quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Paz e segurança social


Estamos num contexto de neoliberalismo cada vez mais armado e agressivo. A luta pela paz cruza-se com a defesa do Estado social de forma cada dia mais clara. 

Deixo um excerto de um artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa:

Nas presentes circunstâncias históricas, há um outro padrão que tem de ser identificado e que se articula com o da promoção do Estado policial: a erosão dos Estados sociais europeus, através do reforço do militarismo. O antigo primeiro-ministro holandês Mark Rutte, tão liberal quanto austeritário, agora secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), declarou que «basta uma fração dos gastos na Saúde e nas pensões para o orçamento de defesa». 

Luís Montenegro veio logo garantir: «Os próximos anos serão de acréscimo de investimento em segurança e defesa (…) Não há como evitar». Trata-se sempre de fechar as alternativas a um neoliberalismo que gera cada dia mais monstros. No tempo da Guerra Fria, a escolha enunciada por Rutte era mais difícil. Havia medo do socialismo. Hoje, o medo ainda está demasiado concentrado na base da pirâmide social, para onde foi transferido precisamente com as derrotas do socialismo. E é lá que a política neoliberal o quer manter.

O mesmo primeiro-ministro que aumenta as transferências orçamentais para o setor privado do capitalismo da doença, que já consome cerca de metade do Orçamento do Estado para a saúde, prepara-se para aumentar as transferências orçamentais para o mais lucrativo, até porque ainda mais estruturalmente opaco, capitalismo militar. 

Afinal de contas, como disse um dia Isabel Vaz, atual presidente do Grupo Luz Saúde e apoiante da Iniciativa Liberal (IL), «melhor negócio que o da saúde só o das armas». Ambos dependem claramente de decisões estatais de alocação de recursos. Trata-se de um autêntico desperdício de recursos, ainda para mais num país com uma situação geopoliticamente distendida como poucos. 

Hoje, debate da Causa Pública, em Lisboa


A partir das 18h30, na livraria Almedina (Saldanha), a Causa Pública discute «A 'perceção de segurança' e a deriva autoritária», contando com a participação de Bernardino Soares, Flávio Almada e Paula Marques. A entrada é livre, apareçam.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

O que dizem os números da inflação na Argentina?


Na imprensa económica, Javier Milei tem merecido elogios pela contenção da taxa de inflação argentina. Ao fim de um ano de governação, em dezembro, a taxa de inflação mensal foi de 2,7%, o que contrasta com a taxa de 25,5% registada no mesmo mês do ano anterior, como foi assinalado pela revista The Economist, onde se pode ler que as medidas de Milei tiveram um efeito "dramático" sobre a taxa de inflação.

No entanto, este não é o único dado relevante apresentado no artigo: "Os preços de alguns produtos essenciais, dos quais dependem as famílias mais pobres, subiram de forma desproporcional desde que Milei assumiu o governo. [...] A eliminação dos subsídios aos transportes e energia significa que os preços dos bilhetes de autocarro e comboio aumentaram de mais de 300%. Os preços da eletricidade e do gás dispararam em 430%".

Quando se olha apenas para o valor da taxa de inflação, não se tem em conta as diferenças na evolução dos preços de diferentes produtos ou serviços. Por outras palavras, ao olhar para a evolução média dos preços, não se tem em conta a variância. Como os padrões de consumo variam consoante o rendimento das pessoas, há subidas de preços que afetam mais uns grupos do que outros. Tipicamente, a subida dos preços em bens ou serviços essenciais (energia, alimentos, transportes, etc.) tendem a prejudicar mais as pessoas que ganham menos, uma vez que gastam uma parte maior do seu salário nestes bens.

A eliminação dos subsídios públicos por Milei é parte de uma vaga de cortes nos serviços públicos, que tem tido consequências severas para a sua qualidade em áreas como a saúde, a educação ou a investigação científica. Além disso, a austeridade também contribuiu para acentuar a crise em que o país se encontrava: na primeira metade de 2024, a economia contraiu mais do que se esperava e a Argentina entrou em recessão técnica, com o desemprego a aumentar. É difícil ignorar os custos sociais da política económica de Milei. Nesse sentido, o artigo da The Economist termina com uma conclusão razoável: "A tolerância do público para crescimento baixo e desemprego e pobreza elevados não durará para sempre, mesmo que a inflação tenha sido mitigada".

Amanhã, conferência Praxis sobre a contra reforma da legislação laboral

«A Ministra do Trabalho Maria do Rosário Palma Ramalho anunciou uma contra reforma da Legislação Laboral, no sentido de a tornar mais flexível, e menos dependente do modelo presencial.
Antes defendia a necessidade de não haver alterações sistemáticas ao Código do Trabalho, em nome da certeza e segurança jurídicas. Agora propõe-se reverter a muito recente reforma introduzida pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril. As contradições são evidentes: a Ministra propõe-se fazer mudanças sem avaliar o impacto das alterações, enquanto a sua aparente preocupação com a modernidade soa à velha receita da Troika».

Em mais uma videoconferência promovida pela Praxis, discutem-se os sinais de vontade do governo em proceder a uma contra reforma da legislação laboral. O debate realiza-se amanhã, a partir das 21h00, contando com a participação de Zenha Martins (professor de Direito do Trabalho na Universidade Nova de Lisboa e membro da Praxis) e Joana Neto (docente universitária, da Direção da Praxis). Sessão aberta a todos os interessados, com inscrição prévia aqui.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Bons ventos


Sopram de Espanha, com o governo de Pedro Sánchez a apresentar um conjunto de doze medidas, «robustas e muitas delas sem precedentes», para enfrentar a crise de habitação, visando três objetivos essenciais: «mais habitação, melhor regulação e maiores apoios». Isto é, os pilares em que deve assentar uma política habitacional ciente da natureza inédita e específica da atual crise, que atravessa a generalidade dos países e que se carateriza pelo surgimento de novas procuras, que encaram as casas como meros ativos de investimento turístico e financeiro.

Quatro das doze medidas apresentadas visam reforçar o parque habitacional público, criando para o efeito uma Empresa Pública de Habitação que passará a gerir os imóveis e os solos públicos com vocação residencial, sendo garantido às entidades públicas o direito de preferência na aquisição de imóveis e terrenos e blindada, sem termo, a propriedade estatal das habitações que vierem a ser construídas, impedindo assim a sua alienação.

Num segundo eixo, que consagra um conjunto de instrumentos de regulação das procuras especulativas, indispensável à superação da atual crise, é limitada a aquisição de habitações por parte de estrangeiros não comunitários, agravando fiscalmente a compra até 100%, a par do reforço dos mecanismos de fiscalização do arrendamento de curta duração e da assunção plena do Alojamento Local como atividade económica, que passa a estar sujeito à respetiva fiscalidade, incluindo o pagamento de IVA em zonas de maior pressão.

Num terceiro grupo de políticas, estabelecem-se incentivos à reabilitação de fogos devolutos, um sistema de garantias públicas para inquilinos e proprietários em arrendamentos alinhados com valores de referência, em termos de preços acessíveis, a par de apoios à modernização e inovação construtiva (indústria modular), que permita edificar com maior rapidez e a custos mais baixos, entre outras medidas.

