quinta-feira, 29 de maio de 2014
Um tiro no coração do federalismo
A votação para o Parlamento Europeu foi um tiro no coração do federalismo. Matou o projecto de conversão, passo a passo, de uma união de Estados soberanos num Estado federal, os Estados Unidos da Europa, sendo a moeda única um passo decisivo nesse projecto. A estratégia federalista sabia que o caminho era difícil mas, com habilidade, tinha conseguido até agora contornar a rejeição da França, Holanda e Irlanda, as objecções da Dinamarca e Suécia, e a persistente recusa do Reino Unido. Partindo da rejeitada Constituição Europeia, organizou-se um processo de corta-e-cola que deu no Tratado de Lisboa, nele incorporando derrogações excepcionais. O método de Jean Monet sempre tinha resultado: aproveitar cada crise do "projecto europeu" para, sob pretexto de encontrar uma solução para o problema, dar mais um passo na direcção federal, mesmo que insuficiente. Hoje, muitos lamentam o afastamento das instituições da UE relativamente aos povos europeus, mas esses lamentos são apenas lágrimas de crocodilo, porque sempre apoiaram uma federalização feita à sorrelfa. Desde domingo passado, os federalistas ficaram sem saber o que fazer.
O projecto federal está ferido de morte, mas os líderes políticos e as instituições europeias não o reconhecem e enfiam a cabeça debaixo da areia. Durão Barroso resume bem o espírito das elites que defendem uma federalização orçamental germânica (sem transferências): "Crescimento e empregos, essa é a mensagem que temos de passar (...) existe o risco de complacência em relação à necessidade de reformas estruturais." Nós bem sabemos o que são estas "reformas estruturais" e como elas são importantes para o desemprego, em vez do emprego. Enquanto não concretiza o sonho da eleição directa do presidente da Comissão, o social-liberalismo virá apelar à suspensão da austeridade e, provavelmente, dará apoio ao BCE para que inunde o sistema financeiro de liquidez, para evitar a deflação. Como sabemos, desde os anos 80 que os economistas da social-democracia assimilaram a doutrina dos Novos Clássicos e, por isso, entregam a tarefa de nos tirar da crise apenas à política monetária, supondo que o Tribunal Constitucional alemão permite. Vendo enormes riscos e limitações na política orçamental, naturalmente aprovaram o Tratado Orçamental, até para cuidar da sua boa reputação junto da finança. Agora pedem uma "leitura inteligente" das regras do tratado. Recusando ver que este "projecto europeu" não tem condições políticas para prosseguir, as várias famílias federalistas tratarão de mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Nos próximos meses, a política-Leopardo entra em cena.
Porém, o dado mais importante destas eleições não é a relação de forças dentro do novo Parlamento Europeu. O essencial está, como sempre, nos Estados-membros. O crescimento do UKIP vai obrigar Cameron a concretizar a sua promessa de um referendo sobre a UE e o resultado é incerto. Em França, com um sistema eleitoral a duas voltas, Marine Le Pen terá dificuldades em vencer coligações negativas, mas a sua candidatura às próximas presidenciais é certamente uma forte ameaça aos partidos da alternância. Os socialistas franceses estão entalados entre a germanização da UE, que desejariam reverter mas não conseguem, e a dissolução da UE que Marine Le Pen representa. O eixo franco-alemão do projecto federalista está irremediavelmente fragilizado. Em suma, pela enorme abstenção em muitos países, e pela ostensiva votação em partidos que se opõem à actual configuração institucional da UE, milhões de europeus mostraram o seu repúdio pelas várias políticas inscritas nos tratados. Questão importante: Mario Draghi continuará a ter o mesmo apoio político para aguentar o euro?
Em Portugal, o projecto político patrocinado pela UE, sob a capa de "ajuda financeira", foi claramente derrotado. Infelizmente, como revela a votação do PS e dos partidos à sua esquerda, o povo português continua à espera de uma proposta política convincente para lhe conferir o estatuto de alternativa. O caminho para lá chegar será necessariamente turbulento, como é típico das grandes encruzilhadas da História.
(O meu artigo no jornal i)
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11 comentários:
Uma pergunta: o problema é o federalismo ou é o federalismo orçamental sem transferências? É o federalismo ou é o directório franco alemão? Devíamos ter bem claro de que falamos quando falamos deste tipo de conceitos...
Caro HY
O problema é o federalismo.
Na variante "sem transferências", é antidemocrático (gerido pela burocracia da Comissão sob tutela germânica; humilhante para o Parlamento nacional) e depressivo (proíbe políticas keynesianas).
Na variante "com transferências", é politicamente inviável (custaria todos os anos, só aos alemães, pelo menos 8% do seu PIB; representaria o desaparecimento do Estado alemão para ser criado um super-Estado federal) e politicamente indesejável para nós (é o desaparecimento de Portugal como Estado soberano e a definitiva dependência do assistencialismo, sem política económica).
Ao ler o seu post e o link para o post de João Galamba "A abstenção como sucesso" fico na dúvida se a esquerda defende ou não o federalismo europeu.
Lendo o texto de João Galamba, linkado por João Rodrigues num post mais abaixo, parece-me que a derrota do federalismo europeu (como constata o seu post) é uma "vitória" das ideias neo-liberais de Hayek. Lendo o seu post fico com a ideia que lhe agrada precisamente essa derrota e que defende menos federalismo.
