Nas vésperas de
Agosto, com o país já a banhos, o governo aprovou um
Anteprojeto de Lei da reforma da legislação laboral. O objectivo, como é óbvio, era passar de mansinho. A
pouco e pouco, vamos todos ganhando consciência do que está em causa.
A associação Causa Pública organizou um encontro
sobre o tema, que reuniu vários especialistas em direito do trabalho e
dirigentes máximos das confederações sindicais, para discutir o que António
Monteiro Fernandes (professor universitário e ex-Secretário de Estado do
Trabalho) apelidou de Agenda do Trabalho Indigno. Pediram-me para falar sobre a relação entre regulação do trabalho e economia. Deixo aqui o texto
da minha intervenção. (Os vídeos do encontro estão disponíveis na página de Facebook da
Causa Pública).
***
Bom dia a todas e
a todos.
Agradeço o convite
dos organizadores para participar neste evento
O académico que
há em mim dificilmente aceitaria fazer o discurso de abertura num encontro que
reúne alguns dos melhores especialistas portugueses de uma área que não é a
minha.
É verdade que a
Causa Pública não é uma universidade, mas uma associação cívica que promove o
debate qualificado e a construção de propostas para uma governação
progressista.
Mais do que isso,
os tempos que estamos a viver não se adequam a excessos de cautela. Exigem
empenho de todos e este é o meu contributo.
***
Quem ouve o
governo falar sobre as alterações à lei laboral que estão agora em cima da mesa
fica com a impressão de que a legislação do trabalho está paralisada há
décadas. Mas sabemos que não é assim – pelo contrário.
As leis laborais
em Portugal mudaram várias vezes desde o início do século - e mudaram de forma
substancial. Não estamos perante um sistema imutável que, de repente,
precisaria de ser “modernizado”. Nas últimas duas décadas houve uma sucessão de
“reformas” que, no seu todo, alargaram a margem de manobra das empresas,
reduziram custos e obstáculos ao despedimento, facilitaram a contratação a
termo e fragilizaram a negociação colectiva. O resultado foi uma maior
flexibilidade para as entidades empregadoras e uma menor protecção para quem
vive do seu trabalho. É nesta linha de evolução que devemos situar o
ante-projecto que o Governo traz agora à discussão.
1) O que já
mudou e o que ficou por mudar
Em 2003, no
governo de Durão Barroso, a reforma do Código do Trabalho foi um ponto de
viragem: flexibilizou a mobilidade funcional e geográfica mesmo sem o
consentimento do trabalhador, abriu a porta a horários mais irregulares,
introduziu a “caducidade” de convenções colectivas (acordos estabelecidos
entre representantes dos trabalhadores e dos empregadores) e esvaziou a lei de
várias cláusulas protectoras. Ao mesmo tempo, caiu o princípio do tratamento
mais favorável em diversos domínios (que garantia que um trabalhador nunca
seria prejudicado na presença de regras distintas) e o prazo máximo de
contratos a termo subiu de três para seis anos — um golpe sobretudo para os
mais jovens, que viram assim prolongada a condição de trabalhadores precários.
Em 2011–2012,
durante o governo de Passos Coelho, aprofundou-se a erosão: as indemnizações
por despedimento foram substancialmente reduzidas; a negociação colectiva
perdeu força, primeiro porque empresas “em dificuldades” puderam deixar de
aplicar acordos, segundo porque a extensão das convenções colectivas de
trabalho (que promove a igualdade de condições de trabalho em cada sector)
ficou mais limitada — com impacto particular em sectores dominados por micro e
pequenas empresas.
Após 2015, durante os governos de António Costa, houve correcções pontuais. Em 2019 diminuiu-se a duração máxima dos
contratos a termo para dois anos, e em 2023 a Agenda do Trabalho Digno atacou
sobretudo formas atípicas de emprego. Mas o quadro estrutural manteve-se:
caducidade das convenções, dualização entre trabalhadores permanentes e
precários, e incentivos que ainda empurram demasiada gente para vínculos
instáveis.
