segunda-feira, 3 de julho de 2017

Reformatação na continuidade


A Antena 1 forneceu hoje dois exemplos de como evoluiu o discurso de oposição de direita.

Os casos do incêndio de Pedrógão e o assalto aos armazéns militares de Tancos são o pretexto para a declaração de que se acabou o estado de graça da esquerda, porque mostraram que as funções básicas do Estado - protecção dos cidadãos e segurança - não estão a ser asseguradas.

Rui Ramos, na sua crónica semanal, defendeu que a solução não está no optimismo  (leia-se de António Costa), nem no pessimismo (leio eu, de Passos Coelho). A virtude estaria na lucidez, que funcionaria como uma nova lógica de olhar para os problemas. Já Helena Garrido, que foi uma entusiasta da aplicação do Memorando da Troika e uma opositora declarada nas crónicas da Antena1 da política seguida pelas forças de esquerda, sustentou salamonicamente que, se uns dizem que é melhor menos Estado (a direita) e outros mais Estado (a esquerda), a solução está em "melhor Estado".

Se passarmos ao largo do vácuo senso comum de ambas as declarações - ninguém defende uma solução política que não seja lúcida, nem que haja em Portugal políticas que redundem em "pior Estado" - aquilo que está a ser dito é "eu sou contra porque sou lúcido" e "eu defendo um menor Estado que seja melhor Estado". Ou seja, nada de novo à direita. Sobretudo quando se branqueia - por omissão - os efeitos da política económica de direita, na delapidação dos recursos públicos e na defesa de que as funções públicas são melhor executadas por agentes privados.

Geralmente, quem defende que não é de esquerda ou de direita - porque é lúcido -, é porque tem uma lógica de pensamento que se encaixa na direita. Em época de maré baixa, pode apresentar-se com aquela base eminentemente anos 30: "Eu não sou político, sou técnico" (ou seja, outra forma de ser lúcido).

A direita não gosta de ser de direita. Porque acha sinceramente que o poder (à direita) é O PODER. É o "arco-da-governação". Esse PODER é algo que tem séculos e que a direita não gosta de disputar, de ser relativizada a esse ponto, porque se vê uma emanação da natureza. E o Estado é o Poder. Se a direita suscita como essencial a questão do Estado é porque está contra aquilo que a intervenção do Estado pode fazer nas questões essenciais na sociedade - e que a direita não resolveu porque não está na sua essência resolver: a igualdade na repartição de rendimento.

O que parece, pois, estar a acontecer é uma reformatação do discurso das franjas da direita, para que continue a ser direita sem o parecer.

Apenas uma nota final: Curiosamente, nenhum dos dois intervenientes considerou o apagão dos dados das transferências para os offshores como um sinal da quebra das funções do Estado. É assim, a visão lúcida da direita.

19 comentários:

Daniel Carrapa disse...

Vamos assistir a todas essas encenações mas acredito que a maioria dos portugueses sabe que as debilidades estruturais que estão na base das falhas a que assistimos, em Pedrógão ou agora no caso de Tancos, já vêm de longe e são o acumulado de muitos anos de perda de capacidades do Estado.

Tem alguma graça que há alguns anos, quando um mui venerável think-tank da direita clamava pela redução de 200.000 trabalhadores do Estado assim sem tirar nem pôr, nem um engasgo se ouviu de todos estes comentadores que agora se apresentam a exigir ao Estado que esteja à altura das suas responsabilidades.

Aquilo a que estamos a assitir é ao preço da austeridade. Seja na eliminação dos guardas florestais, na falta escandalosa de sapadores, ou na falta "colossal" de pessoal das forças armadas.

Sobre este último ponto, Tancos é um caso notável (e inacreditável) mas que é apenas o mais visível de uma fragilidade que vai por todo o país. É bom que o Governo actue e rapidamente veja o que se passa em todos os quartéis deste país, Exército e GNR, onde a falta crónica de pessoal faz com que não haja uma segurança minimamente aceitável. As vulnerabilidades estão aí - e não começaram há ano e meio com este Governo. Ainda que a direita, política e jornalística, nos vá tentar convencer que sim - porque não tem escrúpulos nem vergonha.

Anónimo disse...

Excelente comentário

Alice disse...

Esta gente defende um estado reduzido, mas é reduzido para as fugas de offshores e similares, pois esse mesmo estado torna-se bem musculado e forte para aqueles que aparecem a mendigar um rendimento mínimo de 200 euros por mês.

Quanto às funções e serviços assegurados por privados, assumindo que as empresas existem para dar lucro, são uma chatice, pois em cima da conta que pagamos estão os devidos lucros (por norma, garantidos), pagos por todos nós, mas cujo destino é opaco e imune a qualquer controlo democrático.