Em suma, apostar no reforço do parque público e na regulação de dinâmicas especulativas. Em clara contracorrente com as orientações do governo da AD e das políticas que tem vindo a implementar, fundadas na ideia simplista de que tudo se resume à falta de casas, bastando subsidiar a procura e a oferta e construir como se não houvesse amanhã, na estafada crença de que estimulando o mercado, e deixando-o funcionar, os preços acabarão por baixar. Como se tem visto, não é?

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Depois da subida dos preços, vamos ter… inflação a menos?


Este é o último de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. Os anteriores podem ser lidos aqui, aqui, aqui e aqui.

Nos últimos três anos, habituámo-nos a ver subir os preços de quase todos os produtos a um ritmo que já não se registava há muito. A inflação passou a ocupar uma parte importante dos telejornais e tornou-se incontornável na experiência do dia-a-dia, desde a conta da luz às faturas do supermercado. E o combate à inflação passou a ser uma prioridade das autoridades: enquanto os governos aprovaram medidas como a redução de impostos indiretos (como o IVA) ou o reforço de apoios públicos para mitigar o aumento do custo de vida, os bancos centrais anunciaram que não poupariam esforços para devolver a taxa de inflação ao alvo dos 2%, aumentando de forma significativa as taxas de juro.

Neste contexto, poderia parecer estranho que alguém expressasse preocupação com a possibilidade de termos inflação a menos. No entanto, foi isso que aconteceu na reunião do Banco Central Europeu (BCE) no passado mês de outubro. De acordo com o Financial Times, a discussão no banco central centrou-se no risco de que a inflação se torne demasiado baixa, o que daria mais força à redução das taxas de juro nos próximos meses.

Como foi discutido num texto anterior, a meta do BCE para a taxa de inflação é de 2%. Embora, desde 2022, nos tenhamos habituado a ouvir repetidamente preocupações com os níveis “demasiado altos” de inflação, o inverso também não é desejado. A verdade é que esta não é uma preocupação inédita – e não é preciso recuar assim tanto para o constatar: entre 2009 e 2020, a taxa de inflação situou-se abaixo da meta dos 2% em 112 dos 132 meses (ou seja, 84% dos meses). Inflação a menos, e não a mais, era o principal problema do BCE na década anterior à pandemia.


Este fenómeno é ainda mais relevante quando se tem em conta que, desde 2014, o BCE adotou programas de compra de ativos que levaram a uma injeção de liquidez sem precedentes nos mercados, sem qualquer efeito visível sobre a taxa de inflação, que se manteve quase sempre abaixo do alvo dos 2%.

O que explica esta tendência? Há pelo menos dois fatores: o fraco crescimento económico e a estagnação dos salários. Na década que se seguiu à crise financeira, a Zona Euro passou por um período em que as taxas de crescimento abrandaram, não apenas entre os países mais afetados pela crise (como a Grécia ou Portugal, que passaram por recessões profundas), mas também nas economias mais fortes, como a Alemanha, o que suscitou discussões sobre se a economia europeia estaria a enfrentar um fenómeno de estagnação secular.

A política económica teve um papel nesta tendência. Por um lado, as regras orçamentais impuseram restrições significativas ao investimento público e empurraram os países mais endividados para programas de austeridade que não só agravaram a recessão, como deixaram cicatrizes a longo prazo. Por outro lado, as reformas laborais incluídas nos programas de austeridade enfraqueceram a capacidade dos trabalhadores para negociar aumentos. Mario Draghi, que liderava o BCE na altura, chegou a notar que “as reformas estruturais que reforçaram a negociação salarial ao nível das empresas podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima”. O problema não era tanto a estagnação secular, mas as políticas de estagnação.

Estes fatores não se alteraram substancialmente após a pandemia. Embora a União Europeia tenha criado o Fundo de Recuperação e Resiliência, destinado a promover o investimento em resposta à crise, as regras orçamentais já voltaram a entrar em vigor e voltam a colocar limites consideráveis à despesa e ao investimento público, restringindo a capacidade dos países que tiveram de se endividar para responder à pandemia. Além disso, não há sinais de que o poder negocial dos trabalhadores se tenha alterado de forma significativa. Neste contexto, existe o risco de um regresso à tendência de fraco investimento e crescimento na Zona Euro (o que tem motivado iniciativas como o relatório Draghi, que pretendem responder ao problema através de incentivos públicos ao capital privado).

Por outro lado, como tem sido discutido nos últimos posts, a inflação também está sujeita a outro tipo de riscos que atuam em sentido contrário. As alterações climáticas e o avolumar de tensões geopolíticas indicam que os constrangimentos da oferta de produtos como o petróleo, o gás, os bens alimentares ou algumas matérias-primas críticas se podem tornar mais frequentes. Isso deixa os países vulneráveis a subidas de preços, amplificados pelo poder das grandes empresas, que se podem repercutir no resto das atividades económicas.

Tudo isto obriga a repensar o combate à inflação – e, de uma forma mais geral, a política económica. Há lições a retirar sobre a política macroeconómica da Zona Euro, responsável pela estagnação pré-pandémica, e sobre a resposta a choques inflacionistas como o dos últimos anos. Como argumenta o economista James Meadway, a crise do custo de vida que atravessámos nos últimos três anos faz parte de um desafio maior – uma “crise do custo de adaptação” a um mundo sob “stress ecológico severo”, que requer novas formas de organizar a produção e distribuição dos recursos. A presença e a participação do Estado nos setores estratégicos da economia são indispensáveis.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Amanhã, em Lisboa: «Não nos encostem à parede»


A partir das 15h00, com início na Alameda Afonso Henriques, descida da Almirante Reis até ao Martim Moniz. Contra o racismo e a xenofobia. Em defesa da liberdade e da dignidade.

Tempos


O Financial Times tem por slogan “viver em tempos financeiros”. Nestes tempos, as ligações de economia política são cada vez mais evidentes. Haja poder e plano para que os tempos sejam outros.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Carta Aberta sobre a urbanização em solos rústicos

Álvaro Domingues, Paisagens transgénicas

«A possibilidade de reclassificação de solo rústico em urbano nos termos aprovados subverte um sistema de planeamento progressivamente melhorado, contrariando frontalmente os objectivos fundamentais da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo.
(...) Ao abranger todos os terrenos rústicos (públicos ou privados), sem que a totalidade da habitação a construir seja acessível e acolha algumas actividades não residenciais, o actual Governo abre a porta a uma situação radicalmente distinta.
(...) Havendo casos pontuais de falta de solo urbano, importa identificar onde ocorre e qual a dimensão do problema. Ao ignorar a necessidade de tal verificação, o Governo dispensa-se de justificar a sua proposta e dá azo à crença do Sr. Presidente da República quanto à “urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção de habitação”.
(...) O licenciamento de construções em solo rústico aumentará a nossa dependência alimentar, levará à destruição de florestas e à necessidade de infra-estruturas adicionais, agravando o impacto ambiental. Penalizará, além disso, o já frágil orçamento das famílias e aumentará os custos públicos (estima-se que os custos da dispersão – resultantes de redes de infra-estruturas e equipamentos pouco optimizados – cheguem a ser 63% superiores aos da urbanização compacta).
Em suma, esta alteração não ajudará a resolver a crise da habitação e imporá elevados custos sociais, ambientais e económicos para o Estado e para as populações
».

