quarta-feira, 5 de junho de 2013

Que farão quando tudo arde?


Para quem ainda tivesse dúvidas, os dados trimestrais hoje publicados pelo INE dizem tudo ou quase tudo: 100.000 postos de trabalho destruídos só no primeiro trimestre de 2013 (400.000 desde que este Governo entrou em funções); queda homóloga do investimento de -17%; contracção homóloga do PIB de -4%; estagnação das exportações (+0,1% em termos homólogos); quebra homóloga de -8,9% nos impostos cobrados, apesar da brutal carga fiscal. Ou seja: a espiral recessiva, longe de abrandar, aprofunda-se cada vez mais; adivinha-se já outro orçamento rectificativo para breve, quando a Assembleia da República ainda nem aprovou o que foi apresentado na semana passada; e, no dia em que se cumprem dois anos sobre a sua funesta vitória eleitoral, este Governo já conseguiu bater todos os recordes de devastação social e económica, fazendo o país regredir várias décadas em termos de produção, emprego e direitos.

A maioria do povo, ainda que lentamente, começa a aperceber-se da política de saque e empobrecimento a que está a ser sujeita: são já 83% os que consideram que o Memorando com a troika deveria ser denunciado ou profundamente renegociado e, nas sondagens mais recentes, o PSD e o CDS já valem em conjunto menos 16% do que tiveram nas legislativas de 2011. Porém, a direita está decidida a aproveitar esta conjugação única de circunstâncias (maioria parlamentar, Governo, Presidente, troika) para levar a cabo o seu programa de engenharia social neoliberal, mesmo que isso tenha como consequência a maior punição eleitoral de sempre. Ficarão enquanto puderem, independentemente da devastação social ou das repercussões eleitorais, porque têm um programa ambicioso para pôr em prática e condições dificilmente repetíveis para fazê-lo. Assim, e oxalá eu me engane, o futuro próximo reserva-nos apenas mais recessão, desemprego, precariedade, cortes de salários e pensões, destruição do Estado social e perda de direitos – e, com forte probabilidade, o PS vai mesmo para o poder, sozinho ou em coligação, no prazo máximo de dois anos, bastando para isso esperar que, de maduro, o fruto lhe caia no colo. Tacticamente, aliás, é isso o melhor que o PS tem a fazer para regressar ao poder. Mas a questão decisiva que se coloca é outra: que fará o PS uma vez no Governo?

Abstraindo-nos por ora da crónica promiscuidade entre largos sectores do PS e os grandes grupos económicos e concentrando-nos no campo da proposta política, a melhor indicação de que dispomos em relação às políticas de um eventual futuro Governo PS é a moção apresentada por António José Seguro no último Congresso, que conseguiu reunir o apoio de uns espantosos 99% dos delegados. E essa indicação é bem esclarecedora da gravidade do problema político com que nos encontramos confrontados: a liderança do PS não faz a menor ideia da natureza da crise em que estamos mergulhados e, além do mais, nem sequer tem o mínimo de discernimento em relação ao seu interesse próprio: é que, para o PS e neste contexto de encruzilhada, a melhor opção táctica é, simultaneamente, a pior opção estratégica.

As propostas concretas contidas no discurso e na moção de A. J. Seguro dividem-se em três categorias: as boas, a má e as voluntaristas. As boas incluem propostas como o aumento do salário mínimo e das pensões mais baixas, a valorização da contratação colectiva, a criação de um banco de fomento ou a apresentação de projectos de investimento reprodutivo aos ’project bonds’. Realmente má é apenas uma: a proposta de redução do rácio de capital ‘core tier 1’ dos bancos de 10% para 9% (promover a alavancagem bancária, já todos deveríamos saber à luz dos eventos dos últimos anos, não é propriamente uma boa ideia). E as voluntaristas são muitas e boas, mas totalmente fantasiosas: renegociação dos prazos, juros e montantes da dívida pública; mutualização europeia de parte da dívida dos Estados e dos esquemas de combate ao desemprego; convergência fiscal a nível europeu; devolução dos lucros obtidos pelo BCE nas operações de compra de dívida pública – e por aí fora, num longo e pormenorizado retrato de uma Europa imaginária, totalmente desfasada da relação de forças efectivamente existente na UE e na zona Euro. São voluntaristas e fantasiosas porque dependem da vontade de terceiros e não têm em conta a realidade política europeia - basta recordar os obstáculos alemães à criação de um mecanismo comum de resolução bancária ou à possibilidade de emissão de ‘Eurobonds’ para termos uma noção do irrealismo destas propostas – mesmo as menos ambiciosas.

