sexta-feira, 4 de março de 2022

Da responsabilidade dos EUA na crise na Ucrânia

Penso que todos os problemas neste caso começaram realmente em Abril de 2008, na Cimeira da NATO em Bucareste, onde foi emitida uma declaração que dizia que a Ucrânia e a Geórgia passariam a fazer parte da NATO. Os russos deixaram inequivocamente claro na altura que encaravam isto como uma ameaça existencial e traçaram uma linha na areia. No entanto, o que aconteceu com o passar do tempo é que avançámos no sentido de incluir a Ucrânia no Ocidente para fazer da Ucrânia um baluarte ocidental na fronteira da Rússia. Claro que isto inclui mais do que apenas a expansão da NATO. A expansão da NATO é o coração da estratégia, mas inclui também a expansão da UE, e inclui transformar a Ucrânia numa democracia liberal pró-americana, e, de uma perspetiva russa, esta é uma ameaça existencial. (...) Quando se é um país como a Ucrânia e se vive ao lado de uma grande potência como a Rússia, é preciso prestar muita atenção ao que os russos pensam, porque se pegarmos num pau e lho espetarmos nos olhos, eles vão retaliar. Os Estados do hemisfério ocidental compreendem isto muito bem no que diz respeito aos Estados Unidos.

Excerto da entrevista “Porque é que John Mearsheimer culpa os EUA pela crise na Ucrânia?” de Isaac Chotiner a John Mearsheimer.

A Rússia quer guerra: vejam como colocam o seu país tão próximo das nossas bases militares.

Para o sucessor de Trump, Biden, como para Obama-Clinton, a Rússia ofereceu-se, domestica e internacionalmente, como um conveniente arqui-inimigo: pequeno economicamente, mas fácil de retratar como grande por causa das suas armas nucleares. Após o desastre mediático da retirada de Biden do Afeganistão, mostrar força em relação à Rússia parecia uma forma segura de mostrar o músculo americano, forçando os republicanos, durante o período que antecedeu as críticas eleições intercalares, a unirem-se atrás de Biden como o líder de um "Mundo Livre" ressuscitado. Washington voltou-se como era de se esperar para a diplomacia do megafone e recusou categoricamente qualquer negociação sobre a expansão da Nato. Para Putin, tendo ido tão longe como tinha ido, a escolha foi fortemente colocada entre a escalada e a capitulação. Foi nesta altura que o método se transformou em loucura e que começou a assassina e estrategicamente desastrosa invasão russa de terras da Ucrânia. (...)
Assim, a unidade ocidental estava de volta, saudada pelos aplausos jubilosos dos comentadores locais, gratos pelo regresso das certezas transatlânticas da Guerra Fria. A perspetiva de entrar em batalha em aliança com o aparelho militar mais formidável da história mundial apagou instantaneamente as memórias de alguns meses antes, quando os EUA abandonaram com poucos avisos, não só o Afeganistão, mas também as tropas auxiliares fornecidas pelos seus aliados da NATO em apoio àquela, outrora favorecida, atividade americana, "construção de nação". Não importa também a apropriação por Biden do grosso das reservas do banco central afegão, no valor de 7,5 mil milhões de dólares, para distribuição às pessoas afetadas pelo 11 de Setembro (e seus advogados), enquanto o Afeganistão sofre uma fome a nível nacional. Também se esquecem os destroços deixados pelas recentes intervenções americanas na Somália, Iraque, Síria, Líbia - a destruição total, seguida de um abandono apressado, de países e regiões inteiras.
(...) Neste contexto, o orçamento especial de 100 mil milhões de euros, anunciado alguns dias após a guerra pelo governo Scholz e dedicado ao cumprimento da promessa, que remonta a 2001, de gastar 2% do PIB da Alemanha em armas, parece um sacrifício ritual para apaziguar um Deus zangado que se teme que possa abandonar os seus crentes menos verdadeiros. Além disso, todo o exército alemão está sob o comando da NATO, ou seja, do Pentágono, pelo que as novas armas irão aumentar o poder de fogo da NATO, e não da Alemanha. Tecnologicamente, serão concebidas para serem utilizadas em todo o mundo, em "missões" como o Afeganistão - ou, muito provavelmente, nos arredores da China, para ajudar os EUA no seu confronto emergente no Mar do Sul da China. Não houve qualquer debate no Bundestag sobre exactamente que novas "capacidades" seriam necessárias, ou para que serão utilizadas.

Excertos do texto, “Nevoeiro de guerra”, de Wolfgang Streeck.

Ao contrário do que parece ser o credo generalizado da imprensa indígena, a invasão da Ucrânia pode mesmo ser condenada sem legitimar o imperialismo dos EUA e da UE.

Entretanto, a União Europeia, fornecendo armas à Ucrânia e impedindo o banco central da Rússia, num ato sem precedentes históricos, de aceder às suas reservas confiadas a bancos europeus, tornou-se parte do conflito e envolveu todos os Estados membros na guerra.

Portugal está em guerra com a Rússia, um país armado com um arsenal nuclear.

Governo e Presidente da República foram consultados? O país foi ouvido? Ou já não somos um país? A última vez que passei os olhos pela Constituição da República Portuguesa a declaração de guerra a um país estrangeiro não era atributo de Josep Borrell.

