quinta-feira, 22 de maio de 2014

A encruzilhada da social-democracia


A combinação de elementos que caracterizou a social-democracia europeia nas últimas décadas deixou de ser possível. Só que os próprios sociais-democratas ainda não o perceberam.



A social-democracia europeia transformou-se profundamente nas últimas décadas. Durante a maior parte do século XX, os partidos denominados socialistas ou trabalhistas desempenharam um papel central na consolidação do Estado social e na adopção de um amplo conjunto de medidas que melhoraram a condição dos trabalhadores e classes populares. Da década de 1980 em diante, porém, a social-democracia europeia aderiu rapidamente aos princípios da liberalização, privatização e salvaguarda dos interesses do capital. Em suma, ao neoliberalismo.
Sociais-democratas... e neoliberais
A origem do sucesso político do projecto neoliberal residiu na sua capacidade de resolver a crise estrutural que, na década de 1970, resultara dos desincentivos ao investimento originados pelo crescimento dos salários no pós-guerra. O sucesso político de figuras como Thatcher ou Reagan deveu-se à promessa, em grande medida cumprida, de reestabelecer o dinamismo económico através do ataque sistemático aos salários directos e indirectos, restaurando os lucros e o incentivo ao investimento. E esse sucesso político foi tão estrondoso que conseguiu cooptar a social-democracia. De então em diante, os sociais-democratas passaram a distinguir-se dos conservadores pela robustez das políticas sociais defendidas, pelas posições em matéria de costumes e direitos das minorias... mas não pelas medidas de política económica defendidas, virtualmente idênticas na sua adesão ao neoliberalismo. 
O fim de uma era
Só que o neoliberalismo, além de iníquo do ponto de vista da justiça social, revelar-se-ia também disfuncional do ponto de vista do crescimento económico: a prazo, era inevitável que a desigualdade crescente na distribuição do rendimento acabasse por comprometer a procura agregada e provocar, ela própria, estagnação. Durante algum tempo, o crescimento do endividamento permitiu ter sol na eira e chuva no nabal - elevada rendibilidade do capital a par de procura agregada dinâmica -, mas mais cedo ou mais tarde este teria de atingir os seus limites, o que sucedeu em meados da década de 2000. O neoliberalismo tornou-se então incompatível com o dinamismo económico.
A actual estagnação das economias avançadas é, por isso, a crise estrutural do neoliberalismo e sinaliza o fim da era em que foi possível conciliar políticas económicas neoliberais com políticas sociais relativamente robustas. Doravante, a restauração do dinamismo económico e a sustentabilidade do Estado social exigirão, necessariamente, uma ruptura profunda com o modelo neoliberal. O problema é que este encontra-se inscrito no ADN de inúmeras políticas e instituições nacionais e europeias, que os próprios sociais-democratas dedicaram as últimas três décadas a construir. De Hollande a Seguro, é precisamente essa a contradição com que se confrontam e confrontarão os sociais-democratas europeus.
Infelizmente, ainda nem sequer o perceberam.

(a minha crónica de ontem no Expresso online)

7 comentários:

Jose disse...

Entende-se que com a retoma do investimento originada no modelo neo liberal «foi possível conciliar políticas económicas neoliberais com políticas sociais relativamente robustas» embora com um crescente recurso ao endividamento, o que « permitiu ter sol na eira e chuva no nabal - elevada rendibilidade do capital a par de procura agregada dinâmica». Atingido um limite, temos «necessariamente, uma ruptura profunda com o modelo neoliberal».
O que falta dizer é:
- porque é que o crescimento da dívida é um elemento congénito ao modelo neoliberal e qual o papel das políticas sociais nesse processo de endividamento.
- qual o modelo que, sem recurso a acrescer dívida, pode tirar-nos da actual estagnação.
- e sobretudo qual o modelo que assegura emprego e esperança de vida para os jovens, e se esse modelo é compatível com a manutenção dos padrões de vida criados.

Manuel Henrique Figueira disse...

Caro Alexandre Abreu:
Não tenho outro meio de o contactar, pelo que lhe peço desculpa de o fazer aqui.
Estou a coordenar uma revista que se publica na Suíça para a Comunidade Portuguesa naquele país: Lusitânia Contact.
A mesma não tem fins lucrativos e é distribuída gratuitamente entre os 237 mil emigrantes (embora tenha preço na capa mas apenas para orientação quanto ao custo da assinatura que inclui os portes de correio por 20€ / 4 números)
Temos uma rubrica, «Sociedade e Economia», onde publicamos temas como o deste seu post.
Já fiz um contacto com o Ricardo Paes Mamede e o Nuno Serra convidando-os a colaborar connosco, o 1.º disse-me que sim embora tenha pouquíssima disponibilidade de tempo e do 2.º estou a aguardar resposta.
Pedi-lhe mesmo textos não inéditos, que poderiam ser os que aqui deixam de vez em quando, enquadrados apenas por uma pequeníssima introdução que os contextualize.
Queremos textos de um máximo de 3200 caracteres incluindo espaços.
Estaria na disponibilidade de colaborar também connosco
E em que condições?
Poderia ser com estes textos dos seus posts.
Ou o Alexandre fazia a introdução ou a fazíamos nós e a púnhamos à sua consideração.
É preciso romper com a narrativa «oficial» troikiana, apresentando outras visões da realidade.
Aguardo a sua resposta.
O meu e-mail é: manuelhenrique1@gmail.com
Saudações amistosas
M. H.

