quarta-feira, 24 de abril de 2024

Mitos do ensino privado com aparência de jornalismo

«Colégios privados sem vagas para novas inscrições», noticiava há dias o DN, acrescentando, em subtítulo, que a «falta de professores nas escolas públicas» seria uma das causas deste afluxo no privado e que o «perfil das famílias que recorrem a colégios tem mudado, havendo cada vez mais pais de classe média baixa a procurar alternativas ao público». Procura-se na notícia a origem da informação e percebe-se que a mesma se cinge a declarações de Rodrigo Queiroz e Melo, diretor da Associação do Ensino Particular e Cooperativo (AEEP) e a dirigentes de escolas privadas, sem que qualquer fonte ou série de dados estatísticos a sustente.

É sabido que Portugal, tal como muitos outros países, se confronta hoje com um problema de falta de professores. Mas daí a considerar que o ensino privado está a salvo desse défice, atraindo um número crescente de docentes, vai a distância de uma aldrabice. De facto, se o DN não se limitasse a servir de pé de microfone, no momento publicitário que generosamente concedeu ao privado, constataria, numa simples consulta da página da DGEEC, que é nesse subsistema, e não na rede pública, que o número de docentes tem vindo a diminuir.


Com efeito, entre 2015 e 2021 o ensino privado perdeu cerca de mil docentes, tendo o seu número aumentado em quase 8 mil no ensino público no mesmo período, permitindo assim recuperar parcialmente o corte de 30 mil educadores e professores a que a maioria de direita da PAF o sujeitou, entre 2011 e 2015, com o argumento de que havia professores a mais.

E quanto à alegada alteração do perfil dos alunos do ensino privado, no sentido de haver «cada vez mais pais de classe média baixa» a tentar inscrever os filhos em colégios, faria bem Queiroz e Melo, e a associação que representa, fornecer dados sobre o perfil socioeconómico dos seus alunos, de modo a fundamentar a sua afirmação. Porque o que sabemos, há muito, é que as escolas privadas não tornam pública essa informação, de modo a preservar a ilusão da sua supremacia em termos de resultados, contribuindo para a fraude dos rankings, nos quais ainda há quem acredite.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Este governo não é para jovens

Depois da tomada de posse do novo governo PSD-CDS, o debate público tem-se centrado nas primeiras medidas anunciadas pelo executivo. O primeiro foco de atenção mediática foi a polémica redução do IRS, que, ao contrário do que foi dado a entender pela direita durante a campanha, afinal não será muito diferente do que já tinha sido aprovado pelo governo anterior, acrescentando ao que já estava em vigor uma redução para os escalões mais altos.

Nos próximos dias, é provável que outras medidas sejam destacadas. Um dos grupos a que Luís Montenegro mais se tem referido é o dos jovens. O programa do governo, discutido na semana passada, inicia-se com o título “Um país com futuro para os jovens”. A expressão “jovens” aparece mais de 70 vezes no programa, que afirma que a “economia não dá suficientes oportunidades aos jovens” e que os jovens “não veem Portugal como parte do seu futuro” e inclui propostas para que estes possam “construir em Portugal o seu projeto de vida”. Como a ambição é grande, vale a pena avaliar em detalhe o que promete o PSD para os próximos anos.

Benefícios para que jovens?

A medida mais emblemática do governo dirigida às novas gerações é a do IRS Jovem. A promessa do governo é a de que irá alargar os benefícios fiscais que já existem atualmente para quem começa a trabalhar. O governo promete baixar os impostos para os jovens através da redução das taxas de IRS aplicáveis em todos os escalões, exceto no último, para os trabalhadores até aos 35 anos.

Esta promessa é enganadora por dois motivos. Por um lado, as contas feitas por uma consultora sugerem que os jovens podem até vir a perder face ao regime atualmente em vigor para quem esteja nos primeiros 5 anos de trabalho. Por outro lado, independentemente desse aspeto ser corrigido, o problema de fundo da proposta é que beneficia muito mais quem ganha mais. Mais de metade dos jovens ganha menos de €1000 por mês e ganharia muito pouco (ou nada) com esta medida, mas os mais ricos têm muito a ganhar.


Além disso, é difícil sustentar a ideia de que a redução dos impostos vai atrair os jovens que emigraram. Sobretudo porque não é isso que tem acontecido. O Programa Regressar, criado em 2019, foi pensado para atrair quem tenha estado fora pelo menos 5 anos. O impacto deste programa foi avaliado num estudo publicado recentemente por dois economistas que trabalham no Ministério das Finanças: entre 2019 e 2022, regressaram cerca de 4000 emigrantes ao abrigo deste regime, tendo beneficiado do desconto significativo no IRS. A faixa etária até aos 45 anos representa 75% do total.

O benefício fiscal é expressivo: os emigrantes que regressaram tinham um rendimento médio de 43 mil euros, muito acima dos 16,6 mil euros de rendimento médio nacional, mas pagaram uma taxa efetiva de IRS de 10,9%, inferior aos 13,6% pagos em média no país. Apesar de ganharem mais do dobro da média nacional, os emigrantes que regressam pagam menos impostos que a média.

No entanto, este desconto não tem sido suficiente para atrair os jovens que emigram. Desde 2011, saíram do país mais de 235 mil jovens até aos 35 anos, segundo os dados do INE. Só uma pequeníssima parte é que parece ter decidido aproveitar o desconto nos impostos para voltar e, de acordo com o estudo do Ministério das Finanças, a maioria dos que regressam tinha a sua vida familiar em Portugal (por exemplo, casais em que um dos cônjuges já se encontrava no país). Não é a redução de impostos que vai inverter a tendência de emigração porque não são os impostos que impedem os jovens de construir o seu projeto de vida no país.

Nada de novo na política de habitação

A segunda medida dirigida aos jovens que tem merecido maior destaque diz respeito à habitação. O governo pretende aprovar a isenção de IMT e de imposto de selo beneficia para compra de habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos. Mais uma vez, estamos a falar de uma medida dirigida a uma parte muito pequena dos jovens: os que já têm ou estão próximos de ter condições para comprar casas aos preços exorbitantes que hoje se enfrentam no mercado. Essa não é a realidade da maioria dos jovens, que tem dificuldades até para arrendar e dificilmente consegue poupar o suficiente para conseguir financiar a entrada de uma casa.

Os problemas estendem-se à proposta de uma “garantia pública para viabilizar o financiamento bancário da totalidade do preço da aquisição”. O problema desta garantia é que teria como consequência provável uma subida dos preços praticados no mercado, assim que os proprietários percebessem que o Estado está disposto a ser fiador.

Mais do que aquilo que pode mudar, o que salta à vista é o que o governo quer manter. O primeiro-ministro foi claro sobre a intenção de fomentar o Alojamento Local reverter todas as medidas que procuravam limitar timidamente a expansão deste setor, indiferente ao facto de a reconversão de habitação em alojamentos turísticos ser um dos principais problemas da crise atual. Além disso, Leitão Amaro, agora ministro da Presidência, disse durante a campanha que o PSD estaria aberto a reavaliar o regime dos vistos gold, que foi revogado depois de até a Comissão Europeia alertar para “riscos relacionados com a segurança, lavagem de dinheiro, corrupção e fuga aos impostos”, além de alimentar a especulação imobiliária nas cidades.

