Em «O pequeno livro do grande terramoto», Rui Tavares descreve a forma como o moralismo religioso justificou a hecatombe que se abateu sobre Lisboa em 1755. As ondas do tsunami, o estremecer das entranhas da terra e os incêndios que devoraram a cidade não eram mais do que a expressão da justiça divina, que desse modo castigava o alastrar do pecado e do vício.
Poderá hoje dizer-se que esta explicação metafísica nasceu da incapacidade para compreender as causas de uma catástrofe natural (a teoria da tectónica de placas surgiria, de facto, apenas cerca de um século mais tarde). O insuportável vazio foi ocupado pelo obscurantismo, que a ausência de explicações alternativas, racionais, legitimou.
Um terramoto abala hoje a Europa e (de uma forma que até há muito pouco tempo diríamos não ser possível) os seus alicerces mais sólidos. Para os tecnocratas moralistas, a crise que a União atravessa não é senão a consequência do vício do endividamento, em que incorreram Estados irresponsáveis. Por isso se impõe penitência e disciplina. Por isso os incumpridores devem ser obrigados a abdicar da sua soberania e da própria democracia.
O futuro olhará para estes dias negros com a mesma perplexidade e estranheza com que hoje se encara a explicação moralista do terramoto de 1755. Mas com substanciais diferenças. Conhecemos bem as causas da catástrofe (uma crise financeira resultante da desregulamentação dos mercados, que expôs as fragilidades de uma zona euro disfuncional e de uma integração económica europeia assimétrica). E sabemos que o reforço continuado da fracassada receita austeritária apenas contribui para o agravar da situação, tal como temos noção dos caminhos que podem inverter a vertigem da crise (políticas expansionistas coordenadas, estímulo do crescimento e do emprego, e uma governação económica europeia que dote o BCE de plenos poderes, a par da regulação dos mercados financeiros, capaz de travar a especulação em dominó sobre as dívidas soberanas).
Ao contrário de 1755, o obscurantismo que a actual crise desencadeou é portanto mais complexo e incompreensível. Atravessa os moralistas obstinados e os seus mais fanáticos acólitos. Mas afecta igualmente aqueles que, tendo já compreendido a cegueira irracional que nos conduz para o desastre, respondem com a resignação e o silêncio. O Conselho Europeu que ontem teve lugar é a mais clara ilustração disto mesmo.
sábado, 10 de dezembro de 2011
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4 comentários:
Já sabiamos....
e o medo do fim é próprio do homem
Esta metáfora do terramoto é particularmente interessante na medida em que os nossos economistas convencionais (aqueles que se têm mostrado incapazes de ir além d aprendizagem nos bancos das respectivas universidades) fazem-me lembrar uns hipotéticos geógrafos que soubessem tudo e mais alguma coisa sobre a superfície do planeta (ventos, erosões, correntes marítimas, rios e vales...) mas nada sobre placas tectónicas. Para o caso da economia real, a respectiva «deriva dos continentes» é determinada pela evolução da taxa de lucro real...
Caro Nuno
O paralelismo de base com 1755 está bem escolhido, sim. O sublinhar das duas reacções obscurantistas também.
Faz igualmente sentido destacar depois as diferenças, mas aí, se me permite, o fundamental é: 1755 foi mesmo na origem um fenómeno natural, enquanto o actual terramoto é inteiramente social, "man-made". O que só agrava o problema associado ao obscurantismo das reacções, claro.
Quanto ao diagnóstico e às soluções, desculpe lá, mas "uma governação económica europeia que dote o BCE de plenos poderes"... bom, que fizesse dele emprestador de última instância, decerto que sim... mas "plenos poderes" só mesmo para um órgão democraticamente eleito, que teria obviamente de ser nesse caso o PE, do qual a CE e o BCE passariam a ficar dependentes.
Como isso constitui obviamente uma ponte muitíssimo longe demais, a questão transforma-se portanto numa outra, algo diversa: porquê não referir a outra via de saída, isto é, a saída mesmo...
Suponho que também não é aceitável responder "com a resignação e o silêncio" quanto a essa eventualidade, não concorda?
Tudo do melhor.
Caro João Carlos Graça,
Agradeço o comentário, com o qual estou inteiramente de acordo. Na formulação breve relativa ao BCE, no sentido de que assuma «plenos poderes» não ficou de facto clara a ideia de que isso implica a ideia de «emprestador de última instância» e, sobretudo, a ideia de que ele passe a ser encarado como um instrumento, ao serviço da democracia europeia, implicado numa intervenção com significado profundo na resolução da crise.
E é igualmente certo que estava a pensar sobretudo no quadro de uma solução de não desagregação (mantendo todas as freguesias na cidade, para aludir à metáfora :-). Mas, sem dúvida, é irresponsável colocar o cenário da saída do euro fora dos cenários (sempre o foi, mas cada vez mais o é, à medida que o tempo passa). Devemos aliás ponderar cada vez mais sobre ele.
Um abraço!
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