Nunca um convite para falar em público sobre economia me deixou tão inquieto como este. Esta semana irei participar no “Encontro com o Cientista”, no Pavilhão do Conhecimento em Lisboa, a convite do programa Escola Ciência Viva. Trata-se tão só de explicar o que faz um investigador em ciência económica a uma audiência de crianças da escola primária.
Seria fácil para quem acreditasse que a Economia consiste num conjunto de relações mais ou menos abstractas – uma curva da procura para lá outra da oferta para cá, um sistema de equações simultâneas, maximiza-se a utilidade e a função de lucro e já está. Seria só simplificar a intuição matemática e a coisa estava feita.
Para quem, como eu, entende que não há leis universais em Economia, que os processos económicos dependem crucialmente de contextos institucionais concretos em tempos e espaços bem-definidos, que as regras formais e informais que estruturam aqueles processos são tanto causa como consequência do comportamento dos actores económicos, que tais regras nem sempre são facilmente observáveis e que é preciso analisá-las cruzando métodos, e que sem fazer isso a ciência económica se reduz a um exercício fútil – o desafio fica um pouco mais difícil.
Como se não bastasse, resolvi pesquisar o que os psicólogos do desenvolvimento andaram a estudar sobre a apropriação de conceitos económicos por parte de crianças de diferentes idades. Os resultados são fascinantes.
Tipicamente, aos 4-5 anos as crianças não têm nenhuma ideia de onde vem o dinheiro, pensam que o preço dos bens depende das suas características (nomeadamente as físicas – dimensão, proporção, etc.), não percebem de todo a ideia de lucro e são incapazes de aceitar que quem empresta dinheiro possa cobrar juros em troca.
Aos 7-8 anos têm consciência de que o dinheiro vem do trabalho (se os pais trabalharem), mas continuam a pensar que o preço das coisas depende da sua função ou utilidade prática (jamais um colar pode custar mais que um canivete suíço), que juros e lucros não fazem sentido, e são essencialmente desprovidos de pensamento estratégico ou de ganância nas relações com os outros. As trocas entre crianças são frequentes nestas idades, mas são motivadas por factores muito diversos (puro gozo, desenvolvimento de laços de amizade, desejo de possuir ou descartar objectos).
Lá para os 10-12 anos ainda não pensam na relação entre oferta e procura quando tentam explicar o preço das coisas – nesta fase acreditam que os preços são determinados pela quantidade de trabalho ou de materiais incorporados num objecto. Começam a perceber a ideia de lucro, mas aceitam mais facilmente que haja lucros baseados no que se produz do que no que se troca. Só então começam a aceitar a noção de juros sobre os empréstimos, mas durante algum tempo continuarão a achar que os juros passivos (i.e., que os bancos pagam sobre os depósitos) devem ser maiores do que os juros activos (i.e., que os bancos cobram pelos empréstimos) - só muito mais tarde conseguem compreender a noção de lucro bancário.
O mais interessante de tudo é a forma como as crianças se comportam na famosa experiência do bem-público. Nesta experiência testa-se a disponibilidade de um conjunto de indivíduos para contribuir de forma anónima para um bem comum de que todos beneficiam. Entre os adultos, tipicamente, a partir de certo momento há alguém que, à sombra do anonimato, deixa de contribuir o que era esperado, desencadeando uma sucessão de respostas no mesmo sentido, resultando na falência do bem-público. Entre as crianças, por contraste, a coesão social tende a manter-se para benefício de todos.
Estes resultados fazem-me pensar que, se calhar, há tanto para aprender com as crianças sobre economia como para ensinar-lhes.
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9 comentários:
"Para quem, como eu, entende que não há leis universais em Economia, que os processos económicos dependem crucialmente de contextos institucionais concretos em tempos e espaços bem-definidos..."
Como o Ricardo Paes Mamede não, como qualquer pessoa que perca um bocadinho de tempo a pensar no assunto e não seja um completo imbecil ou um completo fascista.
É realmente fascinante.
Mas mais do que "aprender com as crianças sobre economia", o que estes resultados me sugerem é que a evolução registada no crescimento das crianças ("Começam a perceber a ideia de lucro", "Só então começam a aceitar a noção de juros", "mais tarde conseguem compreender a noção de lucro bancário", "Entre os adultos, tipicamente, a partir de certo momento há alguém que, à sombra do anonimato, deixa de contribuir o que era esperado") revela o que é incontornável na natureza humana. Isto é, tentar contrariar esta evolução natural está condenado ao fracasso e os modelos de organização da sociedade (incluindo no domínio da economia) devem ter isso em consideração.
a partir de certo momento há alguém que, à sombra do anonimato, deixa de contribuir o que era esperado, desencadeando uma sucessão de respostas no mesmo sentido, resultando na falência do bem-público
Nem é preciso anonimato. Em Portugal verifica-se isto em qualquer condomínio - e infelizmente os condomínios são muito frequentes em Portugal. Os condóminos deixam de pagar as suas contribuições para o condomínio, resultando no mau estado de grande parte dos edifícios.
Como eu dizia mais acima, há quem não perca um bocadinho de tempo a pensar no assunto.
Surgem logos os descerebrados convencidos de que lucro e juro são coisas naturais que estão aqui por obra e graça de um qualquer criador ou de um big bang, como a força gravítica ou sujeitas a leis biológicas como a da evolução das espécies.
Podiam ser só analfabetos históricos, infelizmente, pensam que pensam e depois saem as completas imbecilidades.
http://www.asfac.pt/index.php?idc=35&idi=238
Os contornos da impostura pedagógica da "educação financeira" têm responsáveis
Caro Ricardo. Poderia disponibilizar os links dos artigos que sustentam as afirmações aqui expostas? Gostaria de poder lê-los e só beneficiaria quem por aqui passa. Cumprimentos
António Sousa:
Sugiro que comece por aqui e siga as referências indicadas no texto:
Paul Webley (2005). “Children's understanding of economics”. In Martyn D. Barrett and Eithne Buchanan-Barrow (eds.). Children's understanding of society. Psychology Press, 2005.
Anónimo das 10:05:
Um dos resultados recorrentes das experiências referidas é que os estudantes de economia e gestão comportam-se de modo muito mais próxima do que prevê o paradigma dominante do comportamento 'racional', por comparação com pessoas que não foram expostas a essas teorias. Nem por isso se tornam mais bem-sucedidos na vida. Isto mostra como os comportamentos típicos da racionalidade individualista são em larga medida uma construção social.
RPM, Nem que lhes faça um boneco certas pessoas perceberãõ o que é auto-evidente. Intelectualmente não sobem acima de um Camilo Lourenço, dum Gomes Ferreira ou de um Tó Borges. Falta-lhes historiazinha, bom-senso e cérebro.
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