No mercado de arrendamento, o governo quer a “substituição de limitações administrativas de preços por subsidiação pública aos arrendatários em situações de vulnerabilidade/necessidade efetiva”. Por outras palavras, o plano do PSD é que seja o Estado a subsidiar os ganhos que os proprietários arrecadam com as atuais rendas altíssimas.

Nenhuma destas medidas resolve o problema dos preços exorbitantes para a maioria das pessoas. O setor imobiliário está cada vez mais virado para o setor de luxo, uma vez que responde ao padrão da procura que se tem intensificado nos últimos anos: fundos imobiliários e não-residentes ricos que não procuram casas para viver, mas sim como ativos para especular e gerar mais-valias. Em Portugal, o preço pago por compradores com domicílio fiscal no estrangeiro (ou seja, por não-residentes no país) é 43% superior ao dos compradores nacionais. O mercado funciona em benefício dos grandes proprietários. Não terá sido por acaso que as associações de investidores viram com bons olhos a viragem à direita.

Muito mais do que os impostos

O grande problema dos jovens está no emprego que encontram quando terminam os estudos, cada vez mais precário e mal pago. Boa parte desse problema mantém-se desde a última vez em que PSD e CDS estiveram no poder, entre 2011 e 2015. As reformas aprovadas nesse período, que incluíam a flexibilização dos despedimentos e a facilitação do recurso a contratos precários, contribuíram para a expansão de setores de baixa produtividade como o turismo, assentes em emprego instável, e generalizaram a precariedade no país. Portugal tornou-se um dos países da União Europeia onde o recurso a contratos a termo é maior, sobretudo entre os jovens, que, quando acabam os estudos, enfrentam frequentemente vários anos de estágios e contratos de curta duração, com pouca proteção laboral. A “economia [que] não dá suficientes oportunidades aos jovens” é fruto de um modelo económico que a direita promoveu e que o PS nunca reverteu verdadeiramente.

A precariedade teve um efeito de compressão dos salários, reconhecido por um estudo da Comissão Europeia que concluiu que existe um diferencial salarial entre contratos precários e permanentes e que este é maior nos países com maior percentagem de precários, como Portugal. Mais: o trabalho de investigação de três economistas do FMI aponta para a existência de uma relação entre a desregulação laboral e a redução da wage share – a fração do rendimento produzido numa economia que é recebida pelo fator trabalho, ou, por outras palavras, a fatia do bolo que cabe a quem trabalha. Um programa de governo que não pretende combater a precariedade não é um programa pensado para a maioria dos jovens.

A direita centra todo o seu discurso nos impostos porque o seu programa é governar para quem tem mais. É isso que explica, de resto, a reação exacerbada de inúmeros representantes da área política da direita face ao facto de o governo ter tentado enganar o país sobre o corte do IRS que ia aplicar já este ano. Luís Marques Mendes disse que o truque desmascarado representa “um dano sério na reputação e credibilidade do governo”; João Vieira Pereira escreveu que “mais do que um embuste, é enganar os portugueses”; já José Gomes Ferreira confessou que se sentia “enganado” como nunca sentira com o PS. Há uma dimensão de classe incontornável nestas críticas: a enorme revolta manifestada por quem tem acesso aos meios de comunicação contrasta com o pouco interesse demonstrado no passado, quando os truques eram sobre a atualização das pensões ou as promessas de investimento nos serviços públicos que não saíam do papel. As classes mais privilegiadas revoltam-se quando percebem o que está em jogo para si e sentem que alguma das medidas que as beneficia pode ficar em causa.

A maioria dos jovens ganha pouco ou nada com descidas do IRS e do IMT, mas tem muito a perder com cortes nos serviços públicos, com a aposta cada vez maior em serviços privados (e mais caros) em áreas como a saúde, com as políticas que promovem a especulação imobiliária e a expansão desenfreada do turismo ou com a redução dos direitos do trabalho. Os discursos e as medidas simbólicas, como a criação de um ministério dedicado, são apenas tentativas de forçar uma proximidade inexistente do governo com as gerações mais novas. A política deste governo não é para os jovens, é para a minoria do país que mais tem.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Alerta


O projeto do mercado comum, tal como nos foi apresentado, é baseado no liberalismo clássico do século XIX, segundo o qual a concorrência pura e simples resolve todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode ser conseguida de duas formas, ou pelo recurso a uma ditadura interna concentrando todos os poderes num único homem providencial, ou por delegação desses poderes numa autoridade externa, a qual, em nome da técnica, exercerá na realidade o poder político, que, em nome de uma economia saudável, facilmente irá impor uma política orçamental e social; uma política única, em suma. 

Em pleno debate na Assembleia Nacional francesa sobre o Tratado de Roma, em 1957, Pierre Mendès France, antigo primeiro-ministro francês e figura de referência da resistência ao nazifascismo criticou o projeto, lançando um “alerta sonoro e atual”, assim o designou José Medeiros Ferreira, em 2013

As tais autoridades externas, do Banco Central Europeu à Comissão Europeia, andam por aí a ditar políticas austeritárias únicas, em nome do mercado único e da moeda única. Sabemos bem quais são os seus vieses geopolíticos e de classe.

domingo, 21 de abril de 2024

Zeca Afonso - Menino do Bairro Negro

(José Pedro Gil e Emanuel de Andrade)

Se não é fúria a razão, se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender, haja o que houver

sábado, 20 de abril de 2024

Para o que der e vier

Aqui estamos a falar verdade. E a verdade é que os fundos comunitários e as chamadas “bazucas” não compensam, como nunca compensaram tudo aquilo de que se abdicou e se está a abdicar no nosso desenvolvimento. A verdade é que, com o Euro, o País só conheceu estagnação económica, contenção salarial, menos serviços e investimento público. A verdade é que o desrespeito pela independência do País é consequência da submissão e das ingerências da UE (...) A verdade é que o País perdeu soberania monetária com todas as consequências que aí estão e que ficaram muito evidentes durante o Pacto de Agressão das troikas; e na forma como se expressa hoje no brutal agravamento das taxas de juro decretadas pelo BCE.
Paulo Raimundo, 4 de abril de 2024.

O agravamento da situação nacional, onde pesa o elevado nível de endividamento externo do país é, no fundamental, consequência do processo de desindustrialização e de destruição do aparelho produtivo, das privatizações, da financeirização da economia e da submissão às imposições da União Europeia e de uma política ditada pela intensificação da exploração dos trabalhadores e, simultaneamente, protecção aos grupos económicos e financeiros. Um processo que, tendo estas causas estruturais, se acentuou de forma exponencial por via da adesão ao euro, este se transforma num factor estrutural adicional, originando perda de competitividade da economia portuguesa, quer nos mercados externos, quer no mercado interno e, mais recentemente, a partir de 2008, da transferência para os Estados e para os povos das dívidas acumuladas pelo sector financeiro, nomeadamente as que resultam do «lixo tóxico» e das fraudes bancárias.

Jerónimo de Sousa, 30 de novembro de 2012.

A moeda única fragiliza e põe em causa o aparelho produtivo nacional. É ou não verdade que a moeda única, um euro feito, como é inevitável, à imagem e semelhança do marco, super valorizado em relação ao curso normal do escudo, vai tornar ainda mais difícil a competitividade dos produtos portugueses nos mercados europeu e mundial quando confrontados com os nossos principais concorrentes, os países fora da zona do euro, os países asiáticos, os países do continente americano, com as suas moedas e taxas de câmbio próprias? (…) A moeda única e os critérios de Maastricht são um factor de aumento do desemprego. 
Carlos Carvalhas, 19 de março de 1997.