Seguro propõe-se renegociar tudo isto com as instâncias europeias e os credores internacionais. Pergunto eu e devem perguntar os portugueses, sobretudo os apoiantes do PS: com que armas negociais? Qual a ameaça latente que levará as instâncias europeias e os interesses que as dominam a ceder nestes pontos? Seguramente não estamos a falar da imposição unilateral de uma moratória sobre o pagamento da dívida, ou estamos? É que nunca se ouviu tais palavras da boca do Secretário-Geral do PS. Mas mais grave ainda é que mesmo as propostas benignas de Seguro à escala nacional são largamente insuficientes para “vencer a crise” porque, simplesmente, assentam numa concepção errada da natureza desta mesma crise. Com raríssimas excepções (o aumento do salário mínimo e das pensões mais baixas e um vago programa de reabilitação urbana), praticamente todas as propostas de Seguro visam estimular o investimento, promover a retoma e inverter a destruição de emprego através de medidas do lado da oferta. Os “sete pilares” da agenda para o crescimento e o emprego (ponto 2.2.3 da moção) são, a esse nível, esclarecedores: qualificação das pessoas; financiamento da economia e capitalização das PMEs; redução dos custos de contexto; apoio à I&D e inovação; promoção da economia verde, energias renováveis e produção nacional; programa integrado de apoio à internacionalização; e captação de Investimento Directo Estrangeiro. De uma forma geral, trata-se de propostas louváveis. O problema é que são obviamente insuficientes, uma vez que as causas da crise portuguesa, repitamo-lo uma vez mais, encontram-se no colapso da procura – e esta manter-se-á deprimida enquanto nos mantivermos no Euro (pelo lado da procura externa) e enquanto não se repudiar de forma decisiva e muito provavelmente unilateral a austeridade pro-cíclica e a sangria crescente dos juros da dívida pública (pelo lado da procura interna).

O PS propõe uma quadratura do círculo que visa, magicamente, conciliar a consolidação das contas públicas, o beneplácito dos credores, o crescimento económico, a retoma do emprego e a permanência na zona Euro. O caminho proposto para lá chegar consiste, no plano europeu, em declarações de intenções sem qualquer fundamento na realidade política efectivamente existente e, no plano nacional, em propostas em geral benignas mas claramente insuficientes, uma vez que ignoram a real natureza da crise. Em termos tácticos, é a melhor opção para o PS regressar ao poder: sendo progressista ao nível das intenções, evita assustar quem quer que seja com o espectro das eventuais consequências de uma moratória sobre a dívida pública ou da saída da União Económica e Monetária. Mas tem um problema: não retirará Portugal da recessão e do empobrecimento. E se o PS, que uma boa parte dos portugueses continua a considerar como o culpado original da crise (de forma bastante simplista e errónea, é certo), regressar ao poder e se mostrar incapaz de inverter a recessão, terá pela frente um destino algures entre o de Hollande e o do PASOK. Muito mais grave do que isso, porém, os portugueses terão pela frente dois ou três ciclos eleitorais até que se vislumbre qualquer perspectiva de saída da espiral de empobrecimento. Em vista disto, que fará o PS quando tudo arde?


7 comentários:

Lowlander disse...

Parabens. Analise lucida, critica construtiva e questoes pertinentes. Muito bem.

Aleixo disse...

O "polvo" OU O POVO!

Não há lugar para híbridos.

Anónimo disse...

muito bem

Anónimo disse...

Infelizmente, o povo português continua a gostar de ser maltratado: "quanto mais me bates mais gosto de ti", é o que se costuma dizer.
Como é que possivel que um governo como este, que apenas tem destruido este país, e em que o PM( que ainda não saiu do poleiro e já é "o do de muito má memória" e que Deus há-de ter e que então lhe pese bastante a terra)diz ter orgulho no que está a fazer( é só merda por todo o lado)e ainda assim só perderam (o PSD e o CDS) 16% de votos.!
Então estes facinoras que já deviam estar arrasados nas sondagens só desceram 16%.!!!
Assim não, porra.!

brancaleone disse...