Este breve
roteiro é importante por duas razões. Primeiro, mostra que não partimos de um
sistema “rígido”, mas de um mercado de trabalho que já foi tornado muito
flexível em várias frentes. Segundo, ajuda a perceber o sentido de marcha do
novo pacote: longe de ser um ajuste neutro, vem consolidar e estender
tendências que conhecemos desde 2003.
***
2) As
principais alterações agora propostas
Entre a mais de
uma centena de alterações à lei laboral, o anteprojecto do governo inclui as
seguintes.
a)
Despedimentos e reintegração
O anteprojecto
revê procedimentos e compensações, redefine a indemnização por despedimento
ilícito e, sobretudo, amplia a possibilidade de substituir a reintegração por
indemnização a pedido do empregador. Na prática, generaliza-se a regra de que a
empresa pode opor-se à reintegração mesmo quando um tribunal reconhece que o
despedimento foi ilícito.
b) Contratos a
termo, trabalho temporário e outsourcing
Alargam-se as condições de admissibilidade e a duração dos contratos a termo (de dois para três
anos) e alteram-se regras do trabalho temporário. Ao mesmo tempo, eliminam-se
limites ao recurso à subcontratação, inclusive após despedimentos, revogando a
proibição que existia. Ou seja, aumenta-se a latitude para vínculos instáveis,
externalização e cadeias de subcontratação.
c) Organização
do tempo de trabalho
O ante-projecto
reforça o banco de horas individual: o período de trabalho pode aumentar até
duas horas por dia e 50 por semana, com um limite anual de 150 horas. Acresce a
possibilidade de “comprar” dias de férias adicionais sem remuneração —
convertendo um direito em descanso não pago. Dizem-nos que o recurso a estes
mecanismos só será possível com o acordo de cada trabalhador. Mas sabemos bem a
pressão a que os trabalhadores estão sujeitos, ainda mais quando lidam de um para
um com os empregadores.
d) Plataformas
digitais e dependência económica
Há uma intenção de
reforço da “presunção de laboralidade” (ou seja, o reconhecimento da existência
de facto de uma relação de trabalho subordinado) para trabalhadores das
plataformas digitais (Uber, Glovo, etc.) quando os rendimentos que obtêm de uma
mesma empresa é igual ou superior a 80% dos seus rendimentos totais. Esta
alteração é apresentada como um avanço. Acontece que a fasquia dos 80% deixa de
fora milhares de trabalhadores que, apesar de trabalharem em condições típicas
de subordinação, não atingem esse nível de dependência económica. Isto permite às
plataformas organizarem-se para fragmentar a relação laboral, distribuindo
tarefas por diferentes empresas subcontratadas ou multiplicando “contratos de
prestação de serviços”, de forma a que nenhum trabalhador chegue ao limiar
previsto.
e) Direito à
greve
Simplifica-se e
torna-se mais vinculativo o regime de serviços, com efeitos imediatos das
decisões e menos fases de arbitragem. O efeito líquido provável é um reforço da
posição do empregador na gestão do tempo de trabalho e na contenção de
conflitos colectivos.
f) Negociação
colectiva e caducidade
Propõe-se limitar
a sobrevigência das convenções a 12 meses após a denúncia, com uma única
prorrogação adicional de até 12 meses por acordo. Findo o prazo, a convenção
caduca e perde os seus efeitos. Numa economia com baixas taxas de
sindicalização e grande peso de micro e pequenas empresas, este desenho tende a
enfraquecer a capacidade negocial dos trabalhadores, a pressionar salários e a
reduzir a cobertura de direitos convencionais.
Em suma: facilitar despedimentos; alargar vínculos
temporários e outsourcing; estender o banco de horas individual e dias de
férias sem remuneração; apertar a caducidade da contratação colectiva;
densificar instrumentos de direcção/controlo e de serviços mínimos. Trata-se de
um pacote vasto e transversal, com impactos cumulativos na vida de quem
trabalha.
***
Dizem-nos que
estas alterações são essenciais para tornar a economia mais competitiva. Mas,
na verdade, a reforma que o governo está a querer impor é:
- Injustificada
-
Injusta e
-
Indesejável
3) É
injustificada porque não resolve nenhum problema realmente existente
O argumento
repetido é sempre o mesmo: leis laborais rígidas [é o que lhes chamam, em vez
de mercados de trabalho regulados] prejudicam a competitividade e o crescimento
económico. Mas os dados disponíveis e a investigação académica não sustentam
esta tese.