A União Económica e Monetária implicaria um maior domínio das transnacionais sobre a economia dos Estados-membros, um novo reforço da supranacionalidade, a perda de capacidade de decisões soberanas dos membros da CEE. A União Política, a concretizar-se, significará novas limitações da soberania nacional, atingindo os países mais fracos, entre os quais Portugal se situa iniludivelmente.
Álvaro Cunhal, 20 de maio de 1990.

Como se pode ver, na questão mais importante da economia política nacional das últimas décadas, os comunistas portugueses e seus aliados tiveram e têm razão. É por isso com muito gosto e com toda a independência que aceitei ser mandatário nacional da CDU às eleições para o Parlamento Europeu. É mesmo para o que der e vier

Panfleto de 1997

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Dezassete anos de Ladrões


Criado a 17 de abril de 2007, e com oscilações em termos de número de visitas, o Ladrões de Bicicletas fez ontem dezassete anos. Como lembrava José Gusmão em 2017, dez anos depois do seu surgimento, o blogue «nasceu num contexto de assustadora hegemonia do pensamento liberal», tendo contribuído, «para dar consistência e presença pública a um espaço plural de alternativas económicas», num país onde o debate político-económico continua claramente enviesado à direita, sobretudo nas televisões.

Temos portanto boas razões para continuar, com cerca de 13 mil seguidores no facebook, quase 7.500 no twitter e 1.800 no instagram, a rede a que o Ladrões aderiu mais recentemente. Pedalemos pois.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Governar para as grandes empresas


Não há coincidências nesta economia política de total liberdade para o capital, graças à abolição de controlos de capitais indissociável da UE criada em Maastricht: o governo quer precisamente reduzir a taxa de IRC para a taxa mínima de 15% acordada internacionalmente, confirmando os efeitos perversos da convergência de mínimos neste contexto institucional. 

Governa-se incondicionalmente para as grandes empresas: aparentemente, só a EDP pode esperar ter logo uma borla de 250 milhões de euros, obviamente canalizada para o bolso dos acionistas. O “orleanista” Lobo Xavier tem razões para sorrir. O distinto fiscalista sempre defendeu esta corrida para o fundo em matéria de IRC. 

As coisas estão de tal forma que o marxismo mais elementar expõe os mecanismos básicos desta economia política de forma mais eficaz do que a sabedoria convencional supostamente sofisticada.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Alojamento Local e crise de habitação: o que a direita finge não perceber

A direita agora no poder (PSD e CDS-PP) e na oposição (IL e Chega), que se prepara para recuar na regulação do Alojamento Local, a par de outros retrocessos graves e contraproducentes em matéria de política de habitação, finge não perceber a natureza da crise que o país atravessa, insistindo que se trata de uma mera questão de «falta de casas» e ignorando, portanto, o impacto das novas procuras especulativas na subida dos preços.


Não sendo obviamente o único fator a impulsionar a subida dos preços, que «descolaram», nos últimos anos, dos rendimentos das famílias (o que deveria, desde logo, fazer pensar quem acha que estamos num quadro convencional de relação entre a oferta e a procura), o Alojamento Local constitui, contudo, o segmento das novas procuras (neste caso para fins turísticos), cuja quantificação e incidência territorial melhor se conseguem apurar.

Assim, e considerando para o efeito o caso de Lisboa, importa continuar a confrontar a direita com alguns factos que contrariam a tese de que o Alojamento Local, tal como as outras novas procuras especulativas, «não tem culpa» pela crise de habitação com que a capital se confronta:

● Sem precedente histórico, Lisboa perdeu cerca de 3 mil casas na última década, invertendo o aumento de 34 mil entre 2001 e 2011. Um «encolher» do parque habitacional que não é possível dissociar da expansão do Alojamento Local no mesmo período. De facto, se as unidades de AL continuassem a ter uma função residencial (e não turística), o número de casas em Lisboa teria atingido um valor próximo de 339 mil em 2021 (cerca de mais 16 mil face a 2011).

● É nas freguesias do centro histórico, nomeadamente Santa Maria Maior e Misericórdia, mas também Santo António e São Vicente, que se concentra a oferta de Alojamento Local. Com valores acima de 10% no peso relativo do AL no stock total (alojamento residencial mais alojamento local), em Santa Maria Maior atinge-se um valor próximo de 40% e no caso da Misericórdia a rondar os 30%.

● De acordo com o INE, são também as freguesias do centro histórico que perdem mais população na última década. Para uma média de -1,4% na cidade, Santa Maria Maior e Misericórdia atingem quebras de população acima de -20%, com redução no número de famílias a superar os -25% (valor médio na cidade de -1,5%). E são também estas freguesias que mais alojamentos perdem no período, com valores acima de -15% (a média da cidade ronda os -2%).

É claro que a expansão desenfreada do Alojamento Local, geradora de um manifesto desequilíbrio entre a função residencial e a função turística, não é o único fator da subida do preço da habitação, que resulta da incidência territorial cumulativa das novas formas de procura especulativa. Mas o seu contributo para a atual situação é inequívoco, desde logo pela redução da oferta. O que é trágico é que, ao retroceder nesta e noutras matérias, com o aplauso da IL e do Chega, a AD não revela apenas a sua incapacidade para responder à crise de habitação, contribuindo ativamente, isso sim, para que a mesma se agrave ainda mais.

domingo, 14 de abril de 2024

Há dinheiro


“A melhor definição de Portugal”, segundo Pedro Magalhães, serve muito bem os interesses dos Alexandres Soares dos Santos e as suas campanhas ideológicas sobre o “não há dinheiro”. É uma péssima definição, portanto, até porque ofusca a desigualdade: há dinheiro, está é muito mal distribuído. Quem está no topo da distribuição de rendimentos, não deve dizer que não há dinheiro. E, no entanto, não fazem outra coisa. Curioso, não é? 

Na realidade, o problema é sempre de distribuição. Na causa pública sabem-no e por isso não têm o apoio de milionários, dependendo do trabalho militante, não-pago, de cientistas sociais competentes, como o economista Alexandre Mergulhão. Nas fundações dos pingos doces há dinheiro, na causa pública não há dinheiro. 

Seja como for, o estudo de Mergulhão sobre a questão fiscal é muito útil no atual contexto, quando o governo dos ricos, para os ricos e pelos ricos pretende reforçar o chamado Estado fiscal de classe. Duas imagens valem muitas palavras. 


Para lá da fiscalidade progressiva, de que estamos mais distantes, existem três outras formas, complementares e igualmente historicamente testadas, para garantir padrões de distribuição inconvenientes para os Alexandres Soares dos Santos. 

Em primeiro lugar, serviços públicos e prestações sociais robustas, tendencialmente universais, têm efeitos igualitários. A universalidade, por razões de economia política e moral, tem maior eficiência distributiva. 

Em segundo lugar, mais direitos laborais e menos direitos patronais garantem uma menor desigualdade na distribuição funcional de rendimento, entre trabalho e capital, e menor desigualdade dentro do trabalho, ainda antes de impostos, de prestações sociais e de serviços públicos; quanto mais centralizada e mais abrangente for a negociação coletiva, melhor; quanto maiores forem as liberdades sindicais e a taxa de sindicalização, melhor. 

