João Galamba, uma das pessoas que costumo ler com mais atenção na blogosfera, escreveu: «Por exemplo, João Rodrigues, do Ladrões de Bicicletas, sugere que o crescimento desmesurado do sector financeiro constitui uma espécie de usurpação da capacidade produtiva do trabalho pelo capital». Nunca defendi tal coisa e não é por acaso que João Galamba não se refere a algo que eu tenha escrito em concreto. Enfim, acho que isto é apenas o ponto de partida para uma simplificação e distorção que servem para construir uma reflexão genérica muito fácil sobre como as coisas são sempre mais complicadas do que os simplismos que «os outros» supostamente subscrevem.
Luta de classes? Lutas de classes e de fracções de classe. Certamente. Com a ironia da razão crítica exemplificada por
Medeiros Ferreira e como
motor da transformação das instituições da economia, motor que aliás nunca é neutro, para usar os termos de Joseph Raz, nos seus efeitos e na sua estratégia de justificação. Isto pressupõe a valorização da luta das ideias e o reconhecimento de que o futuro está sempre mais em aberto do que os deterministas de todos os partidos pensam.
Reabilitar Marx? Não se reabilita o que nunca se esqueceu. Mas Marx há muitos e isso já pode ser um bom ponto de partida. Ao contrário do que possa pensar João Galamba, eu acho que pode ser melhor deixar a teoria do valor-trabalho e as essências reprimidas em paz e sossego. Nenhuma análise dos capitalismos aqui feita depende delas.
Cruzar Marx com Keynes ou com Polanyi é o que eu e muitos outros aqui propomos. Talvez isto seja útil para pensarmos em alternativas. Institucionalismo radical é um dos nomes deste pensamento socioeconómico e político forçosamente eclético. Permite-nos compreender as variedades do capitalismo em mutação, primeiro passo para pensarmos os socialismos possíveis como processo, sublinho a ideia de processo, de socialização e democratização da economia que, como afirma
Jorge Bateira, reconhece a necessidade da pluralidade e da plasticidade institucionais.
Não percebo o que é que isto tem de naturalização do que quer que seja. Acho aliás incrível que se possa afirmar que o que aqui se escreve pressupõe um regresso a um qualquer estado natural em economia. Além disso, recuso de forma simétrica o simplismo institucional do neoliberalismo e do socialismo de planificação central. Utopias que temos de evitar a todo o custo. São as lições da história.
Outra lição importante passa por perceber que o neoliberalismo não é simplesmente um «erro» ou um «desvio», mas sim um projecto intelectual robusto, simultaneamente utópico e pragmático, que forneceu às elites em dificuldades uma caixa de ferramentas para reformar o capitalismo em crise numa certa direcção que devemos poder criticar.
Aqui não se tem escrito sobre outra coisa. Acho que o diagnóstico que João Galamba faz da crise dos anos setenta é demasiado tributário da narrativa neoliberal sobre os supostos falhanços da esquerda. Aliás, João Galamba nem sequer justifica esta parte da sua curiosa avaliação. Vejam o que escrevemos
aqui ou
aqui sobre isto.
A relação entre a financeirização do capitalismo, que pressupõe o reconhecimento de que temos de falar de lógicas (no plural) dos capitais (à Keynes e à Marx da distinção entre D-M-D’ e D-D’), a instabilidade financeira, a repressão salarial e o sobreendividamento, é hoje aceite por muitos à esquerda e à direita. Fez sempre parte da minoritária, mas combativa, tradição económica radical que criticou o predomínio da especulação sobre a empresa associado à hegemonia dos mercados financeiros liberalizados. Há discussões estimulantes sobre o que é que origina o quê, claro. Mais uma vez tudo se joga na política económica e nos arranjos da economia. João Galamba recusa esta discussão, mas parece não resistir a tirar conclusões (baseadas em quê?) sobre as impossibilidades do pleno emprego ou de uma distribuição mais equitativa dos ganhos de produtividade. O que causa o desemprego? Será a «rigidez do mercado de trabalho» ou os défices de procura?
É claro que podemos sempre experimentar a interacção perversa entre sobreprodução, deflação e sobreendividamento num contexto de degradação institucionalmente imposta das condições de trabalho, que só pode gerar desemprego e sofrimento. João Galamba parece imaginar que só se pode pensar nestes processos com um quadro «marxista» simples – proletariado e burguesia.
João Galamba está errado. E o crédito nem sequer é a exploração do trabalho por outros meios...
Enfim, João Galamba parece esquecer, como muito a gente à esquerda, que os neoliberais agiram, sobretudo quando tiveram poder, como se reconhecessem a
intuição fundamental de Kalecki sobre os efeitos políticos do pleno emprego e do aumento da margem de manobra do poder político democrático. Aqui está uma das questões centrais que o diagnóstico de João Galamba não enfrenta.
De resto, não podemos perder de vista a difícil distinção, que
John O’Neill nos ensina a manter, entre derrota política, questão de poder, e derrota intelectual, questão de verdade e de validade. A esquerda socialista transformadora que me interessa perdeu e falhou e ganhou e acertou. E aprendeu, reviu, manteve e insistiu. Será sempre assim. Nunca se desiste.
As origens intelectuais do absoluto vazio programático de certa esquerda, escandalosamente visível em tempos de crise, passam por esta ter esquecido os materiais da economia substantiva e a distinção acima referida. A «
obsoleta mentalidade de mercado» que dominou a social-democracia secou as fontes intelectuais da imaginação institucional na economia que é hoje tão necessária para um projecto de igualdade complexa (à Michael Walzer, já lá irei...) que tem de estar assente na melhor evidência disponível.