terça-feira, 9 de novembro de 2010

Quem compra?

Abominando o regime político chinês, não posso deixar de notar a iminente entrada de grandes empresas chinesas, fundamentalmente estatais, como o Bank of China e a eléctrica China Power Internacional, no capital de empresas portuguesas, fundamentalmente privadas, muitas delas privatizadas porque, já se sabe, privado é sempre bom e público é sempre mau e fim da história.

Ironias da história económica em que não se repara porque furam os romances de mercado que nos puseram no buraco, mas que as elites continuam a consumir. Os bancos chineses são quase todos públicos e o seu sistema financeiro não foi no essencial liberalizado e também foi por isso que a China passou, até agora, incólume pelas crises financeiras.

Será que a Europa e os EUA, apostados no processo de liberalização financeira interna nas últimas décadas e tendo conseguido impô-lo a tantos países, via FMI e Banco Mundial, com os resultados que se conhecem – mais crises e menos crescimento, quando comparados com o período dos chamados trinta gloriosos anos do pós-guerra – terão algo a aprender com a China?

O país que mais cresceu nas últimas décadas nunca seguiu o chamado Consenso de Washington em matéria de regime financeiro e de propriedade. Estranho, não é? Será que se dirá no futuro que a chamada financeirização do capitalismo maduro sabotou as bases da hegemonia do centro da economia mundial?

Publicado no Arrastão

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Não podemos tolerar isto



Via Adeus Lenine, recordei esta fantástica música dos "Manic Street Preachers", muito adequada aos tempos que correm.

A reestruturação da dívida liderada pelos credores


Os juros da dívida soberana continuam a bater recordes. Nada de muito surpreendente quando Merkel e a sua coligação decidem encetar o que é de facto um processo de reestruturação da dívida liderado pelos credores, cuja forte possibilidade foi aqui antecipada pelo RMF. Como argumentámos, este processo não levará necessariamente a uma suspensão de pagamentos. O caminho mais fácil para os credores será o da substituição dos “velhos” títulos de dívida por novos, com ligeiras perdas para quem comanda este processo e fartas comissões para os bancos que o organizarem. Os bancos credores conseguem assim uma limpeza dos seus balanços, com apoio do BCE, sem grandes perdas. Os Estados, por outro lado, seriam colocados sob a direcção do FMI, a capa do eixo franco-alemão, na prossecução da sua política orçamental para, assim, garantir o pagamento da nova dívida. Juntaremos austeridade à austeridade, recessão à recessão.

Ética do serviço público

Saúdo Paquete de Oliveira por ter dado voz a uma iniciativa cidadã pelo pluralismo no debate económico. O programa, que passou no último fim-de-semana, pode ser visto aqui.

Entretanto, descobri um trabalho interessante, feito por dois economistas do muito recomendável Political Economy Research Institute, sobre a relação cúmplice entre a análise económica dominante e os interesses do sistema financeiro e sobre as questões éticas que tal cumplicidade levanta. Se a Ordem dos Economistas servisse para alguma coisa, que não serve, poderia debater e escrutinar estas coisas.

Enfim, o trabalho de investigação é sobre os EUA, mas poderia sem dificuldade ser transposto para Portugal. Quase todos os economistas de televisão têm ligações ao sistema financeiro. Os telespectadores deveriam ser, pelo menos, informados deste facto.

Por exemplo, a RTP2 tem agora, à quinta-feira, Bento e Bessa como comentadores permanentes. Este estado de coisas já não se explica pela incompetência ou pela ignorância: a opinião pública é para ser trabalhada. Este trabalho ideológico só está garantido se o debate se cingir a quem defende cortes salariais, desregulamentação das relações laborais e privatizações e a quem defende privatizações, desregulamentação das relações laborais e cortes salariais. A denúncia feita pelo provedor do telespectador foi muito importante.

domingo, 7 de novembro de 2010

Contra os economistas austeritários

“De tudo o que se lê, ouve ou se tevê, fica a impressão de que Portugal seria governado por génios caso não houvesse eleições...”