Primeiro, os
inquéritos com executivos e investidores não colocam a legislação laboral entre
os grandes entraves à competitividade em Portugal. Num relatório recente de uma
conhecida consultora internacional, baseada em inquéritos aos investidores
estrangeiros a actuar no país, concluía-se que “a facilidade de contratação e
despedimento” era, na verdade, apontada como “vantagem comparada” de Portugal,
sugerindo agilidade e adaptabilidade. Isto não bate certo com a narrativa de um
mercado de trabalho “ingovernável” pela via legal.
Segundo, a
generalidade da investigação académica é clara: reduzir a protecção do emprego
não cria, em média, mais postos de trabalho, nem reduz o desemprego [ver lista
de referências no final deste post]. O desemprego move-se com os ciclos
económicos, com choques de procura e com políticas fiscal e monetária — não com
alterações às barreiras legais ao despedimento.
Terceiro, o
indicador da OCDE tantas vezes invocado para demonstrar rigidez do
mercado de trabalho em Portugal — "Requisitos processuais para despedimentos individuais de trabalhadores efetivos" — é um instrumento enganador. Desde logo, o despedimento individual representa apenas uma parte
das regras do mercado de trabalho – e no que toca a várias outras dimensões,
incluindo o despedimento colectivo, as regras em vigor em Portugal não se afastam da generalidade dos países da UE. Além disso, aquele indicador olha
sobretudo para prazos de aviso e indemnizações, ignorando a complexidade
processual que, nalguns países, é justamente o que torna certos despedimentos
mais onerosos. A comparação Portugal–Nova Zelândia ilustra isto: Portugal
aparece classificado como tendo um mercado de trabalho “muito protegido” e a
Nova Zelândia com “pouco”; mas estudos de caso mostram despedimentos
neozelandeses altamente onerosos devido a requisitos processuais invisíveis
para o índice.
Em resumo, o Governo propõe resolver um problema mal
diagnosticado; não há evidência de que a legislação portuguesa seja um travão
central à competitividade, nem de que desregulá-la mais gere emprego.
Alterações assim são, por isso, injustificadas.
Além de
injustificadas são injustas.
4) São
injustas, porque desequilibram ainda mais uma relação desigual
O contrato de
trabalho não é um acordo entre partes de igual poder. O trabalhador depende do
salário para viver; a empresa detém o capital, a organização e a decisão. A lei
laboral existe para equilibrar esta assimetria — para garantir dignidade,
segurança e previsibilidade a quem vende a sua força de trabalho. É por isso
que a tradição do direito do trabalho se distingue de uma visão puramente
comercial das relações laborais.
Quando se permite
a uma empresa opor-se à reintegração mesmo em despedimentos reconhecidos como
ilícitos, está-se a fragilizar a segurança no emprego e a transformar uma
garantia constitucional num custo contabilizável.
Quando se alarga
o banco de horas individual e se aceitam férias “compradas” sem remuneração,
está-se a transferir risco e custo de flexibilidade para o trabalhador e sua
família.
Quando se
flexibiliza o outsourcing e se abrem portas a sucessivos vínculos instáveis,
constrói-se uma economia de trabalhadores permanentemente “em trânsito”, com
pouca voz e pouca previsibilidade.
Nenhuma destas
medidas é neutra: todas deslocam a balança para o lado de quem já tem mais
poder.
O risco social é
claro: mais precariedade, mais insegurança, mais dificuldade em planear uma casa,
ter filhos, continuar a estudar. E, como mostraram reformas anteriores, este
risco não é abstracto — cai com particular força sobre os mais jovens e sobre
quem tem menor poder negocial.
As medidas
propostas pelo governo são por isso injustas.
Mas para além de
injustificadas e injustas, são também indesejáveis.