Henrique Luz disse...

Excerto de carta de B.Brecht a Korsch em 1934:
"Há razões muito fortes que explicam o fascismo alemão e que não se aplica ao caso de outros países. Talvez as democracias burguesas olhem com inveja a maneira como se torna possível baixar salários e reduzir os desempregados à servidão na Alemanha, mas vêem também aspectos menos convenientes[...] O fascismo é uma bebida reconfortante: para quem está enregelado até aos ossos, um gole rápido poderá parecer um bom remédio. Infelizmente, ainda não conseguimos fazer a mais pequena ideia do que significou a Grande guerra mundial. As suas origens mantem-se mergulhadas na névoa mais densa. A "salvação da Alemanha" nunca poderia ser levada a cabo no quadro das velhas formas democráticas. Nas condições de subordinação em que se encontrava, o proletariado já não era capaz de ter uma política externa ou interna própria[...] o que é de certo uma situação muito especial."
; in: George Steiner, The New Yorker pps, 178, Gradiva.

Não esquecer, meus Senhores, Não esquecer.

SFF disse...


Pelo discurso político que se ouve, todos são social-democratas, o cds, o psd, o ps, até há uns anos atrás o Jerónimo de Sousa veio dizer que o seu partido é actualmente um partido social-democrata.
Este texto está muito bom!
O poder de síntese aqui exercido é notável.
É bom que se fale de neoliberalismo para depois não vir o Álvaro Santos Pereira perguntar: Mas o que é isso de neoliberalismo?!

miguel cunha disse...

Seria bom que o comentador SFF fizesse o favor de fundamentar a afirmação delirante que atribui ao Jerónimo de Sousa. Entretanto, deixo o link de uma resposta dada pelo então deputado do PCP Agostinho Lopes ao repto lançado pelo ex-ministro Álvaro Santos Pereira, numa comissão parlamentar, sobre o que é um neo-liberal: https://www.youtube.com/results?search_query=agostinho+lopes+neo+liberal

SFF disse...

Numa entrevista de televisão, acho que na rtp, ouvi o Jerónimo de Sousa dizer que o pcp era actualmente um partido de matriz social-democrata. Já procurei na internet o vídeo da entrevista em que ele supostamente disse isso mas não consegui encontrar. Acho que foi numa entrevista que preceudeu eleições legislativas... Portanto não posso provar que ele o disse e até posso estar enganado ou ter percebido mal. Mas tinha quase a certeza de que tinha entendido bem uma frase desse género.

Anónimo disse...

SFF, meu amigo, essa frase não existe, é simplesmente impossível, nem o Jerónimo continuaria como secretário-geral se dissesse essa barbaridade.

Fazendo um esforço para compreender a origem desse monumental equívoco só me ocorre a ideia de que, como certamente saberá, os partidos comunistas terem uma génese (e não uma matriz) na social-democracia. Na velha social-democracia, bem entendido, a social-democracia dos princípios do século passado.

Não esquecer que o próprio partido comunista russo, antes de adotar esta designação em 1918, se chamava partido operário social-democrata russo (b), referindo-se o b entre parêntesis a bolchevique e remetendo para a ala revolucionária, por contraste com a ala reformista, de uma anterior cisão do posdr.

Como disse, só encontro esta explicação para o mal-entendido.

Se me permite mudar de assunto, e visto que a campanha eleitoral se aproxima do fim, gostaria ainda de recomendar o debate entre os cabeças de listas das principais candidaturas às eleições para o Parlamento Europeu de domingo, que passou ontem na Antena 1:

http://www.rtp.pt/antena1/index.php?t=Debate-com-cabecas-de-lista-as-europeias.rtp&article=7811&visual=11&tm=17&headline=13

Aí se poderá apreciar a coerência, a consistência, a profundidade, o conhecimento, a solidez, o sentido de responsabilidade e a combatividade do representante da força política que é, no nosso país, afinal, a herdeira dessa velha social-democracia de que falávamos agora mesmo, nos tempos em que ela era revolucionária e lutava para romper com e superar o capitalismo: o PCP, que concorre no domingo aliado com os ecologistas "os verdes", na CDU.

Vale a pena ouvir, especialmente a propósito de três grandes constrangimentos que amarram o nosso país ao atraso e ao empobrecimento: a dívida, mais rigorosamente a necessidade de reestruturar em profundidade a dívida pública (nos juros, prazos e montantes); o tratado orçamental, mais rigorosamente a necessidade de recusá-lo e abandoná-lo; o euro, mais rigorosamente a necessidade de sair (responsavelmente, pela esquerda) da moeda única.

Que tenha uma boa reflexão eleitoral.