Em terceiro lugar, o Estado, que institui os direitos e as obrigações associadas às relações de propriedade, pode e deve controlar setores estratégicos, da energia à banca. Assim se garante a “eutanásia dos rentistas”, enviando duas mensagens poderosas aos capitalistas: portai-vos bem; ide trabalhar para os setores mais concorrenciais, para os mercados interno e externo, malandros. 

sábado, 13 de abril de 2024

Obviamente, demita-se


Até um apoiante de sempre das direitas é obrigado a reconhecer que foi enganado pelo Governo. Se a elite do poder tivesse algum respeito pelo povo português, deveria acontecer o seguinte: o Presidente da República dissolveria a Assembleia da República e convocaria novas eleições; em seguida, demitir-se-ia.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Desonestidade espantosa


A desonestidade do Governo é espantosa. Coloco aqui um excerto da análise que fiz a 8 de março: 

Fruto da política desastrosa de aumento da taxa de juros e da enviesada decisão de remunerar com ela todas as reservas excedentárias dos bancos privados, os lucros que eram remetidos pelos bancos centrais aos tesouros nacionais volatilizaram-se, estando os dos próximos anos comprometidos. A banca privada lucrou, o orçamento público minguou.

A ameaça de sobrecarregar os orçamentos de Estado com os montantes perdidos pelos bancos centrais a favor dos bancos privados, continuará a pairar sobre as contas públicas e servirá como mais uma forma de condicionar a política orçamental de Estados cada vez menos soberanos. 

Entretanto, é necessário sublinhar a natureza arbitrária de tal ameaça: os bancos centrais, até porque controlam a emissão monetária, podem lidar facilmente com estes prejuízos contabilísticos, não requerendo qualquer forma de capitalização pública. 

A realidade baralha as contas do BCE (2)

 

O Banco Central Europeu (BCE) voltou a decidir, esta quinta-feira, manter as taxas de juro inalteradas na Zona Euro. Embora o banco central reconheça que "a maior parte das medidas da inflação subjacente estão a diminuir, o crescimento dos salários está a moderar-se gradualmente e as empresas estão a absorver parte do aumento dos custos laborais nos seus lucros", insiste que "as pressões internas sobre os preços são fortes", recusando baixar as taxas de juro.

Esta justificação para manter uma política monetária restritiva tem pouca adesão à realidade: independentemente do que se pense sobre a meta do BCE para a taxa de inflação (2%), a verdade é que a Zona Euro já se encontra muito próxima dela. Além disso, os salários reais na Zona Euro ainda se encontram abaixo do nível pré-pandemia, o que torna bastante difícil defender que existam pressões do lado da procura.


quinta-feira, 11 de abril de 2024

Então, que aconteceu à ambição?

Presumindo que a atualização do Programa de Estabilidade 2024-2028, deixada pelo PS e aprovada pelo atual governo, é consonante com o cenário macroeconómico do PS no seu programa eleitoral, é caso para perguntar o que aconteceu à ambição do PSD/CDS-PP, que serviu de mote para acusar o PS de ter uma proposta pouco ambiciosa para o país, «com níveis medíocres de crescimento», dizia então Miranda Sarmento.


A aceitação implícita do cenário de crescimento apresentado pelo PS, e que desconsidera o impacto das medidas do programa do atual Governo (o que já de si é notável), não é um pormenor. É que o programa eleitoral da AD assentava, todo ele, no delírio de um crescimento que atingiria os 3,5% em 2028 (bem acima dos 2,0% projetados pelo PS), em resultado do «choque fiscal», e que tudo permitiria fazer. Isto é, como Ricardo Paes Mamede oportunamente aqui assinalou, «reduzir os impostos 'a la' Iniciativa Liberal, aumentar as despesas públicas 'a la' PCP e Bloco de Esquerda. E, ao mesmo tempo, reduzir a dívida pública 'a la' Mário Centeno». Um programa miraculoso, de facto, com todas as fichas na ilusória «fada da confiança».

Ora, se o cenário macroeconómico que a AD apresentou em campanha já era, em si mesmo, fantasioso, não havendo «nenhum organismo internacional [a prever], seja de que forma for, níveis de crescimento da economia (...) alinhados com os do PSD», como bem assinalou na altura Mariana Vieira da Silva, parecendo que a AD se tinha limitado a somar «todas as medidas do lado da despesa», pondo depois «o país a crescer o que fosse preciso», que dizer agora, quando toda a ambição de crescimento, prometida pelo PSD e pelo CDS-PP parece ter-se esfumado? Terão tido vergonha de apresentar o seu cenário, mirabolante e com fins meramente eleitoralistas, em Bruxelas?

Rua


O Governo pretende desacelerar o aumento do salário mínimo. Este ano aumentou apenas 60 euros, cifrando-se em 820 euros. Até 2028 aumentaria ainda menos: apenas 45 euros por ano, em média, até chegar aos 1000 euros no final teórico da legislatura. A direita nunca gostou do Salário Mínimo Nacional. 

Fica assim dado o sinal de contenção salarial para todos os trabalhadores, garantindo um padrão com as décadas que levam as reduções dos direitos laborais: os salários reais crescem abaixo da produtividade, ocorrendo assim uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital. Esta transferência comprime o mercado interno e diminui os incentivos reais ao investimento modernizador. 

Em compensação, o Governo prefere baixar o IRC para as grandes empresas, à boleia de uma hipótese económica sistematicamente contrariada pela realidade dos factos. Neste contexto de constrangimentos orçamentais europeus apertados, esta e outras descidas regressivas de impostos representam um reforço do ataque aos serviços públicos. 

E são um ótimo pretexto para se deixar de falar de Serviço Nacional de Saúde e passar-se a falar cada vez mais de “sistema” e da sua “capacidade instalada”, como se faz a certa altura no programa, num deslizamento ideológico destinado a favorecer o reforço da predação do capitalismo da doença, o que já fica com metade do orçamento nesta área. 

Se os serviços públicos estarão em risco, o que dizer do rápido incremento que é necessário no investimento público em habitação para retirar Portugal dos últimos lugares europeus em termos de provisão pública? Em matéria de habitação, é como se o programa tivesse sido gizado por um escritório de advogados que trabalha na área da grande especulação imobiliária, onde o capital financeiro participa avidamente. 

E por falar em capital financeiro ávido: é preciso estar atento aos planos do governo para desvirtuar ainda mais o sistema público de segurança social, à boleia de uma conversa regressiva sobre “poupança”. Os esquemas de capitalização só acrescentam aos balanços do capital financeiro, que de resto se livra deles quando as coisas correm mal, como inevitavelmente acontece. 

Por estas e por muitas outras razões, é necessário dizer a este Governo: rua!