Excertos da Carta Aberta lançada pela Rede H, «Urbanização em solos rústicos - Um retrocesso de décadas, assente em falsos álibis», que conta já com a assinatura de 600 especialistas ligados à habitação, ao desenvolvimento urbano e territorial, à floresta, agricultura e ambiente, entre outros, e que pode ser lida na íntegra e subscrita aqui.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Coisas simples sem resposta


Respondendo à deputada Joana Mortágua, ontem no parlamento, o ministro da Educação aludiu uma vez mais à necessidade de melhorar os indicadores que apuram o número de alunos sem aulas, reafirmando que «não é a mesma coisa um aluno não ter aulas a uma disciplina ou não ter aulas a duas disciplinas. E não é a mesma coisa um aluno não ter aulas uma semana ou não ter aulas desde o início do período», acrescentando que «aquilo que o governo disse é que tinha como objetivo reduzir em 90% o número de alunos sem aulas desde o início do primeiro período. Que estavam sem aulas a uma disciplina desde o início do primeiro período».

Três notas:

1. Ninguém discordará do ministro Fernando Alexandre sobre a diferença entre um aluno que não tem aulas apenas a uma disciplina e um aluno que não tem aulas a mais do que uma disciplina. Ou sobre a diferença entre um aluno que não teve professor durante uma semana e um aluno sem professor desde o início do ano letivo. Tal como ninguém discordará, por isso mesmo, da importância de enriquecer o quadro de indicadores disponíveis e afinar as formas de recolha da informação para aferir a falta de professores e o seu impacto nas aprendizagens dos alunos.

2. A criação de indicadores mais robustos não deveria, em nenhuma circunstância, servir de justificação para ignorar os que têm sido utilizados, nomeadamente o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo e os alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina no final do primeiro período. Mesmo assumindo as eventuais limitações destas variáveis, é incompreensível que o ministro não tenha ontem divulgado os respetivos valores para o primeiro período. Trata-se de informação simples, facilmente coligível junto das escolas. Cada uma delas sabe, certamente, que turmas/alunos não tinham e não têm aulas a pelo menos uma disciplina, não se percebendo que a tutela não tenha, com o fim das aulas, assegurado a recolha e sistematização destes dados.

3. O ministro Fernando Alexandre que se refere a estes indicadores como «simplistas» - acusando com acinte a deputada Joana Mortágua de parecer «que não percebe mesmo nada do problema» - é o mesmo ministro que fixou, no «Plano +Aulas +Sucesso», o objetivo de reduzir, «em pelo menos 90%», no final do primeiro período, o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo. Sem que, porém, tenha adintado qualquer valor relativo à execução deste objetivo no prazo previsto, escudando-se convenientemente na auditoria aos serviços e legitimando, assim, a suspeita de que apenas não se quer confrontar com o falhanço da meta que traçou.

Qual é o preço a pagar pelo poder das grandes empresas?

Este é o quarto de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. Os anteriores podem ser lidos aquiaqui e aqui.

Desde o início da guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços da energia e de alguns bens alimentares, as cinco maiores petrolíferas cotadas do mundo – BP, Shell, Chevron, ExxonMobil e TotalEnergies – registaram lucros de 281 mil milhões de dólares e os dividendos distribuídos aos acionistas bateram recordes. Ao mesmo tempo, as maiores empresas comercializadoras de produtos agrícolas viram os seus lucros triplicar. Enquanto a maioria das pessoas enfrentava dificuldades para aquecer as casas e pagar a fatura do supermercado, multiplicavam-se os anúncios de lucros recorde por parte das principais empresas. O pior dos tempos para uns era o melhor dos tempos para outros. Como é que se pode explicá-lo?

No artigo “Sellers’ inflation, profits and conflict: why can large firms hike prices in an emergency?”, publicado no ano passado e descrito neste blog pelo Pedro Pratas, Isabella Weber e Evan Wasner apresentam uma caracterização detalhada do papel das empresas no fenómeno inflacionista. Em condições normais, as empresas evitam aumentar preços de forma unilateral devido ao receio de perder clientes para vendedores que concorrem no mesmo mercado. No entanto, há períodos em que este cenário se altera. Quando um choque num período específico gera um aumento dos custos das empresas num determinado setor, se estas quiserem manter as taxas de lucro inalteradas, terão de aumentar os preços que cobram em simultâneo.

Neste contexto, como todas as empresas do mesmo setor aumentam os seus preços, nenhuma corre o risco de perder clientes para a concorrência. Além disso, o tipo de constrangimentos da oferta que se registaram nos últimos anos, amplamente noticiados pelos meios de comunicação e referidos pelas empresas, contribuem para a sensação de “legitimidade” das subidas de preços. Desta forma, estes choques acabam por aumentar de forma temporária o poder das empresas para aumentar os preços sem afastar clientes.

Weber e Wasner resumem o surto inflacionista em três fases:

    • Impulso: constrangimentos da oferta de matérias-primas indispensáveis para muitas atividades económicas dão às (grandes) empresas desses setores um poder temporário para aumentar preços;

    • Propagação e amplificação: as empresas dos restantes setores procuram proteger (ou aumentar) as margens de lucro, aumentando os preços em simultâneo;

    • Conflito: os trabalhadores procuram recuperar, pelo menos em parte, o poder de compra através da negociação dos salários.


A chave para o desfecho deste processo reside no poder relativo de cada parte. Num contexto em que as taxas de sindicalização caíram para mínimos históricos e que a precariedade aumentou após as vagas de desregulação laboral, os trabalhadores têm muito menos poder para tentar proteger o seu poder de compra.

Por outro lado, o poder das maiores empresas tem vindo a aumentar. A crescente concentração dos mercados num pequeno conjunto de grandes empresas facilita a coordenação (mesmo que implícita) dos aumentos de preços em contextos em que há constrangimentos na oferta. Sem surpresa, os lucros extraordinários registam-se sobretudo em setores com características oligopolistas, como o setor da energia, dominado pelas grandes empresas de combustíveis fósseis, ou o setor agro-industrial, onde as cinco maiores empresas controlam 70% do comércio internacional.

Vale a pena regressar ao caso do chocolate, discutido no texto anterior. Se, por um lado, os pequenos agricultores nos países africanos que são responsáveis pela maior parte da oferta mundial de cacau enfrentam condições bastante precárias, o aumento dos preços do chocolate contribuiu sobretudo para engrossar os lucros de multinacionais como a Montelez (que fabrica os Toblerones e as bolachas Oreo), a Ferrero, a Mars ou a Lindt. Depois de já terem acumulado lucros avultados em 2023, estas empresas distribuíram, em média, 97% dos ganhos em dividendos aos acionistas. A subida acentuada dos preços tem impactos muito diferentes ao longo da cadeia de distribuição.