O Governo não precisa de ver só o que se passa nos quartéis, é só ver em todo o lado...pois o país vai apodrecendo e é (ainda mais) delapidado. É ver a degradação da infra-estrutura e a falta abissal de pessoal.

É o preço a pagar pela esmola europeia que salvou bancos falidos e corruptos, uma autêntica abjecção moral que foi detonada em cima da população.

Geringonço disse...

“A direita não gosta de ser de direita. ”

A direita não gosta de ser direita porque o racismo, misoginia, homofobia são cada vez menos tolerados.
A direita não gosta de ser direita porque sabe que lá no seu subconsciente está em vias de extinção.

Estou convencido que é esta razão da violência actual que estamos a assistir no mundo, desde a violência económica e financeira do “não há alternativa”, desde as guerras intermináveis, tudo isto são sintomas de um certa mentalidade que não quer deixar de o ser...

Anónimo disse...

Excelente post a meter a direita no sítio que é o seu, onde estão os seus interesses, «na delapidação dos recursos públicos e na defesa de que as funções públicas são melhor executadas por agentes privados» ou «o apagão dos dados das transferências para os offshores», ou o saque rentista e a continuação das transferências para os bordeis tributários, como direitos da direita.

Lamentavelmente, por vezes, vemos alguma "esquerda" disposta a disputar este terreno à direita.

E lúcido, é ver que «quem defende que não é de esquerda ou de direita» ou "já não diferença entre esquerda e direita", ou ainda "isto já não vai lá com esquerda ou direitta", é, e como escreve JRA, «porque tem uma lógica de pensamento que se encaixa na direita.

Anónimo disse...

Um lúcido e frontal artigo. Parabéns.
São uns sonsos... A Direita, que vem agora clamar e rasgar as vestes pedindo demissões atrás de demissões, foi aquela mesma que, estando no Governo, viu "voar" dos armazéns da PSP umas dezenas de Glocks de 9 mm, coisa, diga-se, perfeitamente normal... E nunca mais alguém as viu... E nem quero falar de um celebérrimo negócio feito há uns anos que colocou nas mãos de um pato-bravo sucateiro centenas de UZI novilhas em folha alienadas pelo Estado como... sucata. Onde foram elas parar? Mistério...
Quanto ao SIRESP, o que eu gostava que uma investigação à compra do sistema fosse levada às suas últimas consequências, para finalmente ver-nos escarrapachadas nos jornais as carinhas larocas de quem fez um negócio desastroso (três vezes mais do que o verdadeiro custo daquele monte de esterco inútil) para o Estado e que deu no que deu. É esse o verdadeiro Estado que esses inteligentes senhores e senhoras defendem: Rendimento Máximo Garantido para os amigalhaços do "privado" a mamarem da teta pública assegurado pela "redistribuição" dos impostos de quem trabalha. São esses inteligentes articulistas de uma alvura que se não revê nas carregadas cores da Direita ou da Esquerda? Tretas... Eles têm é as variadas cores das diversas moedas fortes que compraram este país e deixaram a coisa pública impotente face a quem realmente nele manda: a alta finança transnacional. Eles, bem vistas as coisas, não passam das marionetas ventríloquas dos capatazes dessa alta finança. Uns lacaios, chamando os bois e as vacas pelo nome.

Anónimo disse...

Em relação ao SIRESP, hoje soubemos que:

"Governo de Passos pressionou Açores para adoptarem o SIRESP
Executivo açoriano rejeitou o sistema por dúvidas quanto à fiabilidade, avançando para uma rede própria que custou dois milhões de euros. O SIRESP iria custar 30 milhões aos açorianos".

Jose disse...

Que coral tão bonito!
Tão afinadinho!
Em algum lugar se perdeu um comentário que lembrava o rigor e a oportunidade de um relatório geringonço de março passado.

Rui disse...

Por acaso acho que neste ponto a Helena Garrido tem razão, e eu até nem a costumo levar muito a sério.
O momento atual do País mostra um falhanço completo de uma instituição completamente pública numa das suas funções mais básicas (Forças Armadas que falharam em guardar o armamento que lhes foi confiado) e de um sistema privado que também falhou numa das suas funções mais básicas (SIRESP que falhou em assegurar comunicações em situações de emergência). Daí a afirmação da Helena Garrido até me parece adequada, o problema não é de Estado a mais ou a menos, o problema que temos é de uma generalizada falta de competência e de exigência. Ou seja precisamos de melhor estado (seja ele mais ou menos), precisamos de competência, precisamos de meritocracia, precisamos de pessoas nos postos de chefia e coordenação que realmente saibam o que estão a fazer e que se preocupem com o seu trabalho. Precisamos também que essas mesmas pessoas sejam controladas e fiscalizadas e que se não estiverem a cumprir o seu trabalho de chefia em condições sejam afastadas e dêem lugar a alguém competente. Isto na minha opinião pode ser feito com muito ou pouco estado .