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Dar passos atrás, até dizer chega


«Uma vintena de beatos grisalhos fez um tratado pela família tradicional e o grande pai da austeridade, disciplinador do povo, foi apresentá-lo. Andam muito compinchas, comendo o pão bolorento da velha senhora, arrotando alto, para que se ouça bem. Querem que o mundo saiba o que os seus santinhos acham da vida dos outros. Querem que os seus votos valham em casamento alheio. Querem que a gente se deite na cama da Opus Dei para ter doze filhos cada um.
(...) Meus senhores, os inimigos da família são as políticas de austeridade, a crise da habitação, a subida das taxas de juro, a inflação, os baixos salários, a precariedade, a falta de perspetiva de futuro, a guerra na Europa, as alterações climáticas, a falta de apoios à parentalidade, a escassez de creches a preços comportáveis, a degradação da escola pública, os problemas de gestão do SNS, o preço da eletricidade e a pobreza energética, o caos das urgências obstétricas e a pobreza, exaustão e sobrecarga das mulheres
».

Capicua, A família tradicional

«Porque o que eu vejo, e todos vemos, é a direita tradicional, a direita clássica portuguesa, a integrar o discurso que o Chega tem sobre essas matérias. Não há nenhuma imposição sobre uma determinada visão da família. Antes pelo contrário, é exatamente o contrário. Eu vejo muito a direita a falar de família natural, mas eu não sei o que é isso de família natural. Eu sei que há muitas famílias.
Não há doutrinação dos jovens na escola. O que há é um ensino de respeito pelo outro, da tolerância, da liberdade de cada um fazer as suas escolhas, as suas opções de vida. E é muito importante que os jovens - e muitos deles votaram no Chega - tenham consciência, tenham consciência disto mesmo. Porque eu não acredito que a juventude portuguesa queira recuar. Nós avançámos muito na liberdade de cada um ser aquilo que entende. De viver com quem quer viver, de amar quem quiser amar. Estas vitórias que a sociedade portuguesa conquistou são vitórias que têm que ser preservadas, têm que ser defendidas todos os dias, desde logo pela juventude portuguesa.
Ninguém está a doutrinar ninguém. Se há coisa que se ensina na escola, como eu dizia, é o respeito pelo outro e isso é muito importante. É por isso também que é muito preocupante nós vermos a direita clássica, a direita tradicional, Pedro Passos Coelho, mas muita gente na AD também, a assumir bandeiras que são da extrema-direita
».

Pedro Nuno Santos (entrevista à CNN)

«É uma posição muito parecida - e repete historicamente - com aquela que os supremacistas brancos têm em relação a questões raciais. (…) Se olharmos para o que aconteceu com os Estados Unidos, por exemplo, com a emancipação das pessoas racializadas, aqueles que estavam contra a igualdade entre pessoas brancas e pessoas não brancas, diziam, por exemplo, mas porque é que as pessoas negras querem entrar nas mesmas universidades que as pessoas brancas? Há universidades próprias para eles, há escolas próprias para eles. Mas porque é que querem poder casar com pessoas brancas? Podem casar entre eles. E, portanto, o que é que os brancos queriam? Manter o seu lugar de privilégio, o seu poder. E a política é isto. As pessoas quando têm o poder só para elas, e quando têm os direitos só para elas, custa-lhes que outros que não tinham acesso a esses direitos passem a ter. E, portanto, não querem dividir o seu lugar de privilégio e de poder com os demais. Felizmente, a esmagadora maioria da sociedade portuguesa está confortável com uma Constituição que diz que somos mesmo todos e todas iguais. E a esmagadora maioria das pessoas gosta que, quando casa, que os seus amigos e as suas amigas, sejam homossexuais ou não sejam homossexuais, também possam casar, também possam ter filhos, possam adotar, possam recorrer à procriação medicamente assistida. Ficam felizes com essa diversidade».

Isabel Moreira (debate na CNN)

Sistémica


Seria muito esclarecedor ouvir Pedro Passos Coelho, José Luís Arnaut ou Miguel Pinto Luz na sua qualidade de vende-pátrias. As guerras culturais mais importantes têm lugar em torno das formas de economia política, ou seja, das lutas de classes, assim no plural. 

É preciso não esquecer que a corrupção sistémica, atentando contra noções básicas de interesse público, é indissociável dos processos de neoliberalização, sabemo-lo há muito

Em primeiro lugar, as privatizações, as concessões, as parcerias público-privadas e outras engenharias neoliberais necessariamente opacas induzem uma insalubre promiscuidade entre um poder económico empoderado e um poder político que se diminui. Em segundo lugar, a concentração de riqueza induz uma cada vez maior arrogância por parte do capital, o que julga cada vez mais que tudo se compra e tudo se vende, incluindo a influência política. 

Políticas para que jovens?

 

Em 2022, 52% dos jovens trabalhavam até 35 horas e recebiam, em média, €725/mês. Dos que trabalhavam entre 35 e 40 horas, 78,6% recebia €847. Os jovens pouco ou nada ganham com descidas do IRS, mas têm muito a perder com a redução das receitas do Estado e os cortes nos serviços públicos de que todos beneficiamos.

terça-feira, 9 de abril de 2024

O Partido das Surpresas Desagradáveis nunca desilude


É um padrão, que não falha. Sempre que a direita chega ao poder rasga os compromissos com os seus eleitores - que apenas serviram para captar votos - começando por culpar os governos do PS pela impossibilidade de os assumir e dedicando-se, logo de seguida e em regra, a fazer o contrário do prometido.

Em 2002, Durão Barroso recorre à tese da tangaos senhores deixaram Portugal de tanga»). Invocando a derrapagem das contas públicas, afirma a necessidade de «tomar medidas de contenção na despesa», o que o impede de concretizar a prometida redução dos encargos fiscais das famílias, caso recebesse o voto dos portugueses.

Em 2011, Passos Coelho tira da cartola a fraude da bancarrota, ignorando a crise financeira internacional, provocada pelos desmandos da banca e pelas políticas da UE e BCE, e o seu impacto na generalidade dos países. A coberto da troika, e indo além dela, leva a cabo a agenda austeritária pretendida, ao arrepio do que prometera em campanha.

Em 2024, e depois de acenar com o melhor de todos os mundos, com base numa previsão de crescimento fantasiosa e acusando em campanha o PS de ter falta de ambição, a nova/velha AD já se prepara para recuar no que não lhe interessa, como no caso da valorização da função pública. Entre outros, e na mesma lógica de baixar expetativas, o porta-voz do governo na SIC, por exemplo, já veio alertar para a «perceção errada que se está a criar à volta do excedente orçamental».

O PSD, Partido das Surpresas Desagradáveis, nunca desilude. Apenas engana, repetida e reiteradamente, muitos dos que nele votam, convencidos que as suas promessas eleitorais são para levar a sério.

Anti-Neves


João César das Neves participa no livro reacionário a que Passos Coelho deu caução política. Neves tem a virtude de nos mostrar como está tudo ligado no neoliberalismo inevitavelmente autoritário: da violência laboral à violência doméstica, da exploração à opressão, da mentira à ocultação. Tem também a virtude de nos mostrar as monstruosidades intelectuais e morais que uma certa interpretação da economia convencional produz. Lembro que César das Neves foi um dos dezassete economistas do cortejo fúnebre da economia portuguesa promovido pelo PSD.

Em primeiro lugar, o Salário Mínimo Nacional (SMN) é visto como uma interferência malsã, destruidora de emprego, no “mercado de trabalho”, como se as relações laborais fossem uma ordem espontânea, onde tudo corre bem para todos, no melhor dos mundos. Não são e não corre. Na realidade, um SMN em atualização constante gera procura adicional de que dependem outros rendimentos, estimulando a economia. 