De uma forma geral, no conflito distributivo inerente à inflação, os trabalhadores foram os derrotados. Os dados publicados pelo BCE mostram que os lucros das empresas aumentaram de forma mais acentuada do que os salários na maioria dos setores entre o início e o auge do período inflacionista. Alguns estudos empíricos (aqui, aqui ou aqui) sugerem que as empresas conseguiram proteger as suas margens ou até, em alguns casos, aumentá-las. A presidente do BCE, Christine Lagarde, disse que a recuperação do consumo no pós-pandemia e os constrangimentos da oferta “deram às empresas mais margem para testar os consumidores com preços mais elevados”.


O que isto nos indica é que uma política progressista de combate à inflação também tem de ter em conta o conflito distributivo inerente. Contextos de crise e de escassez de produtos dão às maiores empresas uma oportunidade para obter ganhos avultados. Nesses contextos, justificam-se medidas como a limitação das margens de lucro (como aconteceu em Portugal, no início da pandemia, com a venda de máscaras e álcool-gel depois de os seus preços terem disparado) ou a introdução de impostos sobre lucros extraordinários.

Além de repensar o combate à inflação, os problemas que as economias enfrentam atualmente sugerem que se deve reavaliar a política económica de uma forma mais abrangente. Esse será o tema do último texto desta série.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

A viragem direitista pode ser travada


Uma das muitas imagens chocantes de 2024 tem de ser lembrada em 2025: uma imensa fila de pessoas, com as mãos encostadas à parede, alvo de uma aparatosa operação policial, numa zona de Lisboa, a rua do Benformoso, ao Martim Moniz, onde residem e trabalham muitos imigrantes. Foi uma «operação especial de prevenção criminal», chamou-lhe a Polícia de Segurança Pública (PSP). Está em linha com a política governamental, anunciada pelo primeiro-ministro Luís Montenegro e apoiada pela extrema-direita de André Ventura. A natureza da operação faz lembrar as «guerras preventivas» de neoconservadora má memória, trazendo para a esfera nacional, para o terreno social, a violência estrutural que pulula na esfera internacional. 

«Muitas vezes não é necessário que haja muitos crimes para que as pessoas se sintam inseguras», afiançou o primeiro-ministro em reação à operação. Este tipo de declaração é parte de uma política governamental de perversa promoção do sentimento que se diz querer combater, de resto reconhecidamente desligado da realidade dos números da criminalidade. Inscrita na lógica territorial deste tipo de operação policial, e sobretudo no discurso governamental que a procura instrumentalizar, está, insidiosamente, a associação, falsa, entre criminalidade e imigração. Esta associação é, de resto, explicitamente feita na propaganda da extrema-direita. 

Terrenos de disputa 

Um dos terrenos da disputa político-ideológica, a que ninguém se pode furtar, é agora mais claro: a insegurança e as suas causas e, correlativamente, as formas de gerar segurança. O governo aposta na fragilização da melhor fonte de segurança – a social, e os direitos laborais que a sustêm –, e aceita e aplica as regras europeias cada dia mais austeritárias, causando uma erosão estrutural dos serviços públicos. Ao mesmo tempo, aposta politicamente no reforço do Estado policial. Não há contradição, antes complementaridade, entre estas apostas governamentais, com um evidente conteúdo de classe. Menos Estado social, mais Estado policial: este é um padrão reconhecido há muito na história da economia política, até porque o aumento da discricionariedade patronal exige o aumento da discricionariedade policial. O círculo vicioso da insegurança social, promovido pela política de direita, tem uma resposta já testada por parte das direitas cada vez mais extremadas. Qual é essa resposta? A busca, mediaticamente promovida, de bodes expiatórios entre os setores mais vulneráveis da população, incluindo os imigrantes pobres, procurando proteger politicamente os grandes beneficiários das suas políticas (incluindo fiscais), isto é, os grandes grupos económicos, a classe dominante, e atirando trabalhadores contra trabalhadores, dividindo para reinar.

O resto do artigo pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de janeiro.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Problema de frente


Historicamente, o movimento de resistência contra o fascismo tomou a forma de uma luta de Frente Popular que incluiu liberais, mas que foi liderada pela esquerda, predominantemente por marxistas. Algo semelhante pode ser contemplado em resposta ao neofascismo actual. No entanto, o campo para uma Frente Popular no centro imperial do sistema é mais estreito hoje em dia do que no passado. Seria fatal para a esquerda aderir a uma aliança “antifascista” com a tradição neoliberal do Norte Global, a que apoia o genocídio na Palestina, a guerra por procuração da NATO na Ucrânia e a Nova Guerra Fria de Washington contra a China, ao mesmo tempo que coloca o capitalismo à frente do clima.

Este excerto do editorial de janeiro da norte-americana Monthly Review enfrenta um problema estratégico de frente.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Um retrocesso grave, uma medida errada e contraproducente

As alterações aprovadas pelo governo em matéria de reclassificação de solos, visando converter rústicos em urbanizáveis, não constituem apenas um retrocesso grave nas práticas e instrumentos de planeamento e ordenamento do território. Traduzem, igualmente, uma opção ineficaz e contraproducente face ao objetivo pretendido (aumentar a oferta de terrenos para baixar o preço das casas). E revelam, por último, um desconhecimento da natureza da atual crise de habitação ou, pior ainda, uma irresponsável cedência a interesses alheios à defesa do bem-comum.

O facto de o número de alojamentos e de famílias quase não se ter alterado na última década, mesmo em contextos onde a pressão da procura é maior, deveria bastar para assumir que o cerne do problema não está na falta de casas e de terrenos, mas sim no surgimento de novas procuras de habitação, internas e externas, que encaram os alojamentos como um investimento (para fins turísticos ou rentabilização de poupanças). São as novas procuras, tendencialmente especulativas e potencialmente inesgotáveis, que explicam o essencial da crise. Por mais que se construa, não é líquido que os preços baixem e melhore o acesso das famílias a uma habitação compatível com os seus rendimentos.

Note-se, aliás, que não só o governo apenas exige que 70% da construção em terrenos hoje rústicos que passam a urbanos resulte em fogos a preços ditos «moderados», como o próprio conceito de «moderado» é ilusório, dado que o respetivo valor de referência é o da mediana do preço praticado no mercado (já de si elevada e a aumentar de forma consecutiva) e não o rendimento das famílias. Mais: como assinala António Leitão Gil, a indexação à mediana nacional e do concelho permite até, em alguns casos, que os preços de venda possam subir ainda mais, reforçando o efeito de «arrastamento» que já hoje se verifica, impulsionado pelo maior poder aquisitivo das novas procuras.

Como já acontece com o conceito de «renda acessível», não é a indexação aos preços (com a fixação de um patamar de 20% abaixo do valor do mercado), compensada com benefícios fiscais para o proprietário, que torna os alojamentos verdadeiramente acessíveis para as famílias, uma vez que os seus rendimentos não acompanham a subida das casas. O desalinhamento significativo e crescente entre os preços da habitação e os rendimentos dos agregados - que se regista desde 2013, em virtude do surgimento das novas procuras - na prática esvazia de sentido, para as famílias, a ideia de preços «acessíveis» ou, na formulação do atual governo, a ideia de «preços moderados».