Anónimo disse...

Qual falta de competência, qual falta de exigência.

No reino unido a privatizaçao dos caminhos de ferro foi feita por gente muito competente...para os seus interesses. Para os interesses privados de quem lucrou com a privatização.
O resultado está à vista. Transformaram um bom serviço numa porcaria. O número de acidentes subiu exponencialmente. O público e os trabalhadores ficaram muito pior. Mas a competência de quem tirou o pedaço de carne à CP lá do sítio e quem fez entrar nos bolsos privados o produto de negociatas vesgas, essa ficou.

O mesmo com o SNS inglês. Transformaram um serviço exemplar numa bosta. Em proveito de quem?

Quanto à Helena Garrido...JRA tem toda a razão no que escreve sobre ela. Uma troikista inveterada com um discurso pesporrento e subserviente até à náusea, agora aparece transformada em salomónica defensora dos interesses das populações.

Este tipo de discurso já teve melhores dias. É ver o que a privatização da banca deu. Ou a da EDP . Ou a da PT.

Basta

Anónimo disse...

Depois de, ao longo de dezenas de anos, as chefias políticas terem levado as Forças Armadas Portuguesas a transformarem-se numa autêntica caricatura de uma força militar, eis que aparece gente inteligentíssima a fazer recair sobre esse mesmo corpo as culpas do fruto da ação política a que ele é, por obrigação institucional, completamente alheio.
E digo mais: a incompetência dos sucessivos governos só aconteceu porque ela se escudou numa colossal cobardia - por mais aleivosias que fizessem às Forças Armadas, esses executivos sabiam bem que jamais ouviriam de uma superior chefia militar a mínima crítica por pífia que ela fosse.
O que fica claro à saciedade em todo o caso de Tancos é a completa ignorância e irresponsabilidade dos políticos que se têm - alternadamente, diga-se - sucedido no governo deste país. E esses políticos têm partidos: PSD,CDS e PS.
Ninguém saí ileso do vergonhoso circo: PSD e CDS clamam por demissões, esquecendo-se de que foram eles o grande camartelo da destruição da coisa pública e olvidando, ainda mais vergonhosamente, o facto de no tempo do Messias de Massamá terem "voado" da tutela da PSP dezenas e dezenas de "glock" sem que alguém pedisse a demissão de quem quer que fosse; o PS lidou com a situação com os pés e, não menos vergonhosamente, resolveu atribuir preventivamente a culpa às chefias militares e exonerar altas e prestigiadas patentes do exército. Um nojo.
Enquanto a procissão circense passa, vamos assistindo às mais estapafúrdias declarações de gente que é paga para ser competente e perceber dos assuntos sobre os quais opina: ele é a "pista libanesa" (o Hezzbollah, que derrotou o exército israelita, deve estar necessitadíssimo de armas dos anos 70...) e mais lixo para cima da reputação dos militares; ele é as armas que, segundo essas mentes geniais, poderão reaparecer num qualquer conflito africano (depois da redução da Líbia a um não-Estado do qual voaram toneladas e toneladas de armamento, o que falta ao Norte de África e ao Sahel são... armas). Santa estupidez!!!

Anónimo disse...

Quanto ao comentário do excelentíssimo Senhor Rui, ele padece de um basilar erro de perspetiva: só se comparam coisas que mantém entre si o mínimo de analogia. O setor escolhido para a inteligente comparação público/privado é, neste país (felizmente), UNICAMENTE PÚBLICO. Para comparações dessas, terá o amigo Rui de se meter na sua privativa máquina do tempo e voltar ao século XVIII dos "condottieri" ou, caso a maquineta não esteja afinada, terá de apanhar o avião e voar ao excecional país onde a guerra foi semiprivatizada e onde "contractors" como a Blackwater fizeram rios de dinheiro com o negócio da guerra. Contudo, mesmo chamando à colação o caso de além-Atlântico, o privado mostraria a extraordinária qualidade que tem: no Yémen, bastou um bem direcionado míssil terra-terra disparado pela resistência houthi para o corajoso rugido marcial dos mercenários da Blackwater se transformar em pífio miado de lamento pelas dezenas de mortos sofridos e darem às de vila diogo.

Anónimo disse...