Nos inquéritos do Instituto Nacional de Estatística, os empresários dizem sistematicamente que as “expetativas de vendas” são a principal determinante do investimento, e não os impostos ou os custos laborais. Não é aliás por acaso que o aumento do poder de compra do SMN esteve associado à criação de tanto emprego, para lá de ser um instrumento de combate à pobreza laboral e logo de defesa da família.

Em segundo lugar, a economia neoclássica, com o seu utilitarismo, incluindo o pressuposto das preferências individuais ditas exógenas, implicitamente autodeterminadas, tem servido bem para naturalizar e racionalizar todas as relações humanas, mesmo as que são objetivamente mais opressoras e/ou exploradoras: se elas não se queixavam, qual era o problema? Elas lutaram, claro, mas isso é toda uma história rasurada por estes reacionários. 

Seja como for, não é por acaso que Amartya Sen, o mais feminista dos prémios em “memória de Alfred Nobel” de Economia, criticou o utilitarismo e reabilitou a tradição crítica da economia política, defendendo que as “preferências” individuais tendem a ser “adaptativas”, partindo, entre outros, dos seus estudos sobre a situação das mulheres na Índia: 

“As pessoas carenciadas tendem a acomodar-se às suas privações por causa da mera necessidade de sobrevivência e podem, como resultado, não ter a coragem de exigir qualquer mudança radical e ajustar mesmo os seus desejos e expectativas ao que, sem ambições, veem como alcançável.” 

Sim, este Neves é um economista abominável. Não, não é caso único. É uma cultura; uma incultura neoclássica com implicações neoliberais, na realidade.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Antes eurocéptico que euro-ingénuo

Quando decidiram avançar para o aprofundamento da integração económica, os líderes da UE poderiam ter decidido criar regras comuns para as políticas laborais e fiscais, mas não o fizeram. Pior, inscreveram nos Tratados que nenhum país poderia ser obrigado a harmonizar esse tipo de normas contra a sua vontade. Os resultados deste aparente respeito pela soberania nacional eram previsíveis e as últimas décadas demonstraram-no. 

Não podendo recorrer à taxa de câmbio, nem à pauta aduaneira, nem ao apoio público aos produtores nacionais, a forma mais simples de um governo promover a competitividade económica do seu país é reduzir os custos para as empresas. Entre esses custos, os mais relevantes são os salariais e os fiscais. Ou seja, no seio da UE os governos são incentivados, na prática, a reduzir os impostos sobre os lucros e rendimentos mais elevados, as contribuições das empresas para a segurança social e os direitos laborais. 

Neste processo, a capacidade financeira dos Estados degrada-se. Para tentar compensar a perda de receita fiscal e contributiva, aumenta-se o peso dos impostos indirectos (como o IVA) no financiamento dos Estados. Mas esses impostos penalizam mais os mais pobres do que os mais ricos. Menos direitos laborais, impostos mais regressivos e menos Estado Social resultam em sociedades mais desiguais e menos coesas. Por isso, também, mais dispostas ao conflito. Por acção ou omissão, este plano inclinado está inscrito nas regras em vigor na UE. Alterá-las já era difícil, uma vez que implicam mudanças nos Tratados, o que exige unanimidade entre os Estados Membros. O alargamento da UE para mais do dobro de países e as crises sucessivas que têm assolado a Europa tornaram ainda mais improvável a obtenção de consensos para alterar aquela deriva anti-social.

Não é preciso ser “antieuropeísta” (o que quer que isso signifique) para identificar aquele viés no processo de integração europeia. Podemos e devemos valorizar o contributo que a CEE deu para o regresso da paz à Europa, depois de séculos de conflitos recorrentes. Podemos e devemos reconhecer nas instituições europeias elementos cruciais de aprendizagem colectiva e de promoção do diálogo e cooperação entre povos e entre Estados. Tal não significa que da UE só venha bem ao mundo, ou que podemos transformá-la de repente em algo melhor só porque gostaríamos muito que isso acontecesse. Ser céptico sobre o que é e o que pode ser a União Europeia é uma questão de bom-senso.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

Todo, tudo


95 anos de Grand Jacques. Há no séc. XX este artista monumental, que vai para além do seu núcleo, que transforma a canção numa história, num drama, numa tragicomédia, dando expressão com o corpo todo, com tudo. Uma imensidão de ser humano.

Eles sabem o que fazem


Passos Coelho vai apresentar um livro que ataca as famílias e onde se defende a cultura da morte, a violência e o individualismo possessivo. Vale tudo para federar as direitas, incluindo a extrema-direita, através de um neoliberalismo cada vez mais reacionário, rumo a uma eventual candidatura presidencial ou à substituição de Montenegro. 

De facto, sabemos que a maioria das famílias, as das classes trabalhadoras de todas as cores e feitios, que criam tudo o que tem valor, são sempre ameaçadas por quem quer desmantelar o Estado social de base universal, tudo aquilo que dá segurança genuína, incluindo laboral. Sabemos que as famílias são ameaçadas pela intensificação da exploração, pelos horários cada vez mais longos e baralhados, pela precariedade, pela ameaça do desemprego e pelo despotismo patronal promovido por esta cultura. A experiência da troika mostrou isto à saciedade. 

Também sabemos, pela investigação na área dos determinantes sociais da saúde, que as políticas desta gente matam. Literalmente. Os mecanismos causais estão bem identificados há muitos anos. O Papa Francisco está em terreno seguro, do ponto de vista empírico, quando denuncia esta “economia que mata”. E sabemos igualmente que a destruição do Estado social exige um Estado cada vez mais repressivo, em sociedades cada vez mais desiguais e logo cada vez mais violentas. 

De resto, a apologia da violência doméstica, a principal chaga deste país nesta área, está presente em fórmulas destas: “senhoras, alegadamente tiranizadas, que nunca se queixavam”. Não surpreende que setores anti-franciscanos da hierarquia da Igreja Católica apoiem um discurso de ódio por parte dos que não têm hesitado em promover políticas de mercadorização de todas as esferas da vida. O individualismo possessivo mais desbragado e as “estruturas de pecado” resultantes pouco lhes importam. Eles sabem o que fazem. 

Enfim, sabemos que o capitalismo neoliberal está prenhe de todos os monstros. Eles aí estão. Não passarão.

domingo, 7 de abril de 2024

Ver


Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras. E quantas imagens valem mil palavras? O valor do trabalho da valorosa Maria Lamas está para lá destas contabilidades: imagem e palavra articulam-se harmoniosa e certeiramente, afinal de contas. 

Tendo calcorreado o país durante dois anos, foram muitas as fotos tiradas algures nos finais dos anos 1940 por esta militante tão antifascista quanto comunista – insisto nestas designações, por razões de combate pela memória. As mulheres de Maria Lamas estão muito bem expostas na Gulbenkian até ao final de maio. A entrada é gratuita. 

Escolho uma foto apenas: em Miranda do Douro, uma menina de cinco anos, descalça, carrega às costas o seu irmão de 8 meses, enquanto a mãe trabalha no campo. O que terá sido feito dela, deles? 

Estamos perante corajosos retratos de um país que o fascismo produzia e escondia, cruzando género e classe. Olhar e ver, ver e emancipar.