Como se não bastassem os recuos do governo em matéria de regulação (como sucede no caso do Alojamento Local), a par da centralidade atribuída às medidas de subsidiação da procura e da oferta, cujos efeitos são já percetíveis na recente aceleração da subida de preços, o governo avança agora - embalado pela ideia, tão simplista quanto errada, da «falta de casas» - para uma transformação urbana de solos rústicos segundo uma lógica de «bar aberto». Isto é, sem cuidar de aferir das reais necessidades, em cada concelho, de recorrer a solos rústicos para, complementando as necessárias políticas de regulação, responder à crise de habitação.

Em vez de reforçar as políticas de reabilitação do edificado existente nos espaços urbanos, através de incentivos à regeneração e penalizações fiscais no caso de devolutos (em Lisboa são cerca de 26 mil os fogos que estão vagos sem ser para vender ou arrendar), e de promover a construção em solo já classificado como urbanizável, o governo opta por incentivar a edificação em áreas agrícolas e florestais, fomentando lógicas de expansão urbana dispersa e gerando deseconomias onerosas tanto em termos ambientais como de tempos de transporte, qualidade de vida, custo de novas infraestruturas e agravamento da segregação socioespacial.

O que está em causa, com as alterações do governo, é a «mudança estrutural» de que fala o ministro Castro Almeida. Só que se trata de uma mudança estrutural de profundo retrocesso, ao subverter - como oportunamente assinalou Helena Roseta - princípios basilares do regime jurídico em vigor desde 2015, orientado para inverter a tendência, que prevaleceu nas últimas décadas, «de transformação excessiva e arbitrária do solo rural em solo urbano», tendo em vista «contrariar a especulação urbanística, o crescimento excessivo dos perímetros urbanos e o aumento incontrolado dos preços do imobiliário». E com a agravante de o governo não resolver, mas sim piorar, a crise de habitação, privilegiando o rentismo fundiário e a especulação.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Ladrões em números


Com quase 1,5 milhões de visualizações, o Ladrões de Bicicletas atingiu em 2024 o quarto melhor valor desde 2011 (ano em que o blogger começa a registar dados). A presença nas redes é hoje essencial na vida do blogue, com 13 mil seguidores no facebook, cerca de 7,7 mil no twitter e aproximadamente 2,6 mil no instagram. 2024 foi ainda o ano da primeira temporada do vodcast Pedalada, disponível na plataforma MyGIG, com cinco episódios temáticos sobre a crise de habitação, a crise climática, as eleições em França, o ensino da Economia e a questão do crescimento.

Tivemos sempre boas razões para continuar. Mais ainda em tempos tão difíceis e exigentes, como os que estamos a atravessar. Pedalemos pois.

O que é que os preços do café e do chocolate nos dizem sobre a inflação?

Este é o terceiro de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. Os anteriores podem ser lidos aqui e aqui.


A mudança de ano costuma trazer mudanças de preços e 2025 não é exceção. O Expresso noticiou recentemente o caso do café: alguns empresários avisam que os preços deverão subir em janeiro para compensar a subida dos custos com os fornecedores. Vale a pena olhar com detalhe para este fenómeno, por aquilo que nos diz sobre o que podemos esperar da inflação nos próximos anos.

Os preços do grão de café nos mercados internacionais atingiram em novembro do ano passado o valor mais alto em quase 50 anos. A explicação para esta enorme subida dos preços está no clima: o Brasil (um dos principais produtores mundiais de café) foi assolado por um período de seca particularmente severa no verão, ao qual se seguiram chuvas extremas em outubro, afetando as colheitas. Este tipo de fenómenos também afetou a produção no Vietname, outro dos maiores fornecedores do mundo. Num produto com elevada procura como o café, a escassez da oferta levou ao aumento do preço dos grãos e os efeitos vão repercutir-se no preço que pagamos nos cafés ou no supermercado.

Este é apenas o último exemplo de como os fenómenos meteorológicos extremos, que têm sido amplificados pelas alterações climáticas, estão a afetar a produção agrícola e, com isso, os preços que pagamos pelos produtos. O índice produzido pela Bloomberg para os preços agrícolas, que rastreia a evolução do custo dos produtos usados na pecuária e na produção de alimentos, registou em setembro a maior subida desde a invasão russa da Ucrânia, devido ao impacto que as secas e chuvas severas têm tido na produção de produtos como o açúcar, os cereais ou o café.

Esta tendência também já tinha sido registada, no início de 2024, com o cacau. As más colheitas nos dois principais produtores – Gana e Costa do Marfim –, devido à sucessão de chuvas intensas e períodos de seca severa, que agravaram a propagação de doenças e prejudicaram as plantações, levaram a uma escassez histórica de cacau e a uma subida dos preços nos mercados internacionais. A subida acentuou-se devido à dinâmica dos mercados financeiros, onde os especuladores começaram a apostar que os preços subiriam ainda mais.


A variação do preço do cacau afeta os custos de um dos produtos mais consumidos nesta altura do ano – o chocolate. O preço dos chocolates nos supermercados e nas lojas tem aumentado um pouco por todo o mundo. Em Portugal, o diretor da Arcádia afirmou que “a magnitude do aumento do preço do cacau, que em abril esteve cotado ao triplo do preço a que estava em janeiro, obrigou-nos a ajustar os preços e as gramagens de alguns produtos".

O que é certo é que este tipo de choques que provocam disrupções na produção alimentar se têm tornado mais frequentes devido às alterações climáticas. Os preços do azeite aumentaram entre 50% a 70% desde o ano passado, em grande medida devido à seca e às ondas de calor seco que afetaram os países do sul da Europa. No Reino Unido, os níveis de precipitação acima da média alagaram os solos e afetaram a produção de vegetais e frutas. Os preços do sumo de laranja bateram recordes este ano depois dos fenómenos meteorológicos extremos que atingiram as colheitas no Brasil e na Flórida terem reduzido a oferta de laranjas. E a lista podia continuar.

Um estudo publicado este ano por investigadores do Banco Central Europeu concluiu que, em 2022, as temperaturas recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais. E os investigadores avisam que “estes impactos podem ser acentuados nos próximos vinte anos pelas alterações climáticas”. Com o aquecimento projetado para o continente nos próximos anos, poderá haver um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total.


Este fenómeno pode ser descrito como “shockflation” – inflação provocada por choques que afetam a produção (e os preços) em setores específicos e depois se repercutem no resto das atividades económicas que dependem destes. Foi isso que esteve na origem da subida generalizada dos preços nos últimos anos. A disrupção das cadeias de produção, primeiro provocadas pelos períodos de confinamento e depois amplificadas pela guerra na Ucrânia, geraram um aumento expressivo dos preços da energia (petróleo e gás) e de bens alimentares como os cereais, que foram os principais motores da inflação registada. Sobre este fenómeno, vale a pena ler economistas como Joseph Stiglitz, Isabella Weber, James Galbraith ou Servaas Storm.

