sexta-feira, 9 de maio de 2025

Ainda, e sempre, Francisco


Para quem viveu a infância e a adolescência num contexto enraizadamente católico e conservador, à procura de um nexo entre a fraternidade simples da mensagem cristã e a doutrina católica que tantas vezes a renegava, a escolha de Francisco para liderar a Igreja, décadas depois, e mesmo que tardia para a fé, assumiu um significado absolutamente singular e avassalador.

Em artigo publicado a 21 de abril, dia da morte do Papa Francisco, João Costa identificou, de forma certeira, a distinção relevante: «Todos os Papas, ao longo da história, foram católicos. Nem todos os Papas foram cristãos. O Papa Francisco foi-o, porque soube sempre posicionar-se do lado do amor, da recusa da segregação e do ódio».

Reside aqui, de facto, a separação de águas que permite resolver o desencaixe entre a mensagem de Cristo e o catolicismo mais atreito ao dogma, à ideia de pecado e de culpa, ao julgamento do outro, juízo final e à fé que não se discute, que se impunham em meios onde as diferenças de classe, os estatutos sociais e as hierarquias eram inquestionados, fomentando uma certa cultura de subserviência e de ordem natural das coisas.

A rejeição veemente de tudo o que pudesse, no campo político, ser associado a comunismo ou socialismo, em muito alimentada pela narrativa das aparições de Fátima, com a conversão da Rússia, era talvez a expressão mais forte desta dissonância entre Cristo e Igreja. Como se a máxima «ama o próximo como a ti mesmo» tivesse mais que ver com o individualismo e o exercício discricionário da caridade que com o sentido de comunidade e de verdadeira igualdade.

É por isso que Francisco não foi, não é, apenas mais um Papa. Francisco foi o pontífice que, até hoje, melhor soube interpretar e encarnar, pela palavra e pelos gestos, a mensagem cristã, afirmando-a como prática concreta para este mundo e não o outro. Com a coragem de denunciar «a economia que mata» e a riqueza obscena, a indiferença pelas desigualdades e todas as formas de opressão e exclusão, na defesa da dignidade humana e da Terra como «Casa Comum». Com um espantoso sentido de humildade, alegria e simplicidade.

Fecharam-se há dois dias, para eleger o novo Papa, as portas da Capela Sistina. O escolhido, Robert Francis Prevost, surgiu ontem na varanda do Vaticano com um ar afável, conhecedor e despretensioso. Um bom sinal, a que se soma o da palavra que mais repetiu: Paz. E mais outro: a escolha de Leão XIV para nome pontifício, evocando as origens da doutrina social da Igreja, na senda de Francisco. Confiemos pois que dará continuidade à mudança iniciada por Jorge Bergoglio, num mundo que precisa de pensamento ciente e vozes determinadas, que não pactuam nem transigem.

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