Jornal antifascista, jornal de abril


Enquanto grande parte da população se sente deixada para trás, interesses e sectores que têm enriquecido a cada crise apostam agora na extrema-direita, a que o campo mediático escancarou as portas, para aproveitar as falhas de uma social-democracia crescentemente social-liberal e conseguir invadir o terreno social — sem abdicar do liberalismo económico. Mais de um milhão de eleitores dirigiu o voto para o Chega, muitos deles votando pela primeira vez (jovens ou anteriores abstencionistas). A génese deste neoliberalismo oportunista e autoritário de rosto social tem as suas raízes num passado de décadas. O facto de o país estar agora no mapa da extrema-direita não significa, porém, que se possa olhar para os mais de 18% de actuais votantes do Chega como motivados por racismo ou xenofobia. A sociologia eleitoral deste acto será complexa, mas tudo indica que os votantes deste partido, não deixando de incluir outras proveniências, reúnem uma geografia do ressentimento, do protesto e da cólera contra um poder político que não resolve os problemas das suas vidas. A «máquina dos sonhos está avariada», também em Portugal (...) Trata-se agora de disputar o sentido da desilusão, para reabrir caminhos de democracia e igualdade.
Sandra Monteiro, O choque da extrema-direita nos 50 anos da revolução, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, abril de 2024.

A dimensão internacional do movimento da extrema-direita não é uma coincidência ou um mero processo de contágio político. A extrema-direita cresce à escala europeia porque o recuo do Estado social e dos direitos do trabalho é uma tendência europeia estável, com várias décadas, que foi destruindo laços de solidariedade, enfraquecendo o movimento dos trabalhadores e os seus partidos. O envolvimento da social-democracia nesse processo criou um grande centro político de sentido único, ainda que com velocidade e ferocidade variáveis. Em Portugal como na Europa. As eleições legislativas de 10 de Março decorreram após oito anos de governos do Partido Socialista (PS). O país chega a eleições com uma gravíssima crise de habitação, problemas nos serviços públicos, uma desvalorização dos rendimentos, lucros recorde de grandes empresas e um excedente orçamental que ultrapassou as próprias expectativas do governo. O ministro das Finanças do PS, Fernando Medina, continuou a congratular-se com o que continua a designar erradamente como «contas certas».
José Gusmão, Extrema-direita: o que tem o Algarve que é diferente dos outros?, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, abril de 2024.

sábado, 6 de abril de 2024

Símbolos e imagem


A direita pacóvia, provinciana, conservadora e revanchista, cuja primeira medida que tomou quando chegou ao poder foi a alteração do logotipo administrativo do Governo, afirmando demagogicamente (o Chega não diria melhor) que o anterior, sem «escudo, quinas e castelos», punha em causa os símbolos nacionais, faria bem em pôr os olhos na mudança de imagem da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pela mão de uma insuspeita Maria José Nogueira Pinto. Foi há cerca de 20 anos, no início deste século.

Está tudo ligado, basta unir os pontos


Nicolas Schmit, comissário europeu do Emprego e dos Direitos Sociais, em entrevista ao Público que vale a pena ler na íntegra, dá nota de dois pontos essenciais no debate sobre a atual crise de habitação. Por um lado, o reconhecimento da necessidade de uma regulação do mercado favorável à satisfação das necessidades da população, no que diz respeito, por exemplo, ao Alojamento Local e fogos devolutos, a par de restrições ao regime dos Vistos Gold e arrendamento de curta duração. Ou seja, nos antípodas do retrocesso a que o Governo da AD se prepara para deitar mão, nesta matéria.

Em segundo lugar, o reconhecimento de que a crise de habitação é europeia e configura uma «urgência real», com os alarmes a soar numa Bruxelas que tem grandes responsabilidades pela situação a que se chegou, exigindo debate e atuação. Sublinhando a importância de uma intervenção pública diferente, face à evidência de que o neoliberalismo não resolve o problema, Nicolas Schmit vai, talvez até de forma algo inadvertida, a um ponto essencial das lógicas da integração europeia: a habitação converteu-se num activo financeiro e, por isso, «investir no imobiliário tornou-se uma grande oportunidade de investimento», sem que o objectivo seja o «de providenciar habitação às pessoas», mas antes o de «investir neste tipo de activo».

Por cá, contudo, continua a achar-se que é a escassez de imóveis que explica o disparar dos preços da habitação, ignorando portanto o papel das novas procuras especulativas, potencialmente inesgotáveis, nacionais e sobretudo internacionais que, ao gerar um efeito de arrastamento dos preços, fomentam a construção de gama mais elevada, reduzindo a oferta e o acesso à habitação às famílias com rendimentos intermédios. E como Portugal reúne um conjunto de fatores que favorecem o investimento imobiliário estrangeiro, não surpreende que se encontre entre os países onde os preços continuam a aumentar. É tudo muito claro e está tudo ligado, basta unir os pontos.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

A realidade baralha as contas do BCE


Os dados mais recentes da Zona Euro confirmam a tendência dos últimos tempos: a taxa de inflação continua a diminuir mais rápido do que o que era antecipado pelas principais instituições. Em março, a taxa de inflação fixou-se nos 2,4%, encontrando-se já bastante próxima da meta definida pelo Banco Central Europeu (2%). A taxa tem vindo a diminuir de forma consistente desde que atingiu o pico há cerca de um ano e meio, em outubro de 2022.

Com a descida da taxa de inflação para valores manifestamente baixos, torna-se ainda mais difícil defender a manutenção da política monetária restritiva. No entanto, o BCE continua a resistir à descida das taxas de juro e o principal motivo referido para essa resistência é o "mercado de trabalho forte" - leia-se, o facto da política monetária ainda não ter provocado o aumento do desemprego pretendido.


Depois de um choque inflacionista que não foi provocado pela procura e pelos salários, mas sim pelos constrangimentos da oferta de matérias-primas, a evolução dos últimos meses não é surpreendente. A taxa de inflação tem diminuído sobretudo devido à redução das pressões sobre os preços de matérias-primas essenciais, com destaque para a energia. O que explica a descida da taxa de inflação é o mesmo tipo de fatores que esteve na origem da sua subida inicial: os constrangimentos do lado da oferta, desde a política “zero-covid” na China, que atrasou a reabertura de cadeias de produção de que muitos países dependiam, à invasão russa da Ucrânia, que fez disparar os preços dos bens energéticos nos mercados internacionais.

Esta evolução só baralha as contas de quem assentou a política monetária numa premissa errada: a de que a inflação se devia a excesso de procura agregada e que os bancos centrais deveriam combatê-lo com recurso ao único instrumento de que dispõem - as taxas de juro - de forma a reduzir o investimento e a comprimir a atividade económica e o emprego. Quando só se tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

Vale a pena recordar o que escreveu o economista Joseph Stiglitz no final do ano passado: “É claro que os banqueiros centrais vão dar palmadinhas nas costas. Mas eles tiveram pouco papel na recente desinflação. O aumento das taxas de juro não resolveu o problema que enfrentámos. A desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas.” O insuspeito Paul Krugman, que, à semelhança de Stiglitz, foi premiado com o equivalente ao nobel da Economia, também reconheceu que a inflação foi provocada por constrangimentos da oferta, ao contrário do que a maioria dos economistas defendia, aconselhando "cuidado com os economistas que não admitem que estavam errados".