O PS (tal como a esquerda italiana e francesa) sabe muito bem o que se está a passar. Pelo menos, acho eu, a nível da direcção política. Nenhum partido de esquerda (com a excepção do PCP em Portugal ou da Linke na Alemanha) está a preconizar saidas do euro. A proximidade destes partidos com os grandes grupos financeiros é evidente. A finança é o único sector que esta a ganhar nesta gigantesca operação de socialização das perdas de uma crise de divida privada no interior da zona euro que foi a maior demonstração da falência de um mercado sem regras e da moeda única. Esquerda ou direita, neste momento não há diferenças a nível europeu nas políticas que estão sendo utilizadas para reembolsar os créditos dos grandes bancos da Alemanha (e não só) que andaram a emprestar a torto e direito nas economias periféricas sem risco cambial e pelo contrário ganhando melhor que nos próprios países (que no entanto baixavam salários e procura interna) devido aos juros mais altos puxados pelas tendências inflacionistas de economias que estavam a ter uma ilusão de crescimento.
O diferencial de inflação acumulado nestes anos destruía, no entanto, a competitividade das economias da periferia que agora mergulham na crise.
A solução agora é uma: desvalorizar os salários (já que não se pode desvalorizar a moeda) para permitir que as empresas voltem a ganhar competitividade.
A esquerda francesa, através de Hollande, louvou publicamente as reformas do trabalho que a esquerda alemã aplicou na década anterior a crise. Reformas que levaram a criação de 8 milhões de trabalhadores precários (que nunca vão receber uma reforma na vida) mas que permitiram uma redução do custo do trabalho e uma contenção da inflação que não só fez que a Alemanha importasse menos dos seus parceiros europeus, mas que os seus produtos se tornassem cada dia mais competitivos a todos níveis, não só nas gamas altas.
A esquerda italiana está a seguir o mesmo caminho e o aumento do desemprego está a ajudar imenso na introdução de medidas para a “flexibilização” do trabalho e as reduções salariais.
Uma esquerda europeísta portuguesa não poderia seguir um caminho muito diferente.
Tal como aqui foram acusados os socialistas de “despesismo” na Itália acusou-se a direita despesista do Berlusconi. Agora a situação está invertida. Em Portugal a direita aplica medidas de austeridade, em Itália é a esquerda.
As pessoas ainda não compreenderam que as soberanias nacionais foram para o lixo. O vínculo externo, as imposições orçamentais e legislativas que chovem de Bruxelas de uma Comissão que nunca nenhum cidadão europeu elegeu, são usadas para “educar” o povo, para torna-lo alemão. Um esforço masoquista de querer mudar a sociedade de inteiras nações em nome de interesses financeiros e monetários.
A Grécia foi reduzida a uma pilha de escombros. Portugal vai a caminho. O PS português quando chegará ao poder provavelmente poderá ainda contar com um povo disposto a sacrificar o próprio futuro em nome de uma moeda forte. Tentará a jogada da “renegociação”, em Bruxelas receberá a resposta mais obvia: “NEIN”. De resto, uma resposta coerente com a politica europeia de mais de uma década em que não existiu nenhum esforço de coordenação de medidas económicas, fiscais, do trabalho etc. ao nível comunitário.
Os medias ajudarão como sempre no trabalho de desinformação com as mentiras de costume: “Se saíssemos do euro não poderíamos mais comprar iPhones, a gasolina iria ficar 10 vezes mais cara tal como as outras matérias primas de que a nossa industria precisa, os juros sobre a divida seriam altíssimos, ninguém iria mais nos emprestar dinheiro”.
O povo aterrorizado será obrigado a continuar a sonhar o “sonho europeu”, desta vez em tons esquerdistas, até adormecer para sempre.

Carlos disse...

Infelizmente continua a haver um domínio absoluto dos mesmos de sempre, PS+PSD+CDS, os tais do Arco da Governação. E não importa que um perca 16% ou mais! o que interessa é que ambos, PS+PSD, partilham o 1º e o 2º lugar, ou seja, um é governo e o outro líder da oposição! Enquanto isto se mantiver, enquanto não se der oportunidade aos outros ( PCP, BE, MRPP, POUS, etc)não muda nada...

Carlos Sousa disse...

PSD/CDS tiveram uma oportunidade de fazer alguma coisa pelo país, e não fizeram. Esqueceram-se que 70% do tecido produtivo vive do consumo interno e quando aumentaram impostos e cortaram vencimentos e pensões, condenaram definitivamente o Crescimento. As Exportações representam uma parcela residual do PIB. Deveriam ter preservado o poder de compra e ter cortado nas despesas intermédias do Estado (mais de 50 MM€ quase intactos).

O PS vai tentar a quadratura do círculo. Não rasga o memorando, também não vai conseguir subvertê-lo como espera, vai cumprir com as metas de Endividamento e Défice, mas não vai cortar Vencimentos nem Pensões, nem tocar no Estado (muito menos no Estado Social). O mais certo é meter o país num novo resgate pois os socialistas sem dinheiro não sabem governar. Se Passos é mau, esperem por Seguro para saberem o que é mesmo mau.

PCP e BE ?!? Não é por nunca lá terem estado que o país deve cometer suicídio.
Programa de ambos:
1 - Mandar a troika embora !
2 - Denunciar a dívida.
Depois destas duas medidas, o rating soberano deverá saltar para uns favorecidos 20% !!!
Se a extrema esquerda conseguir explicar ao eleitorado como obtém dinheiro para Vencimentos, Pensões e como mantêm a Segurança Social e os níveis actuais de despesa estatal, EU VOTO JÁ NELES !!!

Solução ? Nenhuma para já. Talvez apareça uma alternativa política fora dos actuais partidos...