Só mais uma coisinha: em vez de andarem as autoridades competentes a acenar o espantalho de uma alucinada "pista libanesa", talvez não fosse despiciendo a quem de direito começar a pensar seriamente em investigar uma possível "pista europeia". De tudo se lembraram os nossos sapientíssimos comentadeiros/comentadeiras de serviço aos nossos prestigiados "media", e passou-lhes pelas inventivas cabecinhas mil e um cenários mirabolantes; só um fato se não lembraram eles de referir: nos últimos meses, estiveram em Tancos estacionadas equipas militares de diversos países europeus. De onde vieram elas? Quem as compunha? Alguma delas tinha nas suas fileiras gente com filiações político e/ou religiosas duvidosas? Tiveram acesso a zonas sensíveis da Base e conhecimento pormenorizado do material que nelas se encontrava?
Mas eu compreendo o melindre das autoridades portuguesas: quem comete a estupidez asinina de deixar roubar material altamente letal de um paiol militar não vai agora armar-se em meticuloso inquiridor de pecadilhoa alheios, não é verdade?

Anónimo disse...

Leia-se "pecadilhos".

Jose disse...

As privatizações são horríveis!

Isto de fazer pagar os serviços com salários e não com impostos (de preferência dos outros) é um atentado à transparência (no sentido de não se ver) da economia.

Perde-se aquele saboroso sabor a maná, que é o consolo dos crentes e a miséria do país.

Anónimo disse...

São de facto horríveis.

São uma forma de saquear o que deve estar na esfera pública.

São uma forma de enriquecer meia-dúzia de tipos.

São uma forma de vender o pais ao desbarato.

Anónimo disse...

Aqui há anos tínhamos a fina flor dos neoliberais a pregar as virtudes das privatizações, logo ampliadas pelos media subservientes e ao dispor . E tínhamos claro os néscios que se aproveitavam do que era património público, feitos gente histérica a pedir por mais e a gritar que queriam mais

Depois foi o que se viu. Quem alertava contra estes vende-pátrias tinha razão. Os bens oferecidos por tuta e meia serviram de pasto a negócios esconsos e mafiosos. Os privados não tiveram quaisquer escrúpulos e banquetearam-se até fartar.

Agora quem defende as ditas privatizações abandonou já o disco rachado que emitia aqui há anos.
E só lhe saem estas misérias que de tão misérias não dão para mais do que um sorriso irónico e um gesto de comiseração:
"Isto de fazer pagar os serviços com salários e não com impostos "

Sinais de impotência argumentativa e de indigência intelectual?

Anónimo disse...

Abandonados que estão os choradinhos em torno das benesses para o público das privatizações e abandonados porque hoje em dia é consenso que os serviços pioraram (na exacta medida em que banqueiros e grandes capitalistas se encheram com o dinheiro alheio), o que vemos?

Um choradinho pelo dinheiro que se gasta com as empresas públicas.

Esta gente não tem vergonha nem escrúpulos. As empresas privatizadas,ao saírem da esfera pública com o apoio directo de néscios e corruptos governantes, contribuíram para a ruína do nosso pais.

E para a engorda de meia dúzia de salafrários, muitos dos quais estão hoje constituídos arguidos

1 330 000 000 de euros é o lucro, apenas no 1.º semestre de 2016, de oito das empresas privatizadas nas últimas décadas

Dinheiro que saiu assim do erário público para a mão untuosa e miserável de quem se apropria do alheio

O que esta malta das privatizações quer é aumentar as suas oportunidades de negócios e enriquecer cada vez mais, concentrando a riqueza num diminuto número de mãos.

O resto é conversa para boi dormir. Embora a conversa hoje em dia esteja reduzida a estes esgares ridículos e apatetados como se vê no comentário das 8 e 55

Anónimo disse...

"A partir das privatizações o grande capital obteve monopólios em simulacros de investimento. Foi na realidade, efectivo desinvestimento a partir de manobras financeiras. Nos primeiros seis meses de 2016, um conjunto de apenas oito empresas privatizadas (EDP, Galp Energia, Santander Totta, Navigator, EDP Renováveis, REN, CTT e Brisa) obtiveram 1,33 mil milhões de euros em lucros, cerca de metade do défice público no mesmo período . Eis portanto como funcionam as "regras europeias" e a "eficiência" privada monopolista, tão decantada pelos "comentadores".

A pretendida "confiança e credibilidade" dos mercados é obtida entregando ao grande capital a riqueza nacional, reduzindo os seus impostos, impondo austeridade, privatizações e PPP, suprimindo direitos laborais. A confiança e credibilidade perante os cidadãos pouco ou nada conta."

Percebe-se assim que o das 8 e 55 fale no "saboroso sabor a maná", seu consolo como crente e a miséria do país.

Ele conhece bem esse sabor. Ele bem sabe quão saboroso é. Camões falava no saber só de experiências feito e ele bem sabia do que falava.

Conhece bem o consolo que oferece o produto do saque a quem tem como deus o lucro acima de todas as coisas.

E a aposta na miséria do país resulta no que ele próprio se transformou e que é penoso dizer.

Enfim outros Miguel de Vasconcelos