E a imprensa? Porque não faz estas perguntas? Está demasiado ocupada a cercar o PC e o BE por, cada um à sua maneira (o outro, aqui), se recusar a engrossar a claque de apoio à Nato e à sua sucursal europeia? Tempos perigosos.

6 comentários:

Jose disse...

«incluir a Ucrânia no Ocidente para fazer da Ucrânia um baluarte ocidental na fronteira da Rússia»

Tudo que vem sendo construído em justificação do Putin são deduções e inferências que partem desta premissa.

As perguntas a fazer são:
- o que é um baluarte ocidental?
- qual a ameaça de um baluarte ocidental constitui para a Rússia?

Se Putin tem alguma justificação há que definir o mal 'ocidental' e o quanto ele ameaça o bem da Rússia de Putin.
E ainda assim fica por saber-se se os ucranianos têm direito a algo dizer sobre o assunto.

L. Rodrigues disse...

- o que é um baluarte ocidental?
Neste caso um país munido de armas e pactos de defesa mútuo. Defesa contra quem? Ver resposta seguinte.

- qual a ameaça de um baluarte ocidental constitui para a Rússia?
Qual era a ameaça que os mísseis em Cuba constituíam para os EUA?
Qual seria a visão dos EUA se, por uma viragem política inesperada, a China estacionasse meia dúzia de divisões no México? Sentir-se-iam ameaçados? Porquê?

Paulo Cunha disse...

Off topic mas podem me recomendar revistas de economia e política mais neste aspecto ( gosto da The economist, mas exagera muito)

Anónimo disse...

Tempos fáceis para o capitalismo ou ajuste de contas entre a Rússia e o neonazismo na Ucrânia?

Os tempos parecem mais difíceis para os neonazis, como Yehven Karas, do bando C14, ou juventude nazi do partido Svoboda de Oleh Tyahnybok e Andriy Parubiy.

Os EUA e a NATO armaram os bandos nazis de Azov para combater a Rússia e esmagar os povos da região do Donbass.

Porque não ouvir a conferência, onde o próprio Yehven Karas explica como o seu bando se diverte quando mata pessoas?

Neste conflito, deveremos condenar a Rússia por combater o nazismo e o neonazismo na Ucrânia?

Mozgovoy disse...

O BE recusa-se a engrossar a claque de apoio à NATO? Como???!!! Perdão???!!!
Se a memória me não falha, foi a NATO que bombardeou até à Idade da Pedra a Líbia e o que não faltou foram as hossanas cantadas aos "freedom fighters" líbios no defunto (eternas saudades!) "Arrastão".
Quanto ao PCP, na minha modesta opinião, ele pecou por defeito (à esquerda) e não pelo excesso de que o acusam (na direita). E explico-me: gostaria muitíssimo que o partido do saudoso Álvaro Barreirinhas Cunhal entendesse que a actual Federação Russa é a herdeira da defunta URSS, a qual perdeu 27 milhões dos seus cidadãos a combater e a, por fim, derrotar o nazismo; gostaria muitíssimo que o PCP entendesse - deixando de lado o seu mais do que pronunciado e (lamento dizê-lo) muito pouco inteligente estrabismo político - que o Senhor Vladimir Vladimirovitch Putin teve um pai que foi gravemente ferido na Grande Guerra Patriótica e teve um irmão mais velho (o qual nunca chegou a conhecer) que morreu de fome no cerco de Leninegrado. Se tais coisas entendesse, talvez o colectivo que é o PCP se deixasse de dar uma no cravo e outra na ferradura e se pusesse inequivocamente ao lado de quem se propõe desnazificar aquele país assolado pelo Batalhão Azov, pelo Batalhão Tornado e pelo Pryvi Sektor e que tem como presidente (não o será por muito tempo, disso estou certo) um literal palhaço que anunciou a intenção de pôr na mão dessa gente(?) armas nucleares.
É que nisto de nazis - perdoem-me a crueza - ou estamos do lado de quem os mata ou estamos do lado de quem vai fazer com que eles nos matem. O pacifismo, em casos como o da Ucrânia de Volodymir Zelensky, é lindo, mas é também mortífero. Se é para morrer, que morram os nazis. Que ao exército russo lhe não doa o dedo do gatilho até a tarefa estar acabada é o meu mais sincero desejo. Creio que os ucranianos que querem paz e desenvolvimento serão os primeiros a agradecer-lhes o serviço.


PS - Embora torça ferverosamente para que os netinhos de Stepan Bandera repousem eternamente e em grande número nas planícies ucranianas, estou certo que alguns escaparão à sanha das forças russas e da milícia do Donbass, pelo que temo que, por estas bandas, ainda iremos recordar os grunhos do CHEGA, os destituídos mentais do Vox e a loiríssima Senhora Le Pen como gente vagamente arruaceira.

sérgio vitorino disse...

Não é só a questão do alargamento da OTAN. Os EUA (Trump, em particular, que é amigo de Putin), Israel e países centrais da UE passaram os últimos oito anos a armar intensivamente a Ucrânia, alguns deles (os europeus) enquanto intensificavam a exportação de armamento para... a Rússia. Já agora, o filho de Joe Biden é um negociante de armas com interesse no conflito ucraniano, a única coisa em que Trump tinha razão.