos os países que configuravam o “mundo ocidental, liberal e democrático”. Processos que, no seu conjunto, ameaçam hoje, de forma inaudita, as conquistas sociais alcançadas ao longo do último século, as próprias instituições democráticas e os avanços civilizacionais que dávamos, até há pouco tempo, como adquiridos.
Nos tempos sombrios e incertos que atravessamos, que configuram um mundo em transição para uma nova ordem, cujos contornos não são ainda possíveis de descortinar na sua plenitude, este número da Revista Manifesto assume como matéria central de reflexão os desafios que se colocam às esquerdas neste contexto, também elas a procurar caminhos para superar a crise que atravessam. Tentar perceber as determinantes da nova ordem global é indispensável para se atuar à escala de cada país, onde a política se torna inteligível para o cidadão.
»


Do editorial do nº 8 da revista Manifesto, que estará disponível nas livrarias, quiosques e na loja da página da Fórum Manifesto a partir do início da próxima semana. No próximo sábado, dia 18, a revista será apresentada por Carlos Branco e Isabel do Carmo no Fólio (Festival Internacional de Óbidos), partir das 11h00. Apareçam.

Lista de Artigos:

PEDRO PEZARAT CORREIA, Quanto mais nos preparamos para a guerra, mais a guerra parece inevitável (entrevista por Sofia Lorena) | PORFÍRIO SILVA, O que é isso "rearmar a Europa"? | NUNO RAMOS DE ALMEIDA, Do Guincho a Zimmerwald, a guerra só serve o grande capital e o fim do mundo | HELENA HALPERN, "O mundo antigo morre. O novo tarda em aparecer. Esta é a altura dos monstros" | RICARDO DUARTE, O populismo como movimento político | INÊS HEITOR, "Um lugar ao sol" | DANIELA CUNHA, Consegue a Esquerda participar no debate sobre imigração? | BERNARDO GOUVEIA, Os jovens e a memória coletiva sobre o 25 de Abril | MADALENA MOTA, Perante a Lei (e uma nêspera) | TARSO GENRO, Dialética da Guerra | JOSÉ GUSMÃO, A Europa e os sintomas mórbidos | CARLOS LOBATO, O Estado e a contrarrevolução americana | FILIPA FARIA DE FREITAS E FRANCESCA ALBANESE, Palestina no centro da desordem mundial | ANA ALEXANDRA CARVALHEIRA, À Volta do Medo | JOÃO COSTA E JOSÉ MANUEL PUREZA, Papa Francisco: um regresso ao Cristianismo | JOÃO AFONSO, Nuno Portas, único múltiplo | MANUEL HALPERN, Quando foi a última vez que viu um filme chinês? | PAULA CABEÇADAS, "No Other Land" | ANDREIA CUNHA, Mulheres, vida, liberdade | PAULO PEDROSO, Recuperar a hegemonia do pensamento progressista. A Causa da Causa Pública | MANUEL SAN PAYO, Ilustrações

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Amanhã, no ISEG, em Lisboa: Homenagem a João Cravinho


Integrada no Ciclo de Colóquios em Homenagem a João Cravinho, promovido por José Reis no âmbito do projeto A Economia Política da Construção da Democracia: sistema produtivo e de emprego, provisão pública e instituições, decorre amanhã, no ISEG (Auditório CGD, no Edifício Quelhas), a partir das 14h30, o segundo colóquio deste ciclo.

Participam nesta sessão João Duque (Presidente do ISEG), José Reis (investigador responsável do projeto), Manuel Brandão Alves e Lino Fernandes (economistas do GEBEI) e João Rodrigues (FEUC/CES). A entrada é livre, apareçam.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Iniciativa antifascista


Uma crise fora da bolha


«O anúncio de Luís Montenegro sobre 1300 milhões de euros para habitação acessível parece responder à lógica elementar da crise habitacional: mais procura que oferta exige mais construção. Esta abordagem aparentemente óbvia ignora uma transformação fundamental: a habitação deixou de ser um bem de primeira necessidade para se tornar um activo financeiro no sentido estrito.
As políticas monetárias das últimas décadas catalisaram este processo. Quando o Banco Central Europeu manteve taxas próximas de zero durante anos e injectou liquidez no sistema financeiro, tornou a poupança tradicional pouco atractiva. Os investidores procuraram alternativas, e o imobiliário emergiu como o activo perfeito: tangível, historicamente estável, facilmente financiável e com potencial de valorização consistente. Simultaneamente, o crédito hipotecário tornou-se tão abundante e barato que permitiu alavancagem em escala
».

Bruna Santos, A bolha do imobiliário não vai rebentar

Mesmo tendo sido publicado ainda em setembro, vale a pena ler na íntegra este artigo da economista Bruna Santos. À semelhança de outros textos (como este, de Agustín Cocola-Gant, também de leitura imprescindível), trata-se de um artigo a reter, para que - num contexto em que a narrativa dominante continua a reduzir o problema a uma mera «falta de casas» - não se esqueça a verdadeira génese da crise de habitação.