Com o impacto das alterações climáticas e o acentuar de tensões geopolíticas, é provável que este tipo de choques se torne mais frequente no futuro. Se os preços da energia já eram tipicamente voláteis, há novos focos de vulnerabilidade. Os custos de transporte são um bom exemplo: a redução dos níveis de água no canal do Panamá tem limitado o número de navios autorizados a atravessá-lo, enquanto os ataques a navios no Médio Oriente criaram incerteza sobre a travessia no canal do Suez; em ambos os casos, os constrangimentos ao transporte afetam as cadeias de distribuição globais.

Outro exemplo é o das matérias-primas críticas: face à possibilidade de novas tarifas aduaneiras impostas por Trump, a China anunciou que iria proibir as exportações dos minerais gálio e germânio para os EUA. Estas matérias-primas são necessárias para a produção de inúmeros produtos, desde smartphones a semicondutores ou painéis solares, e a China é o maior produtor mundial (no ano passado, foi responsável por 60% da produção mundial de germânio e 80% da produção de gálio). Restrições mais significativas podem traduzir-se num aumento dos preços dos produtos que dependem destas matérias-primas.

O BCE parece estar ciente destes riscos. No ano passado, a presidente do banco central, Christine Lagarde, reconheceu que estes choques inflacionistas colocam desafios novos e existem respostas diferentes dos bancos centrais para assegurar a estabilidade dos preços. No entanto, o principal problema é que as taxas de juro não são o instrumento adequado para lidar com choques do lado da oferta, pelo que não são os bancos centrais que são a instituição adequada para lhes responder.

Os riscos colocados pelas alterações climáticas e pelas tensões geopolíticas requerem medidas alternativas. Propostas como a criação de stocks de reserva de bens alimentares e matérias-primas, que permitam aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços, voltaram a estar em cima da mesa (nos EUA, já existe uma reserva estratégica de petróleo para este efeito). A isto, juntam-se os investimentos na transição energética: investimentos em áreas como a ferrovia, a renovação de edifícios ou a descarbonização da indústria permitem reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e reduzir a exposição a choques de preços destas matérias-primas.

Para que o combate à inflação seja socialmente justo, também é preciso que se reconheça o conflito distributivo inerente. Os últimos anos tornaram mais claro o enorme poder das maiores empresas para definir aumentos de preços e proteger (ou aumentar) as suas margens de lucro em contextos em que a maioria das pessoas atravessa dificuldades. O próximo texto aborda em mais detalhe este fator.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

2025


Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.
 

Como já é tradição, deixo o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa de 1976, com desejos de um excelente 2025.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Aceleração

Rita Robalo Rosa, no Expresso, refere um «cenário negro» para quem procura casa: os preços «nunca subiram tanto em dois trimestres consecutivos» desde que há dados (2009). E identifica com clareza as razões. À descida das taxas de juro, juntam-se as «medidas do Governo para apoiar os jovens e a entrada de norte-americanos em Portugal». O apoio aos jovens, anunciado pela AD na campanha, entrou «em vigor em agosto e os especialistas alertaram logo o Expresso que iria trazer consigo um aumento da procura e, possivelmente, uma subida dos preços», lembra.


Ainda antes da atualização do Índice de Preços da Habitação (IPH) para o terceiro trimestre de 2024, os dados mais recentes da Avaliação Bancária, igualmente divulgados pelo INE, davam nota do «novo recorde de 1.740 euros por m2», atingido em novembro, que traduz uma variação homóloga de 13,7%. Tanto num como noutro caso (IPH e Avaliação Bancária), verifica-se uma nítida aceleração dos valores e dos preços desde que o governo da AD tomou posse, invertendo o abrandamento que se estava a registar no final de 2023.

Como era de esperar, os retrocessos do governo em matéria de regulação, conjugados com uma política que passou a estar centrada em incentivos à aquisição, num contexto fortemente especulativo, resultam numa aceleração dos preços e agravamento da situação, em termos de capacidade de acesso das famílias a uma habitação. Tal como no caso da Saúde, a questão já não é a de o governo se revelar incapaz de responder ao problemas. É antes a de contribuir ativamente para os agravar.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

O que medimos – e o que nos escapa – quando medimos a inflação?

 

Este é o segundo de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. O primeiro pode ser lido aqui.


A discussão sobre os impactos da inflação na vida das pessoas centra-se na evolução do poder de compra. A forma como a subida dos preços afeta a nossa capacidade de adquirir os produtos habituais é geralmente avaliada com base na evolução dos salários “reais”, isto é, o aumento dos salários descontando o efeito da inflação.

Quando se mede a inflação, o indicador utilizado é o Índice de Preços no Consumidor (IPC). O IPC é construído em cada país com base num cabaz de consumo médio – isto é, um cabaz que procura representar, em média, quanto é que as pessoas gastam do seu orçamento em cada tipo de produto ou serviço. Partindo desse cabaz, as autoridades estatísticas recolhem informação sobre os preços de inúmeras variedades de cada tipo de produto ou serviço, desde o arroz ou os ovos às bicicletas, pacotes de telecomunicações ou tshirts, e registam as subidas e descidas ao longo dos meses. O INE recolhe, todos os meses, informação sobre os preços de dezenas ou centenas de categorias de cerca de 1300 produtos.

O Índice de Preços no Consumidor é uma média que resulta deste processo complexo de cálculo. O que o número nos diz é quanto é que os preços aumentaram em média num mês ou num ano, tendo em conta o peso que, em média, cada produto ou serviço tem na despesa das pessoas. O exercício é útil para nos dar uma ideia aproximada de como evolui o custo de vida médio num determinado período. No entanto, há algumas limitações no cálculo do IPC que o impedem de captar algumas dinâmicas relevantes para avaliar o poder de compra e que, por isso, merecem discussão.

A primeira diz respeito ao próprio conceito de “cabaz médio”: por representar uma média, o indicador não tem em conta que os padrões de consumo são diferentes consoante o grupo social e o escalão de rendimento das pessoas. Isto é importante porque, normalmente, as pessoas com menos rendimentos gastam uma percentagem maior do seu salário em produtos essenciais – energia, alimentos, etc. Ou seja, algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros. Como foi precisamente na energia e nos bens alimentares que se registaram os maiores aumentos de preços nos últimos anos, o impacto pesa mais na carteira de quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nestes.


Nos EUA, uma análise de economistas da Reserva Federal mostra que o grupo dos 20% com menos rendimentos foi o que experienciou uma inflação mais acentuada desde a pandemia. Para este grupo, a subida dos preços terá sido 8,3% maior do que a inflação média.

Os autores desta análise sublinham que mesmo estes valores não têm em conta outras dimensões, como a capacidade de substituição de consumos. Isso leva-nos ao segundo aspeto a ter em conta: mesmo que estejamos a falar do mesmo produto – ex.: leite – os preços não sobem todos ao mesmo ritmo. Há dados que que apontam para a existência de um fenómeno de “cheapflation”, isto é, subidas mais acentuadas dos preços nas marcas ou categorias de produtos que eram mais baratas à partida, face às marcas que eram mais caras.