5) São
indesejáveis para o modelo de desenvolvimento de que Portugal precisa
Estas propostas
são más para a produtividade, para a inovação e para o futuro do país.
a)
Produtividade e inovação
Quando despedir é
fácil e barato, muitas empresas preferem estratégias baseadas em trabalho descartável em vez de investir em tecnologia, organização e qualificação.
Além disso, a
elevada rotação e a fragilidade dos vínculos desincentivam a acumulação de
conhecimento específico e a aprendizagem contínua nas equipas.
No conjunto da
economia, isto empurra a estrutura produtiva para actividades de baixo valor
acrescentado.
b) Procura
interna e crescimento
Empregos
precários e mal pagos reduzem o consumo das famílias e a estabilidade da
procura. Menos procura significa menos investimento e menos crescimento,
sobretudo numa economia como a nossa, muito dependente do mercado interno. Ou
seja, a “flexibilidade” não se traduz em dinamismo agregado — pelo contrário,
trava-o.
c) Finanças
públicas, Estado social e combate às crises
Vínculos
precários e intermitentes resultam em contribuições mais baixas e irregulares
para a Segurança Social e em menor receita fiscal. A sustentabilidade das
pensões e dos serviços públicos ressentir-se-á de uma economia construída sobre
contratos frágeis.
A maior
facilidade de despedimentos, ainda mais na ausência de uma protecção sólida contra
o desemprego, tem um problema acrescido: aprofunda as recessões, ao acelerar a
contração do emprego e da procura interna.
d) Coesão
social e demografia
Mercados de
trabalho muito flexíveis aumentam desigualdades, alimentam clivagens entre
trabalhadores e corroem expectativas de mobilidade social, com impactos
intergeracionais.
A insegurança
reduz natalidade e alimenta descontentamento político. Isto não é um detalhe:
sociedades com base laboral instável tendem a ser mais vulneráveis a choques e
a radicalizações.
Em suma, ao fragilizar os trabalhadores, fragiliza-se
a economia e a democracia.
7) É isto que
nos dizem inúmeros estudos científicos [ver lista de referência no final]:
- Reduzir protecção no emprego não se traduz, em média, em mais emprego ou menos
desemprego. O que conta são os ciclos económicos e as políticas monetárias e
orçamentais.
-
Rotatividade elevada e vínculos frágeis desincentivam investimento em formação
e tecnologia; encurrala-se o tecido produtivo em actividades de baixo valor
acrescentado.
- A liberalização reforça clivagens entre “protegidos” e “descartáveis”,
ampliando desigualdades salariais e insegurança económica.
-
Precariedade persistente reduz procura interna e contribuições, aumenta a
volatilidade nas crises e corrói bases fiscais e contributivas.
8) Conclusão
Persistir em mexer
sempre do mesmo lado é, por isso, injustificado do ponto de vista da
competitividade, injusto do ponto de vista social e indesejável para o nosso
modelo de desenvolvimento.
Não se trata de
“modernizar” — trata-se de insistir num padrão que sinaliza ao investimento que
Portugal está disponível para competir pelo lado do custo do trabalho, não pelo
lado da qualificação, da organização e da inovação.
A competitividade
da economia portuguesa não pode traduzir-se em imprevisibilidade para quem
trabalha, nem em poder unilateral para quem emprega.
Ao aprovar estas
medidas, não estaríamos a resolver um problema de competitividade — porque ele
não está nas leis laborais. Estaríamos, sim, a cristalizar um modelo de
desenvolvimento assente em trabalho descartável, menor investimento em inovação
e maior desigualdade. O preço pagar-se-á em produtividade, em coesão social e,
a prazo, em democracia.
Portugal precisa
de regras que protejam a dignidade de quem trabalha e que puxem o nosso tecido
produtivo para actividades de maior valor: menos rotatividade, mais
qualificação, mais contratos estáveis, melhor negociação colectiva. É isso que
atrai investimento que fica, com trabalho digno e salários justos.
É isso que faz um
país moderno — não a facilidade de se desfazer de quem trabalha, mas a
capacidade de fazer melhor com quem trabalha.
É por isso que o
ataque do governo aos direitos dos trabalhadores exige a nossa acção: através
do debate e da proposta, e também do protesto e de todas as formas de luta.
Muito obrigado.
***
Referências
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