Há, da minha parte, algum erro de leitura destas duas posições?
Partindo do princípio que a União Europeia é, ainda assim, um projecto para manter, deve na sua opinião insistir no caminho do federalismo ou deve, pelo contrário, "recuar" e dar primazia às relações entre Estados soberanos?
Caro Anónimo 10:42
Devemos refundar o projecto europeu preservando a soberania dos Estados porque a democracia não existe sem um Estado social, de direito, democrático, e este não existe sem soberania, incluindo a monetária. A soberania é indivisível, não é partilhável.
Por favor, releia as duas primeiras linhas do texto.
Veja também o esclarecimento que dei, mais acima, e o meu texto anterior neste blogue. Desde há alguns anos que defendo a insustentabilidade económico-financeira, social e política do euro, e chamo também a atenção para o esvaziamento da democracia que o actual caminho implica. Nisto alinho com o Prof. João Ferreira do Amaral.
Caro Jorge Bateria,
peço desculpa mas confesso que não percebi exactamente qual a sua posição face ao federalismo. Para mim federalismo implica inevitavelmente perda de soberania para além do que me parece admissível o que me parece ser também a sua posição. O que me causa alguma perplexidade é o facto isso poder ser interpretado, nomeadamente à esquerda, como sendo uma defesa da falta de solidariedade (egoísmo mesmo) entre povos europeus. Um exemplo concreto: não sei como é possível defender a mutualização das dívidas sem ser num quadro federalista, isto é, com perda clara de soberania. O mesmo pode ser dito acerca da exigência de um orçamento comum substancialmente aumentado. Ou seja, parece-me que a evolução no sentido federalista tem sido essencialmente fomentada por ideias de esquerda! E isso parece-me um paradoxo!
Peço perdão, mas discordo absolutamente. A soberania é una e indivisível, não é partilhável? Parece um discurso salazarista. A única coisa que se fez na construção europeia desde o início, foi mesmo partilhar soberanias... O problema está em que se partilhou num domínio e não noutro que era indispensável para acompanhar o primeiro e impedir a divergência entre os Estados-membros. Não tem que ser uma federação total, mas a sua tese, independentemente de apreciar as suas análises no domínio econômico, é absolutamente inexequível. Projecto europeu com base na soberania nacional não partilhada é não projecto europeu. É uma opção. Eu prefiro projecto europeu com partilha de soberanias, democraticamente legitimado e abrangendo as áreas econômica e financeira. O problema é de facto o federalismo orçamental sem transferências. Mas o remédio que propõe é a não Europa...
Caro HY, se há alguma coisa que é certa neste momento é que nunca partilhas mais aprofundadas de soberania serão democraticamente legitimadas pelos povos, incluindo particularmente federalismo orçamental com transferências. Foi por se saber isso que se tentou caminhar nesse sentido sem legitimar democraticamente os passos dados. E o resultado, como se vê agora claramente, ainda foi pior. Acabaram as utopias federalistas e agora é tempo de ser realista: os povos da Europa não querem federalismo, não querem perdas excessivas de soberania, não querem solidariedade "forçada" baseada em orçamentos comuns e transferências "decididas" pelos beneficiários. Podemos não gostar mas é essa a realidade, e temos de deixar de analisar o projecto Europeu apenas pelo nosso ponto de vista.
A Democracia representativa, não tem - nem pode ter! - legitimidade, para abdicar da Soberania de um país.
O único instrumento democrático, para legitimar a perda de Soberania, só poderá ser o REFERENDO.
Caro Aleixo:
Na mouche: "A Democracia representativa, não tem - nem pode ter! - legitimidade, para abdicar da Soberania de um país".
De
Caro anónimo das 10.07,
Se há coisa que não tenho é a pretensão de saber o que os povos europeus querem ou não, aceitam ou não, etc. Tenho a convicção que os povos têm tendência para seguir líderes em quem confiam e que lhes apresentam soluções claras para os problemas, mas provavelmente estou enganado. Por isso, não apostaria nem que acabaram mais trasnferências de sobranias, nem no contrário. O que sei é que a UE (e o euro em particular) como está, não resulta. Eu acredito que com mais democracia e mecanismos financeiros e económicos adequados (que são tipicamente federais, mas isso não quer dizer que se queira fazer uma federação) as coisas melhorarão, e penso que é vital o projecto europeu, sobretudo para pequenos estados como Portugal, por isso gostaria que fosse possível evoluir no que considero ser o bom caminho. Outros acharão que é melhor arrepiar caminho...
Caro Aleixo, não partilho do seu entusiasmo pela democracia directa, nem a considero moralmente superior à democracia representativa, mas também não me oponho a que esse tipo de decisões sejam submetidas a referendo. Importante é que não se defenda o referendo quando nos parece que temos mais hipóteses de ganhar e se seja contra quando nos parece que perdemos...
Só um pequeno detalhe: partilhar soberabias não é o mesmo que abdicar da soberania... ninguem defende tal abdicar, que eu saiba.
Tem pai que é cego.
Qual partilha de soberanias?Isso parece um discurso de Merkel para consumo externo, enquanto afirma o que afirma nos circuitos nacionais.
Um pouco mais de atenção para ver o espectáculo confrangedor e submisso dos troikistas e do seu paleio vergonhoso face ao hipotecar da soberania.
Ou abdicação da soberania para que se perceba e para sermos claros e frontais
De
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