Um estudo publicado este ano por Alberto Cavallo e Oleksiy Kryvtsov, que analisou dados sobre as vendas de produtos alimentares em 91 cadeias em dez países diferentes, concluiu que “o episódio inflacionista foi acompanhado por alterações dos preços relativos dentro da mesma categoria” e que “os preços das variedades mais baratas cresceram a um ritmo superior ao das variedades mais caras”. Novamente, esta tendência tende a penalizar quem ganha menos: as pessoas mais ricas podem deixar de consumir produtos de marca e trocá-los pela marca branca para mitigarem o impacto da inflação no seu poder de compra, enquanto quem ganha menos, à partida, já tende a optar por produtos mais baratos (cujos preços estão a subir mais).


Ao representar a evolução média dos preços na economia, o IPC não oferece informação sobre a variância dos preços – ou seja, sobre quais os produtos (ou as marcas) que estão a encarecer mais do que os outros. E os dados indicam que a variância costuma ser bastante acentuada: não é incomum haver períodos em que alguns preços aumentam muito e outros mantêm-se ou até diminuem. Como os padrões de consumo variam muito consoante o rendimento das pessoas, a informação sobre a média não é suficiente para uma análise mais fina sobre o poder de compra.

Um terceiro aspeto, particularmente relevante nos últimos anos, é o facto de o IPC não incorporar a variação dos custos associados às taxas de juro. A subida das taxas de juro aumentou de forma significativa os custos de empréstimos à habitação ou dos cartões de crédito. É algo que tem escapado em algumas análises sobre o poder de compra: a subida das taxas de juro representa um aumento bastante significativo dos custos na vida das pessoas.

Este aspeto tem implicações bastante relevantes para a forma como se mede o impacto dos preços da habitação. Embora o IPC inclua uma categoria que corresponde às rendas das casas, esta tem um peso muito pequeno em Portugal. Isto acontece porque a percentagem de pessoas que arrenda casa é reduzida (22,2%) face à de quem tem casa própria (77,8%) e, por isso, não paga renda.

Entre quem tem casa própria, há uma parte das pessoas que se encontra a pagar o empréstimo e tem, todos os meses, uma despesa com a prestação. Só que esta despesa não entra no cabaz usado para calcular o IPC. Assim, quando uma subida das taxas de juro leva a um aumento das prestações dos empréstimos com taxas variáveis (que constituem cerca de 90% dos créditos em Portugal, um dos valores mais altos da Europa), este não é refletido no índice usado para medir a inflação, embora represente a subida de um custo significativo.

Na verdade, a prestação da casa é, para uma parte significativa das pessoas, a principal despesa do mês e um dos principais fatores que definem o seu custo de vida. Desde 2022, a prestação média em Portugal aumentou 60%, tendo passado de cerca de €250 para mais de €400. Neste momento, a prestação média já representa 34,8% do salário médio líquido no país (que ronda os €1150 por mês). Ou seja, um terço do rendimento disponível de quem recebe o salário médio é gasto na prestação da casa. Não é possível avaliar o poder de compra das pessoas sem ter em conta este custo.

O Índice de Preços no Consumidor é um indicador importante e não deve ser desvalorizado. Mas é preciso ter em conta que não capta tudo e que há questões às quais não permite responder. Usar o IPC para avaliar a evolução dos “salários reais” – isto é, o aumento dos salários descontando o efeito da subida dos preços na economia – pode não ser o mais adequado, uma vez que os salários mais baixos podem aumentar mais do que o IPC (o que sugeriria um aumento do poder de compra) mas não tanto como o índice de preços associado às despesas que as pessoas com menos rendimentos efetuam (o que pode constituir uma perda de poder de compra).

Estes aspetos são ainda mais relevantes quando a inflação se concentra em produtos essenciais, como a energia ou a alimentação, e quando a resposta das autoridades passa por uma subida das taxas de juro. Ambos aconteceram nos últimos três anos e ambos têm consequências regressivas, penalizando mais quem ganha menos. Os riscos que se anteveem para a inflação nos próximos anos – o tema do próximo texto – requerem respostas alternativas.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Bom Natal


Jesus era um refugiado palestino. Não me fale sobre abrir espaço para Jesus no coração se você não consegue abrir espaço para os palestinos.


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Cartas abertas

irmaolucia_works, Baltazar e as percepções

«Há um momento simbólico em que o ataque deste Governo ao Estado social e de direito é exposto ao sol em toda a sua crueza, esse momento que uma imagem inscreveu na nossa memória coletiva, o retrato das pessoas perfiladas pelo Estado contra a parede enquanto no Parlamento de Portugal se debatia e aprovava, com os votos da Aliança Democrática e do Chega, a primeira exceção à universalidade do direito fundamental à saúde. A imagem para a qual tantos olhámos, incrédulos (“o que é isto?”), interrogando-nos sobre a sua fidedignidade (“não é verdade, pois não?”), ao mesmo tempo em que na Assembleia da República, por proposta do Governo, se restringia o direito de acesso de imigrantes “sem documentos” ao Serviço Nacional de Saúde».

Da Carta aberta ao primeiro-ministro, a lembrar que Portugal é um Estado social e de direito (Público)

«No quotidiano, estes e estas utentes [imigrantes] encontram já várias barreiras no acesso e manutenção de cuidados de saúde. Receamos, como profissionais de saúde, que a nossa prestação de cuidados à população (...) possa vir a sofrer uma limitação adicional, agravando desigualdades e desfavorecendo uma população que se encontra frequentemente em situação de vulnerabilidade. A exclusão, prevista neste Projeto de Lei, é particularmente prejudicial para quem necessita de cuidados de saúde e vigilância específicos, nomeadamente crianças, adolescentes e pessoas grávidas. Finalmente, alertamos para que se possa vir a colocar em risco a saúde pública de toda a comunidade, uma vez que deixa de estar assegurado o acesso gratuito e regular à vacinação, bem como a adequada abordagem de doenças transmissíveis que representem ameaça para a saúde pública».

Da Carta aberta de profissionais de saúde contra a limitação do acesso ao SNS a imigrantes (ver aqui).

Duas cartas abertas muito importantes (ver na íntegra em «Ler Mais»), a denunciar dois retrocessos da maior gravidade, no mesmo dia, tornando indisfarçáveis as motivações do governo da AD, que assim abdica dos mais elementares princípios da social-democracia e da democracia cristã, para disputar eleitorado com o Chega.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Comissão


Provedora de Justiça Europeia durante mais de uma década, Emilly O’Reilly resumiu bem a Comissão Europeia, em geral, e a de Von der Leyen, em particular, agora que está de saída: “Uma instituição opaca, gerida por poderosos e não eleitos consiglieri”. Já agora, o insuportavelmente europeísta Politico esclarece que, em língua inglesa, consigliere é usado para referir os conselheiros do padrinho, do líder da mafia...

A inflação já voltou ao normal? Depende do que entendemos por isso

 

Este é o primeiro de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos.


Desde que, há cerca de três anos, a taxa de inflação começou a subir para valores que a maioria dos países ocidentais não registava há algum tempo, a prioridade expressa pelos bancos centrais foi a de fazer com que esta regressasse aos 2%. Este é o “alvo” que a maioria dos bancos centrais define e em torno do qual se centra o seu mandato: tomar as medidas necessárias para garantir que o ritmo de aumento dos preços não é superior (ou, nalguns casos, inferior) a 2%, pelo menos durante muito tempo.


