A carga fiscal em Portugal voltou a aumentar no ano passado. Depois de ter ficado nos 35,6% do PIB em 2023, a carga fiscal registou uma ligeira subida para 35,7% em 2024, de acordo com os
dados do INE. Apesar do ano passado ter sido marcado por uma redução dos impostos sobre o rendimento, com a diminuição do IRS para a maioria dos escalões, isso não impediu a carga fiscal de aumentar, o que ainda se torna mais relevante pelo facto de a redução da carga ter sido uma das principais bandeiras do atual governo. Como é que isso se explica?
A carga fiscal já está presente no debate público há vários anos. O indicador mede a receita total com impostos e contribuições sociais em percentagem do PIB de um país. Isto significa que a carga fiscal pode aumentar mesmo que as taxas de imposto sobre o rendimento diminuam, se o emprego crescer a um ritmo mais elevado do que o PIB num ano. É isso que tem acontecido em Portugal na última década: depois do desemprego ter atingido máximos históricos durante o programa de austeridade, a recuperação do emprego levou a um aumento dos impostos e contribuições pagos mesmo sem alterar (ou até, nalguns casos, reduzindo) as taxas dos diferentes impostos.
Portugal tem uma carga fiscal bastante abaixo da média da União Europeia, de acordo com os dados mais recentes, referentes a 2023. Apesar do ligeiro aumento registado em 2024, é expectável que a carga fiscal da economia portuguesa se mantenha inferior à média europeia e bastante abaixo da que se observa nos países mais desenvolvidos.
O ligeiro aumento da carga fiscal é pouco relevante para avaliar a situação do país. Por si só, diz-nos pouco sobre o nível de tributação. O verdadeiro problema não é a carga fiscal, mas a forma como está distribuída pelos diferentes grupos da sociedade. Há três dimensões em que a distribuição da carga fiscal gera situações de injustiça: o peso dos impostos diretos face aos indiretos, a diferença entre a tributação dos rendimentos do trabalho e do capital e os benefícios fiscais dirigidos a grupos específicos.
Como se distribui a carga fiscal?
A distribuição da carga fiscal entre impostos diretos e indiretos tem consequências distributivas. Os impostos diretos - nomeadamente, o IRS, que incide sobre os salários, e o IRC, que incide sobre os lucros das empresas - são progressivos, o que significa que quem ganha mais paga proporcionalmente mais. Os impostos indiretos, como o IVA, que incide sobre o consumo, não são: as taxas de IVA são aplicadas sobre o valor dos produtos que todos compramos, independentemente do nosso rendimento. Nesse sentido, o IVA constitui um imposto regressivo, que pesa mais na carteira de quem ganha menos.
Portugal é o 4º país da OCDE com maior peso da receita do IVA (9,4% do PIB), segundo os
dados da instituição. Já a receita com o IRS e o IRC é de 10,4% do PIB, abaixo da média da OCDE (12,2%) e dos países europeus mais desenvolvidos, incluindo alguns dos que são normalmente destacados pelos impostos baixos, como a Irlanda e os Países Baixos. Além disso, também ficamos abaixo da média da OCDE no peso dos impostos sobre a propriedade (como o IMI ou o IMT): representam 1,4% do PIB, abaixo dos 1,8% registados em média nos países da OCDE.

Um segundo problema da tributação em Portugal é a diferença na forma como tratamos os salários e os rendimentos de capital (dividendos, juros, rendas, etc.). Os rendimentos de capital são sujeitos a uma taxa efetiva menor do que os do trabalho: enquanto quem recebe um salário ou uma pensão é tributado às taxas progressivas do IRS, quem recebe dividendos pode optar por pagar a taxa fixa de 28% e quem recebe rendas paga entre 5% e 25%, dependendo da duração do arrendamento.
Portugal é o 3º país da OCDE com maior diferença entre a taxa efetiva aplicada aos salários e a que é aplicada aos dividendos. Esta diferença beneficia fundamentalmente os mais ricos: permite-lhes optar por uma taxa liberatória mais baixa do que aquela que pagariam se os rendimentos de capital fossem tributados segundo a mesma progressividade que se aplica aos do trabalho, como é explicado num
estudo do economista Alexandre Mergulhão para a associação Causa Pública.
Além disso, focando no IRS, há um conjunto de benefícios fiscais que introduzem distorções na progressividade. O regime dos residentes não-habituais é o mais conhecido: com esta benefício, os trabalhadores estrangeiros qualificados podiam pagar apenas 20% de IRS e os pensionistas estrangeiros pagavam 0% ou 10%. O regime foi recentemente substituído pelo IFICI (Incentivo Fiscal à Investigação Científica e Inovação), que continua a oferecer uma taxa de IRS de 20% a estrangeiros ou a portugueses que tenham emigrado e regressem para exercer profissões consideradas “qualificadas”, em que se
incluem gestores de empresas, diretores de serviços, médicos ou investigadores universitários, ou seja, profissões em que se pagam salários muito acima da média.
Não é, por isso, surpreendente que estes benefícios tenham um impacto orçamental significativo. Portugal é o segundo país da UE onde a receita fiscal abdicada tem maior peso, de acordo com um
estudo do Observatório Fiscal da União Europeia. E enquanto na maioria dos países os benefícios fiscais em IRS contribuem para diminuir a disparidade de rendimentos, em Portugal acontece o oposto: como se dirigem a quem ganha mais, os benefícios aumentam a desigualdade.
Fonte
dos gráficos: Jornal de Negócios (aqui e aqui)Menos impostos para quem?
No último ano, o IRS foi reduzido por duas vezes. A primeira redução aconteceu no Orçamento do Estado para 2024, aprovado pelo governo anterior, e a segunda foi introduzida pelo atual governo. O que ambas têm em comum é que beneficiam proporcionalmente mais quem ganha mais, como se observa numa análise do Banco de Portugal.
Este resultado não é surpreendente. Quase
metade das pessoas em Portugal não paga IRS por não ter rendimentos suficientes para o fazer, pelo que é expectável que os escalões mais altos sejam os que, de uma forma geral, mais têm a ganhar com reduções do IRS.
O atual governo também aprovou o alargamento do IRS Jovem para este ano. As simulações do Banco de Portugal sobre o impacto que a medida deixam poucas dúvidas: a redução do IRS beneficia bastante mais os jovens que ganham mais. A análise refere que a medida “diminui o poder redistributivo do IRS por via da redução da receita deste imposto” e “esta perda de capacidade redistributiva do imposto é visível no aumento da desigualdade na distribuição de rendimento”. Como 3 em cada 4 jovens em Portugal ganham até €1000 líquidos por mês, a maioria beneficia muito pouco.

O outro lado da moeda das reduções de impostos são a quebra da receita com que se financiam os serviços públicos disponíveis para todos. Só as alterações ao IRS Jovem têm um impacto estimado de mais de €500 milhões para o Estado. É dinheiro que não é usado para investir na rede de creches gratuitas, em melhores transportes ou em habitação acessível - medidas que reduzem o custo de vida e dão um contributo maior para a qualidade de vida da maioria das pessoas do que as reduções do IRS.
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