O Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa lançou um Manifesto, encabeçado por Eduardo Paz Ferreira, como o título inequívoco «Um Tratado que não serve a União Europeia».
Num país em que as elites ligadas ao arco da governação desenvolveram ao longo dos anos um europeísmo acrítico, subvalorizando os riscos da integração europeia e exaltando benefícios questionáveis, o surgimento de um Manifesto que põe em causa o projecto de “Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governação na União Económica e Monetária”, promovido por especialistas reputados de uma instituição reconhecida, é motivo de grande interesse.
Ainda o é mais quando lemos as razões de crítica à pseudo-solução que os líderes europeus dizem ter encontrado para a crise. Eis algumas passagens do Manifesto:
«Num momento que é de urgência, em que os problemas da zona euro se jogam no curto prazo, é paradoxal que se tenha apostado em despender energias na elaboração de um projecto de tratado, para mais numa circunstância em que se verificou não haver consenso para isso entre os 27 Estados-membros, o que só por si enfraquece a solução encontrada.
A surpresa é tanto maior quanto nada do que está consagrado no Projecto de Tratado aprovado pelos 25 Estados-membros é verdadeiramente inovador. E o que verdadeiramente justificaria um tratado de revisão está ausente no projecto agora aprovado.
Com efeito, o que se verifica é, no essencial, uma tentativa de elevar ao nível de tratado o fracassado (não por acaso) Pacto de Estabilidade e Crescimento como contrapartida da criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).
(...) O Projecto de Tratado reincide no erro de instituir um regime económico sem flexibilidade, em resultado do ainda maior espartilho decorrente das regras orçamentais. Os Estados-membros mais frágeis – já bastante condicionados pela dependência de financiamentos de instituições da União - ficam totalmente desprovidos de instrumentos de política económica para prosseguir os seus objectivos específicos. E não podem sequer beneficiar, como nos Estados Unidos, dos instrumentos próprios do federalismo (designadamente de um poderoso orçamento redistributivo ao nível da União), ficando assim no pior de dois mundos.
(...) A estratégia adoptada é orientada num sentido único. Desvaloriza-se a circunstância de o problema de fundo residir mais no nível dos desequilíbrios nas balanças de pagamentos do que propriamente nos desequilíbrios orçamentais (a Espanha tinha excedentes orçamentais apesar do enorme défice externo): os fundos provenientes dos países com excedentes na balança foram intermediados pelo sistema financeiro para financiar os países com défices na balança. Daí a necessidade de uma visão mais abrangente, mais de conjunto, ao nível da zona euro.
A estratégia seguida secundariza o vector do crescimento, pois pretende ajustamentos em períodos muito curtos. Ora, a intensidade do ajustamento pode comprometer o crescimento e gerar uma espiral recessiva. Então, como já alguém disse, em vez de uma união de estabilidade e crescimento teremos uma união de instabilidade e duradoura estagnação.»
Não poderia estar mais de acordo. O meu apoio ao Manifesto esbarra, no entanto, num palavra maldita: austeridade. O Manifesto defende a «austeridade» como um dos «quatro ângulos» de um «quadrilátero virtuoso» (completado por «crescimento, solidariedade e defesa intransigente da democracia»). Na verdade, os autores do manifesto enfatizam que a «austeridade» deve ser entendida «como um instrumento e não como um fim», podendo ler-se que «a austeridade deve traduzir-se, designadamente, num combate sem quartel ao desperdício e à corrupção e na racionalização e reorientação da despesa pública visando maximizar a sua eficiência.».
Tivessem os autores utilizado a expressão 'disciplina orçamental e transparência' e o meu acordo seria quase total. Tenho defendido que não concebo uma integração económica sem estabilidade cambial e não imagino que esta seja possível sem compromissos e mecanismos de monitorização multilateral das políticas orçamentais. Subscrevo também a ideia, expressa no Manifesto, de que a estratégia de saída para a crise deveria passar por esforços assimétricos dos Estados europeus, com a adopção de políticas expansionistas nos países superavitários e contenção nos restantes.
No entanto, no contexto actual, a utilização da expressão 'austeridade' não é neutra. Ela acarreta, não obstante os qualificativos, um alinhamento simbólico com uma estratégia de ajustamento assente na difusão da ideia de superioridade moral dos hábitos austeros, como meio de legitimação de medidas injustas, ilegítimas e, como o Manifesto sublinha, condenadas ao fracasso.
Por outro lado, este Manifesto - como, de resto, a generalidade das intervenções críticas sobre a integração europeia (inclusive as que temos feito neste blog) - ignora recorrentemente uma questão fundamental: a da viabilidade política de quaisquer propostas alternativas para ultrapassar a crise. De facto, grande parte das propostas avançadas no Manifesto exigiriam a substituição do Tratado de Lisboa, o que só seria possível com o acordo de cada um dos 27 Estados Membros. E nunca estivemos tão longe de conseguir um acordo sobre as questões mais simples, quanto mais sobre aquelas que implicariam, na verdade, uma refundação da UE.
Parece cada vez menos razoável esperar que a sensatez e a racionalidade colectiva dos governos da UE conduza a uma mudança de rumo. Este é o elefante que temos na sala e que temos evitado discutir. Vai chegando a hora de mudar os termos do debate.
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3 comentários:
"Ela acarreta, não obstante os qualificativos, um alinhamento simbólico com uma estratégia de ajustamento assente na difusão da ideia de superioridade moral dos hábitos austeros ..."
Finalmente percebi porque é que tantos que concordam com "disciplina orçamental" (e percebem a sua inevitabilidade) se irritam com "austeridade". É por causa do simbolismo!
Se isso é um obstáculo para um consenso mais alargado sobre a necessidade de "disciplina orçamental", decrete-se já a proibição de utilização da expressão "austeridade" no espaço público!
Parece-me que o Anónimo anterior percebeu o mesmo que nada.
Não sou lá muito dado a simbolismos, ainda que eles sejam uma parte necessária à resolução do problema Europeu.
Uma vez que o cerne da questão está na (des)União Europeia, deixo a minha proposta: que tal sermos austeros na "disciplina orçamental e transparência"?
(por minha sublinhava-se a austeridade na transparência, mas se calhar isso já é pedir muito...)
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