sábado, 21 de junho de 2008

A UE em versão para crianças

"Para nós, 26 é igual a zero. Só 27 ratificações nos interessam", diz José Sócrates sobre a crise aberta com a vitória do Não no referendo Irlandês. Como se se tratasse de algo mais do que um truísmo. A verdade é que qualquer revisão ao Tratado da UE só pode entrar em vigor com a concordância dos 27 Estados-Membros. O que é normal. A UE não é uma federação de Estados e muito menos uma organização baseada na vontade da maioria da população europeia. É um misto de uma organização intergovernamental e de uma união económica com poderes supranacionais. É uma instituição baseada numa «regulação assimétrica», em que a forma de tomar decisões foi cuidadosamente estabelecida de forma a garantir uma trajectória impecavelmente liberal.

Se alguém se atrevesse a propor o controlo da movimentação de capitais, um imposto sobre os lucros, ou direitos laborais mínimos à escala europeia, tal estaria dependente do acordo dos 27 (nem que fosse o Luxemburgo, com menos de 0,5% da população da UE, a opor-se, a proposta não passaria). Ou seja, para tornar a UE mais social, 26 é mesmo igual a zero. Pelo contrário, para decidir sobre o nível das taxas de juro ou para aplicar os princípios da total liberalização das trocas no seio da UE, as instituições supranacionais (BCE e Comissão Europeia) decidem por si - mesmo que o façam contra a posição assumida pela generalidade dos representantes dos Estados-Membros. Estas são as regras estabelecidas, que fazem da UE uma instituição profundamente anti-democrática e um 'cavalo de Troia da globalização neoliberal', como assinalou o economista Francês Jean-Paul Fitoussi.

Uma das formas de blindar este estado de coisas foi garantir que nunca tal arquitectura poderia ser mudada a não ser com o acordo unânime dos Estados-Membros. É, pois, ridículo afirmar que 3 milhões de irlandeses não têm legitimidade para inviabilizar um projecto que foi aprovado por 26 países. No quadro actual da UE, legitimidade é o que não lhes falta.

A pressão que será feita nos próximos meses sobre os cidadão irlandeses para que aprovem à força o Tratado é tão vergonhosa quanto o défice democrático que tem caracterizado a UE (e sem o qual dificilmente se conseguiria impôr aos europeus a deriva liberal que a UE protagoniza). É quase tão vergonhosa quanto a insistência por parte dos líderes políticos europeus em tratar os cidadãos dos seus países como se fossem crianças, cada vez que se fala da UE.

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