domingo, 15 de junho de 2008

As esquerdas, os equívocos e o povo

Já foi comentado neste blogue o artigo de Vital Moreira no Público chamado «Equívocos à esquerda».

A argumentação de Vital Moreira sobre a impossibilidade de coligações (ou acordos de incidência parlamentar, outra possibilidade não considerada pelo articulista...) entre o PS e os partidos à sua esquerda assenta em quatro equívocos fundamentais.

Primeiro, esta ideia de que as esquerdas podem e devem tentar entender-se para uma solução de governo estável, caso o PS não tenha maioria absoluta, não é uma ideia peregrina agora defendida por Manuel Alegre. Não, foi subscrita por vários notáveis (Alberto Martins, Manuel Maria Carrilho, Vera Jardim, Maria de Belém Roseira e vários outros que apoiaram Alegre) do partido, em 2004, nas célebres primárias que opuseram Alegre, João Soares e Sócrates.

Segundo, a ideia de que as distâncias entre o PS e os partidos à sua esquerda, nomeadamente em matéria de política europeia, inviabilizariam tal entendimento não resiste a uma pequena análise comparativa. Por exemplo, todos nos lembramos que metade do PS francês defendeu o não à Constituição Europeia e o partido não só sobreviveu como esteve quase a ganhar as presidenciais de 2007. . . Mais, o europeísmo céptico (ou crítico) à esquerda do PS não será, pelo menos nalguns casos, muito diferente do que existe no PCF, na Izquierda Unida ou na Rifondazione Comunista. Ora qualquer destes partidos já se coligou (ou fez acordos) com os equivalentes do PS nesses países. . . E quando vemos o PS calado perante a recente orientação da Comissão Europeia de estender o horário de trabalho semanal até um máximo de 65 horas (Público, 11/6/2008), ficamos com a ideia de que, secalhar, o partido precisa mesmo de algum europeísmo céptico. . .
Recorde-se que, sobre esta orientação da Comissão, o PSOE afirmou que estamos perante um regresso ao século XIX. . . Ele há socialistas e socialistas. . .

Terceiro, a argumentação de Moreira é tão antiga como o próprio sistema político português da era democrática e tem levado, na prática, àquilo que eu chamei o "enviesamento de direita do sistema partidário português" (sobre esta matéria veja-se também o recente livro de Carlos Jalali sobre os partidos portugueses): historicamente o PS entendeu-se sempre com a direita, e nunca com a esquerda, para soluções de governo. Não será tempo de mudar essa sina?

Quarto, numa democracia, o povo tem a última palavra nas eleições. E, portanto, se, primeiro, nessas eleições os eleitores reforçarem significativamente os partidos à esquerda do PS; segundo, retirarem a maioria absoluta a este último; terceiro, deixarem a direita ao nível a que tem estado, nomeadamente inviabilizando a solução PS-CDS, ficará muito difícil para o PS não tentar entender-se com a sua esquerda. . . É que os entendimentos à esquerda podem ser difícieis, ninguém o nega. Mas não podem nunca ser o ponto de partida, como defende Moreira. Outro independente, como eu, o jornalista José Carlos de Vasconcelos explica muito bem e claramente quais são as condições mínimas para um entendimento à esquerda ("Pode a esquerda entender-se?", Visão, 12/6/08, p. 42). Mas elas não só não têm nada que ver com os argumentos de Vital Moreira como são perfeitamente ultrapassáveis (assim haja vontade política e o povo aponte com clareza nesse sentido).

6 comentários:

Eduardo Barroco de Melo disse...

Não concordo com Vital Moreira. Penso que o entendimento à esquerda é difícil mas possível, principalmente com o BE. Mas devo dizer que há algo neste "post" que não corresponde à realidade: relativamente à nova orientação da Comissão Europeia, o PS votou contra e não implementará essa medida em Portugal. Parece-me que perante isso não se poderá dizer que se calou...

Pedro Sá disse...

Qualquer socialista no seu perfeito juízo não pode desejar qualquer tipo de entendimentos com partidos que defendem modelos não democráticos de sociedade. Ponto.

Anónimo disse...

O que é um "modelo não democrático de sociedade" ? O facto de um partido prometer, em eleições, e depois de ganhar as ditas eleições, despejar essas promessas na sanita ? : Preconiza-Mente-Falha

De qualquer forma, o que define um modelo de sociedade como democrático é a POSSIBILIDADE de ser aceite por maioria. Nem mais nem menos. O modelo de sociedade do Hamas ou do Zimbabwe é tão democrático como o português ou o japonês: É aceite pela maioria da sociedade que o escolhe.

Isto só serve para provar que a democracia não é um sistema perfeito e muito menos imutável. É o melhor que temos por agora. No entanto, acho que não acaba por aqui ...

Anónimo disse...

Também o foram na Alemanha Nazi e na Italia Fascista crocky.

Eduardo Barroco de Melo disse...

Pedro Sá, não concordo. Sou socialista e acho que não é de descartar um entendimento à esquerda. Creio que o BE é neste momento um partido mais democratizado (bem mais que o PCP), falta-lhe perceber que para governar é negociar e não impôr( em tudo). Mas obviamente que o PS deve lutar por maioria absoluta.

João Ricardo Vasconcelos disse...

Concordo com a quase totalidade do post. Nomeadamente com o facto dos resultados eleitorais poderem eventualmente obrigar o PS a um entendimento à esquerda.

Mas, como concordará o autor do post, os resultados eleitorais terão mesmo de obrigar a que tal aconteça. De outro modo, o histórico distanciamento que a esquerda possui entre si continuará a ditar os entendimentos do PS à direita.

É mais do que tempo para mudar esta sina. Mas o André Freire concordará que o fosso existente na esquerda devido ao processo de transição e consolidação da democracia é deveras profundo.

O PS e suas elites afirmaram-se em oposição à esquerda. Não será, portanto, de um dia para o outro que tal factor estrutural desaparecerá.

É uma divisão que pode, deve e que julgo que está a ser ultrapassada aos poucos. Mas é também tão profunda que quase arrisco dizer que só será razoavelmente ultrapassada com a progressiva mudança de gerações nas elites políticas portuguesas, opinion makers incluidos.