Ainda que o mandato dos bancos centrais não seja igual em todo o lado, existe um amplo consenso em relação ao “alvo” que definiram para a inflação. A meta dos 2% é oficial em mais de 60 países por todo o mundo. A pergunta óbvia que surge é: de onde é que veio este número? Ao contrário do que se possa pensar, o alvo não foi definido por nenhuma das maiores potências económicas que hoje o adotam, como os EUA, a Zona Euro, o Reino Unido ou o Japão. O primeiro país a adotar formalmente os 2% de inflação como alvo do banco central foi a Nova Zelândia, em 1989. E a história de como se chegou ao valor ainda é mais surpreendente.

O presidente do banco central, Don Brash, começou as suas funções num contexto em que a economia neo-zelandesa – à semelhança do resto do mundo – enfrentava níveis de inflação elevados após os choques petrolíferos da década de 1970. Com o paradigma da independência dos bancos centrais em relação ao poder político a cimentar-se, Don Brash e David Caygill, então ministro das Finanças, foram mandatados para definir um alvo para a inflação e formalizar a independência do banco central.

Durante este processo, o antecessor de Caygill no ministério das Finanças deu uma entrevista em que disse que a meta do governo era garantir que a inflação se fixasse entre 0% e 1%. Como Brash reconheceu mais tarde, “Foi quase uma frase ao calhas […] O número surgiu do nada para influenciar as expectativas na opinião pública”. E teve impacto no processo de decisão. Brash e Caygill consideraram que seria melhor ter uma margem de manobra ligeiramente maior e acabaram por definir o alvo do banco central nos 2%. A taxa de inflação da Nova Zelândia atingiu esse valor ao fim de dois anos e o alvo começou a ser adotado por outros países, como o Canadá ou o Reino Unido, até se generalizar.

O mais surpreendente é que, como os próprios intervenientes reconhecem, não havia nenhuma justificação teórica para o alvo dos 2%. Não provém de nenhum estudo académico ou de cálculos rigorosos. Foi um número que “caiu do céu” e se tornou a norma adotada pela maioria dos países.

Desde então, tem havido várias tentativas de encontrar evidências para justificar o alvo dos 2%. Uma das ideias que ganhou relevo foi a de que a inflação constitui um entrave ao crescimento. O pressuposto é o de que as economias têm melhor desempenho quando o banco central controla de forma estrita a evolução do nível geral dos preços. Contudo, não é isso que a história das economias sugere. A história mostra que níveis de inflação relativamente mais altos estão associados a períodos de crescimento real mais robusto. A investigação de Robert Pollin e Hannae Bouazza, investigadores na Universidade de Amherst (EUA) que analisaram uma amostra de 130 países ao longo de seis décadas, aponta para que o crescimento das economias seja superior quando a inflação se encontra entre 4% e 5%.


Mesmo olhando apenas para os 37 países classificados pelo Banco Mundial como sendo de “rendimento elevado”, com PIB per capita superior, o resultado é semelhante: as economias tendem a crescer mais (em termos reais) quando a inflação é relativamente superior a 2%. Se fosse este o critério, não faria sentido fixar limites tão baixos para a inflação.

Outro problema desta abordagem é que a resposta que os bancos centrais adotam quando a inflação excede o alvo dos 2% – que passa por aumentar as taxas de juro – é cega em relação às origens da inflação. Esta medida é pensada para responder a pressões inflacionistas que resultam de excesso de procura agregada: se os preços começam a aumentar devido ao facto de haver demasiada procura para a oferta existente (por exemplo, devido a um aumento acentuado da despesa pública ou do poder negocial e dos salários dos trabalhadores), a subida dos juros tem como propósito comprimir o investimento e o emprego e estancar a pressão sobre os preços.

Só que a inflação pode não ser motivada por problemas do lado da procura, mas sim da oferta. E é isso que sugerem os dados disponíveis sobre a inflação dos últimos três anos: sem sinais de excesso de procura, o que motivou a subida inicial dos preços da energia (que depois se alastraram ao resto das atividades económicas que dela dependem) foram os constrangimentos da oferta provocados pelas medidas de confinamento e, sobretudo, pela guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços do petróleo e do gás.

Aumentar as taxas de juro não tem nenhum efeito óbvio sobre os preços da energia. No entanto, o mandato dos bancos centrais – sobre o qual não temos controlo, uma vez que estes foram tornados independentes do poder político – determina que utilizem o único instrumento de que dispõem, i.e. a política monetária. Para quem só tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

É difícil perceber que papel desempenhou a política monetária na descida da taxa de inflação para valores próximos dos 2%. A redução da pressão sobre os preços não aconteceu por via do arrefecimento do mercado de trabalho, visto que, durante a subida e a descida da taxa de inflação, tanto o desemprego como o rácio de ofertas de emprego sobre o desemprego mantiveram-se essencialmente inalterados. O que se verificou foi uma descida dos preços da energia e uma diminuição dos constrangimentos do lado da oferta, o que pode ajudar a explicar porque é que a redução da inflação aconteceu de forma generalizada, mesmo em países onde o banco central não aumentou a taxa de juro diretora, como o Japão. Como escreveu Joseph Stiglitz, “a desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas”.

Também convém ter em conta que os custos da política monetária não são iguais para todos. Um aumento das taxas de juro afeta de forma diferente grupos diferentes: por um lado, tende a prejudicar quem tem dívidas, penalizando sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores e/ou detentores de ativos financeiros, tipicamente nos escalões mais altos; por outro, se comprimir a atividade económica e aumentar o desemprego, que atinge primeiro os trabalhos mais precários e com piores salários, também prejudica quem ganha menos. Ao definir um alvo demasiado baixo para a inflação considerada aceitável, os bancos centrais ficam mandatados para aplicar uma política de subida dos juros que não afeta todos da mesma maneira.

Como o alvo dos 2% é arbitrário, tem sido alvo de controvérsia mesmo entre os economistas convencionais. Figuras como Paul Krugman (nobel da Economia) e Olivier Blanchard (ex-líder do FMI) já defenderam que o limite poderia ser aumentado, para evitar uma política monetária demasiado restritiva que provoque uma recessão. No Financial Times, Martin Sandbu avançou recentemente a possibilidade de o BCE implementar um sistema de taxas de juro diferentes para beneficiar investimentos em prioridades estratégicas da União Europeia (desde a descarbonização à inovação digital). Sandbu considera que o BCE não pode “fingir uma pureza tecnocrática”, embora reconheça que este tipo de políticas implica uma “realocação de recursos [entre setores] que requer prioridades democraticamente definidas”.

Esse é um dos principais problemas do paradigma atual, visto que as decisões dos bancos centrais estão longe de ser “neutras” ou “técnicas”. A política monetária, tal como a política orçamental, é política: depende de premissas discutíveis sobre as origens, os custos e os benefícios da inflação. Esta questão não se vai tornar menos relevante nos próximos anos, sobretudo porque há motivos para crer que a inflação vai continuar a ser influenciada por fatores em relação aos quais a política monetária tem pouca utilidade. Será o tema dos próximos textos.