A natureza distintiva da atual crise manifesta-se, de facto, na desadequação do «pensamento convencional» para a interpretar, sobretudo no que a mesma contém de novo. É assim com a incapacidade em perceber que oferta e procura já não se esgotam na função residencial (casas disponíveis para as pessoas morarem), tendo passado a incluir as novas procuras especulativas, nem nas fronteiras da escala nacional (que deixou de ser exclusiva na relação entre oferta e procura). E é assim, também por isso, com o improvável rebentamento de uma bolha imobiliária no atual contexto, apesar da subida vertiginosa dos preços das casas.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Prémio «mas além de tudo isso, fez alguma coisa por nós?»


Para Manuela Ferreira Leite, que se juntou à campanha de Carlos Moedas. Quando um jornalista lhe pergunta se Lisboa está melhor, Ferreira Leite não hesita: «pelo menos debaixo do solo está de certeza», aludindo à construção do túnel de drenagem de Lisboa, que designou como «a grande obra do engenheiro Carlos Moedas», mas omitindo olimpicamente, como referido na notícia, que os primeiros passos do processo foram dados por Fernando Medina.

A fazer lembrar os Monty Python, a histórica «social-democrata» (aspas) considera, portanto, que «pode o jardim estar estragado, podem as pedras da calçada não estar muito bem, pode o lixo andar algumas vezes pouco condicionado»... Mas, se houver uma catástrofe (lembrando as cheias de Valência), «Lisboa está segura».

Cada vez mais à frente, no pelotão da frente da UE

O Eurostat atualizou o Indíce de Preços da Habitação (IPH) para o 2º trimestre de 2025, tendo Portugal registado a maior subida em termos homólogos (17,2%), entre 26 Estados membros, seguido da Bulgária (15,5%) e da Hungria (15,1%), com a a média europeia situada em 5,1%. A divergência em relação à UE não é de hoje, mas a aceleração do ritmo de aumento dos preços em Portugal desde o início de 2024 é indisfarçável. Isto é, desde que o governo da AD apresentou as suas propostas para o setor (incluindo a subsidiação desenfreada da procura) e entrou em funções.


Esta aceleração do aumento dos preços da habitação, fomentada pelas medidas do governo, torna-se ainda mais clara quando se estima a variação homóloga anual em valores absolutos (considerando para o efeito a série com referência a 2015 como base 100). De facto, e depois de um período de abrandamento entre 2022 e 2023, na sequência da pandemia e da crise inflacionária, mais significativo na UE, Portugal regressa em força a ritmos intensos - e sem precedentes - de aumento dos preços. Bem acima do que se passa à escala da UE.


Além da imagem de Portugal como um «Oásis» no deserto europeu, de Braga de Macedo, vem também à memória a metáfora do «pelotão da frente» na Europa, de Cavaco Silva, ora para se autocongratular com os alegados sucessos da sua governação, ora para exigir o regresso a essa dianteira a governos do PS. Pois bem, cá estamos nós, graças ao impulso dado pela AD, ainda mais à frente no pelotão da frente, ampliando a distância à Europa na crise de habitação.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

A despesa do Estado em Portugal é das mais baixas da UE


"Em paridades de poder de compra (que têm em conta o custo de vida em cada país), há apenas seis Estados da UE onde a despesa pública por cidadão é mais reduzida do que em Portugal, a saber: Bulgária, Letónia, Grécia, Roménia, Estónia e Lituânia. Com excepção deste último, são todos países onde o rendimento médio por habitante em 2024 (mais uma vez, ponderado pelo poder de compra) está abaixo do português. Por outras palavras, os recursos públicos alocados a cada cidadão em Portugal estão já hoje ao nível dos países mais pobres da UE. Na verdade, em vários países com menores rendimentos médios do que Portugal – Eslováquia, Hungria, Croácia e Polónia – o Estado gasta mais por cidadão. Por isso, não, não temos um Estado Social típico de país rico, pelo contrário. 

Apesar disto tudo, há quem insista na ideia de que é possível aumentar a eficiência do Estado, ao mesmo tempo que se reduz ainda mais a despesa pública em percentagem do PIB. O facto de termos já hoje um valor de apoio público por habitante ao nível dos países mais pobres da UE não parece afectar estas consciências. Quando lhes perguntamos como se faz essa magia, acontece-lhes o mesmo que a Paulo Portas em 2013: depois de andar meses a garantir que havia muito a fazer para melhorar a eficiência dos serviços públicos, o então ministro e líder do CDS apresentou um “Guião da Reforma do Estado” pífio, recheado de medidas já implementadas. 