José Medeiros Ferreira

Não se trata tanto de prescindir de eleições, mas sim de anular os seus efeitos, garantindo a adopção de políticas que dificilmente seriam aprovadas numa disputa democrática. É por isso que os génios da economia suspiram pelo FMI. Na realidade, hoje o FMI limita-se a dar cobertura à União Europeia, ou seja, ao eixo franco-alemão que comanda o fundo europeu. Muito conveniente politicamente para impor as chamadas “reformas estruturais”, de que fala o economista Pedro Santa-Clara (PS-C), detentor da cátedra Millenium-BCP de finança da Nova, um dos que anseiam pelo FMI, no Público de ontem. PS-C nem sequer apresenta ou defende as tais “reformas estruturais”. Não é preciso. Basta referir Borges e Blanchard do FMI. É o famoso argumento de autoridade.

As inanidades interesseiras do primeiro sobre o sistema financeiro são conhecidas e o Jorge Bateira já as escrutinou. Os resultados da sua vitória estão no gráfico: passagem de um sistema financeiro administrado para um sistema financeiro liberalizado igual a recomeço das crises financeiras. Uma maravilha da melhor economia ortodoxa. O segundo, que já aqui critiquei, defende cortes salariais profundos em Portugal, um país onde o salário mediano é pouco superior a 700 euros e onde a evolução dos salários reais tem estado, a custo, alinhada com a evolução da produtividade, não contando com as abismais desigualdades salariais que tornam isto enganador.

É para assegurar os cortes salariais continuados que serve a fraudulenta retórica da rigidez do mercado de trabalho: medo, desigualdades e maior poder patronal para transferir custos sociais para os trabalhadores da base. PS-C declara que o FMI anda muito preocupado com o crescimento desde a crise asiática. É verdade que a desastrosa realidade tem alguma força e que o FMI, perante o abismo económico, defendeu uma politica de estímulos para as economias dos seus principais accionistas e até, heresia, sugeriu que os controlos de capitais, que, felizmente, se generalizam, poderiam ter alguma utilidade para os países em desenvolvimento. Sinais contraditórios, como sublinha a economista Ilene Grabel num excelente artigo.

No entanto, não nos deixemos enganar pelos economistas austeritários. A Grécia é invocada. Da Grécia ao Leste Europeu, o FMI tem precisamente ajudado a UE a impor as mesmas receitas de sempre com os mesmos resultados de sempre para os países que não pesam na estrutura accionista do fundo: brutal austeridade assimétrica, desemprego de massas e captura pelo capital financeiro das partes apetecíveis da economia. Nada que já não esteja a ser posto em prática em Portugal com todo o afinco. Mas esta gente nunca está satisfeita. A chamada doutrina do choque quer trancar as conquistas orçamentais da economia do medo para sempre.

Que fazer? Resistir colectivamente, roubar a expressão reformas estruturais e passar à ofensiva à escala europeia e nacional: controlo público dos capitais e do crédito, política industrial, direitos laborais e poder para os sindicatos, maior progressividade fiscal. Há tanto a fazer para civilizar e modernizar a economia.

sábado, 6 de novembro de 2010

Exercitar as liberdades contra a “democracia austeritária”

A Sandra Monteiro ofereceu-nos no último número do Le Monde Diplomatique uma palavra que estava a fazer falta – “austeritário” – e que daqui para a frente passarei a usar sem aspas para manifestar o meu apoio à sua inclusão em nova edição do Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências.

O regime austeritário, “representa uma séria ameaça para o contrato político, económico e social em que se fundamenta a democracia” - escreve Sandra Monteiro – é um estado de emergência económica (e portanto social e política) permanente em que são restringidos ou suspensos os direitos e liberdades – sugiro eu que se acrescente.

O austeritarismo não é um produto da imaginação da Sandra, nem uma qualquer abstracção fantasiosa de um filósofo político. O austeritarismo anda por aí e manifesta-se de modos previsíveis: o Presidente da China vem a Portugal prometer patacas em troca de dívida soberana; para não prejudicar a transacção o Governo Civil procura impedir a Amnistia Internacional de se manifestar no espaço público em defesa dos direitos humanos que lhe compete defender.