A verdade é que a evidência empírica divulgada ao longo dos últimos dois anos - incluindo pelo próprio BCE - sugere que o problema não esteve no lado da procura e dos salários. Nesse sentido, a preocupação que o banco central continua a manifestar face aos números do emprego não tem a ver com o risco de uma espiral inflacionista que nunca se materializou. É um reflexo do posicionamento político - e não técnico - que está na base da sua atuação.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Em sucessão


É a arte política que imita a vida política. Uma das melhores séries que já vi na vida – Succession – imita os dramas do capitalismo de herdeiros, num conglomerado mediático, onde política, família e negócios estão entrelaçados. 

Inspirada em Murdoch, esta série pode ter uma versão portuguesa, com base no seguinte guião: pai e filho na sombra do pai, donos de uma sociedade indigente de comunicação, fazem um acordo com um político com p pequenito de seu apelido Montebranco; em troca de todo o apoio mediático, este compromete-se a salvar o grupo à beira da falência. É tudo ficção, como dizem os pós-modernos?

Daí até termos dois economistas e um engenheiro do Partido sem S e sem D num “debate” a três sobre o novo Governo de Montebranco é um passo. Regredimos a 2011, como argumentou Nuno Serra. Numa e noutra séries, é tudo bastante sórdido, tal como no capitalismo realmente existente.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Um ministro que confia em rankings

Em artigo publicado em junho de 2023, o agora ministro da Educação, Fernando Alexandre, assumia, numa crença e defesa implícita dos rankings, que o «alargamento do fosso entre escolas privadas e escolas públicas» constituía o resultado da «deterioração das condições de ensino na escola pública». O argumento, porém, encerra um paradoxo. No mesmo texto, o economista explica esse fosso como decorrente da migração de melhores alunos para o privado e não, portanto, da alegada degradação do ensino público.

É certo que Fernando Alexandre reconhece, no referido artigo, a «importância do contexto socioeconómico nos resultados escolares». Mas daí não retira nenhuma ilação consequente sobre a inutilidade dos rankings para a comparação entre público e privado. Na prática, o ministro desvaloriza o facto de as escolas privadas, ao contrário das públicas, não fornecerem dados sobre o perfil socioeconómico dos seus alunos, impedindo pois qualquer comparação minimamente séria entre o respetivo desempenho (de que a comunicação social, aliás, também prescinde).

Vale por isso a pena assinalar, para as escolas públicas (exercício que não pode ser feito, por sonegação de dados, para o privado) o quanto o contexto socioeconómico pode alterar a ordenação de escolas com base nos resultados nos exames. De facto, considerando o ranking mais recente, quando se reordenam as escolas depois de calibrar os resultados com o perfil dos alunos («ranking de superação»), verifica-se que as escolas que alteram a sua posição em mais de 25 lugares (descendo ou subindo) representam cerca de 60% do total, sendo apenas 7% as que mantém a sua posição e que sobem ou descem o seu número de ordem até 3 posições. Os contextos contam sim, e não é pouco.


A complacência do novo ministro para com a fraude intelectual dos rankings, admite-se até que por uma certa ingenuidade, não fica, contudo, por aqui. Para Fernando Alexandre, a alegada «trajetória descendente» da escola pública tem levado os pais, que «querem sempre o melhor para os seus filhos», a «colocá-los na melhor escola, isto é, a escola que garanta um ensino de qualidade e uma maior probabilidade de entrada no curso superior que desejam». Razão pela qual, acrescenta, «cada vez mais pais (...) optam por investir valores significativos dos orçamentos familiares em escolas privadas».

Além do pressuposto, indemonstrado (justamente pela falta de informação de contexto), da prevalência do ensino privado relativamente à Escola Pública, em termos de qualidade (e que é refutado, por exemplo, pelo facto de as escolas públicas prepararem melhor os alunos para a universidade), é também questionável a referida ideia de declínio do ensino público. Para lá da melhoria de indicadores, como no caso do abandono escolar ou das taxas de sucesso, importa assinalar, por exemplo, que a queda nos resultados do PISA de 2022, em linha com a OCDE, não revelou diferenças entre os dois universos de escolas.

Por último, é mesmo importante perceber que os rankings - mais do que instrumento credível de avaliação do desempenho das escolas - traduzem, isso sim, um processo político com contornos de «operação comercial», infelizmente bem sucedido. Porquê? Porque não sendo sérios, fomentam justamente, junto da opinião pública e das famílias, a falsa perceção de superioridade das escolas privadas e de declínio da Escola Pública, além de instalarem lógicas perniciosas de competição, que acentuam práticas perversas (que vão da seleção de alunos à inflação de notas), num setor onde o princípio da cooperação é mesmo essencial para contrariar as desigualdades de partida.

Adenda: Não é verdade, ao contrário do que refere o ministro Fernando Alexandre, que «são os rankings das escolas que permitem aferir a existência de inflação de notas internas, através da comparação dessas notas com as dos exames nacionais». O Ministério da Educação dispõe, como é óbvio, tanto das classificações finais de frequência como das classificações de exame dos alunos. Tal como não é verdade, em termos de comparação público/privado, pelo exposto acima (e nomeadamente pela inexistência de dados sobre o perfil dos alunos do privado), que «são os rankings que permitem ver como evolui a qualidade do ensino nas escolas, realizando estudos que têm em conta o seu ponto de partida e o contexto socioeconómico dos alunos».

terça-feira, 2 de abril de 2024

Viva a Constituição da República Portuguesa


A Constituição da República Portuguesa, aprovada a 2 de abril de 1976, é sem dúvida o mais avançado e mais belo documento político coletivo jamais redigido na história deste país, cristalização de uma relação de forças produzida durante o inesquecível processo revolucionário. Foi descaracterizada, é verdade, sobretudo em 1989 e na sua parte económica, mas ainda conserva traços de 1976.

Neste contexto de celebração, retomo uma questão que me preocupa, parte da perda de memória e de cultura políticas à esquerda:

Para além de atribuir à palavra liberal um prestígio imerecido, os que, à esquerda, usam equivocada e apologeticamente a designação «democracia liberal» para caracterizar a democracia saída da Revolução de Abril, esquecem que o liberalismo histórico sempre foi oligárquico, intrinsecamente desconfiando da participação popular e favorável a um capitalismo desigual, que facilmente desagua em formas autoritárias, particularmente em contexto de crise e nas periferias. A nossa democracia superou originalmente o liberalismo histórico, porque se propôs suplantar uma forma de capitalismo que não dava resposta às aspirações de liberdades reais para todos, incluindo nos espaços onde se trabalha, tantas vezes furtados a avaliação do que se pode ser e fazer.

Estas origens revolucionárias do nosso regime constitucional democrático, de matriz tão antifascista quanto antiliberal, explicam que na narrativa liberal, «o socialismo» seja o nome da situação em vigor até aos dias de hoje. A contra-revolução neoliberal nunca teria existido. As intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e às suas imposições liberalizadoras totais no campo económico e financeiro, particularmente no quadro da União Europeia, as privatizações maciças desde o cavaquismo, a adesão ao euro, e a correspondente perda de instrumentos de política económica, nunca teriam existido. 

Enquanto existirem concessões colectivistas no capitalismo português, mesmo que enfraquecidas, da Segurança Social a um mínimo de provisão pública desmercadorizada, esta gente não descansa ideologicamente e daí a insistência convergente das direitas cada vez mais extremas em projectos de ainda maior descaracterização constitucional.