Na verdade, há muitas coisas a fazer para melhorar a eficiência do Estado: regressar a níveis razoáveis de investimento público, oferecer salários e perspectivas de progressão que aumentem a capacidade de recrutamento e retenção de técnicos qualificados, apostar na formação (em particular, na gestão de pessoas), investir na digitalização de processos e serviços, evitar as externalizações de actividades que aumentam os custos para o erário público, orientar a gestão de organismos do Estado por princípios de autonomia e desempenho, entre outras. 

Muitas destas medidas implicam reverter, ou pelo menos estancar, a contínua redução dos recursos dedicados à acção do Estado. O governo vai dizendo que está disponível para isso. Mas também diz que vai reduzir os impostos e continuar a baixar o rácio da dívida pública a ritmo acelerado. A não ser que haja um milagre de crescimento em Portugal, não é possível fazer isto tudo. O problema é que os milagres não existem. E já sabemos que a despesa pública é sempre a variável de ajustamento. Até quando?"

 O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje.

sábado, 4 de outubro de 2025

Como agravar a crise com rendas «moderadas» para uma minoria rica?

1. Insistindo na ideia de que a crise de habitação se resume a uma mera falta de casas, bastando construir mais para aumentar a oferta e descer os preços (coisa que, aliás, não se está a verificar), e na crença de que o mercado tudo resolve - e mais ainda se financiado pelo Estado -, o governo baixou o IVA da construção para 6%. Fazendo fé, portanto, que ao abdicar da respetiva receita fiscal, para reduzir os custos de construção, dá às empresas um incentivo para produzir mais, permitindo, com o «choque de oferta» gerado, a descida dos preços da habitação.

2. Como contrapartida ao incentivo, e criando a ilusão de que o mesmo permite reorientar o setor da construção, demasiado centrado na produção de gama alta, o governo fixou tetos de valores, apresentados como «moderados», para venda e arrendamento de casas construídas com IVA a 6%. Nestes termos, os alojamentos beneficiários da redução podem ser transacionados até à «moderada» quantia de 648 mil euros ou arrendados até uns «moderados» 2.300€/mês. «Uma renda para a classe média», garante o ministro Pinto Luz, sem rir nem pestanejar.

3. E que contas fez o governo? Pinto Luz explica: «se aplicarmos 40% de taxa de esforço à renda de 2.300€, estamos num rendimento mensal de uma família de 5.750€ (...) É uma renda para a classe média». Ou seja, em vez de explicar como chegou aos 2.300€ mensais - e demonstrar que se trata de um valor «moderado» - o ministro calcula o rendimento que é preciso auferir para pagar esse montante, com uma taxa de esforço de 40%. Para perceber melhor o delírio, refira-se que apenas 6% das famílias ganha ao nível do que o governo designa por «classe média». Por isso, das duas uma: ou temos uma classe média surpreendentemente residual ou não estamos a falar de classe média.

4. Se a preocupação do governo fosse aumentar a oferta de casas com rendas compatíveis com os rendimentos das famílias, as contas era outras. Partiriam do salário mensal e estimariam, para obter um valor de renda moderado, o montante correspondente a uma taxa de esforço de 40%. Em 2024, por exemplo, a renda moderada de um casal de classe média, com um salário médio líquido mensal de 2.484€ (1.242€ vezes 2) - e não de 5.750€, como afirmou Pinto Luz - deveria rondar os 914€ (40% de taxa de esforço) em vez dos 2.300€ tidos pelo ministro como «moderados».


5. Ora, é precisamente aqui que começam os efeitos contraproducentes de uma medida que é dirigida, na verdade, a famílias com rendimentos elevados. Para uma taxa de esforço até 40%, um agregado em linha com o rendimento médio mensal líquido apenas pode pagar uma renda até 914€. E mesmo auferindo o dobro desse rendimento (4.968€), a renda moderada limite não poderia ultrapassar os 1.987€. Ou seja, um valor mesmo assim àquem dos 2.300€ fixados pelo governo e muito distante do valor médio de referência, a rondar os 900€.

6. Mais grave ainda, ao fixar os 2.300€ como referência para uma renda «moderada», o governo está a dar o sinal, a senhorios e proprietários, de que podem ir subindo as rendas até esse patamar, agravando valores e, nessa medida, dificultando ainda mais o acesso à habitação por famílias com menores rendimentos. Lembram-se quando a direita criticava a subida do salário mínimo por gerar uma aproximação ao salário médio? Pois, aqui a lógica é semelhante, só que em modo nefasto. E, como bem lembra Helena Roseta, o efeito tende a ser imediato: basta anunciar.

7. Cereja em cima do bolo: como se tudo isto não bastasse, o governo prepara-se para entregar a concessão de imóveis públicos a entidades privadas, durante prazos alargados, que por sua vez os poderão colocar no mercado cobrando rendas até aos tais 2.300€ mensais. Ou seja, prescindindo de reforçar o parque habitacional público, com valores de arrendamento regulados e por isso compatíveis com os rendimentos das famílias, antes beneficiando, com património público, os segmentos com rendimentos mais elevados. Tudo alinhado, portanto, para agravar ainda mais a crise.