Mas o austeritarismo também é um feitiço que se pode voltar contra os feiticeiros. O dirigente da oposição de direita manifesta resistência em apoiar o orçamento recessivo do governo, os juros das dívidas aumentam nesse dia: cala-te Passos Coelho que estás a ficar caro ao país.

O austeritarismo está aí a instalar-se - mais cedo do que tarde farão contas às manifestações e greves, como já fizeram em França, para concluir que o país não pode pagar esses luxos. Como se combate o austeritarismo? Exercitando as liberdades, se necessário for contra todas as interdições que agora são ilegais mas podem vir a tornar-se legais (apesar de ilegítimas).

Alternativas ao "austeritarismo"

“Na verdade, os governos europeus, independentemente da sua cor política, parecem sentir-se mais mandatados para defender os direitos inalienáveis dos mercados do que os dos cidadãos. Com os primeiros têm compromissos sérios, que não podem deixar de honrar; com os segundos têm combinações frouxas, que podem substituir pela imposição de duríssimos sacrifícios (…) O novo regime que está a ser imposto como inevitável na União Europeia, e que bem se pode chamar regime «austeritário», representa uma séria ameaça para o contrato político, económico e social em que se fundamenta a democracia (…) Seja como for, a simples existência de movimentos como a greve geral de 24 de Novembro são fortes sinais de que ainda há, mesmo entre os mais prejudicados pelo regime «austeritário», cidadãos apostados em defender a democracia.”

O artigo da Sandra Monteiro pode ser lido no sítio do Le Monde diplomatique – edição portuguesa. O sumário do número de Novembro pode ser lido aqui. Eu também contribuo para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa deste mês com um artigo sobre a economia política da austeridade. Para para além de denunciar a lógica recessiva e regressiva do orçamento, aponto alguns toques de política que poderiam ter impactos sistémicos favoráveis. Deixei a parte final do artigo no arrastão.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pluralismo no debate

“Por ignorância, preguiça, hábito, desconsideração deliberada ou manifesto servilismo, os canais televisivos têm sistematicamente tratado a análise da crise económica como se o intenso debate quanto aos fundamentos doutrinários e às opções políticas que estão em jogo pura e simplesmente não existisse.”

A petição pelo pluralismo no debate económico, que já recolheu mais de mil assinaturas, deu origem a um bom blogue: pluralismo no debate. A situação no serviço público de televisão, monopolizado pelos economistas do medo, os que defendem a privatização de tudo e cortes recessivos em tudo menos nas suas sinecuras, merece a atenção do Provedor do Telespectador da RTP. Paquete de Oliveira irá dedicar o seu próximo programa precisamente a esta falta de pluralismo. O Programa a “Voz do Cidadão” será emitido na RTP1 no próximo sábado, a partir das 21.00h e no domingo, na RTP2, às 14.45h. Não percam.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Factos políticos

A Reserva Federal vai comprar mais dívida pública norte-americana. Onde é que Ben Bernanke vai buscar o dinheiro? A lado nenhum. Os bancos centrais das zonas monetariamente soberanas criam o dinheiro. Um facto político tão simples que a mente bloqueia, como dizia o grande economista John Kenneth Galbraith. Acompanho Helena Garrido sobre as diferenças entre UE e EUA. Nos EUA não há tantas separações entre política monetária e orçamental. Isto não quer dizer que esta última tenha sido aí, por exemplo mesmo quando comparada com a Alemanha, tão contra-cíclica como se diz.

Vejam também o Japão: um país com uma dívida pública bruta sem precedentes, que representa 227% do seu PIB, consequência da oscilação, que dura há mais de uma década, entre recessão e estagnação, depois do rebentamento de uma bolha imobiliária causada pela liberalização do sistema financeiro. Apesar dessa dívida, o Japão não tem problemas de financiamento, em parte porque tem um banco central que faz o que é tão necessário como escandalosamente simples: detém metade da dívida pública do país, imprimindo moeda para a adquirir e devolvendo os juros ao governo. Os países verdadeiramente soberanos podem fazer coisas semelhantes: do Canadá ao Reino Unido, passando, claro, pelos EUA.

A inflação, a inflação, dirão logo alguns, os mesmos que ainda não repararam no atoleiro em que estão há mais de dois anos. Na Europa, no Japão ou nos EUA, o problema é mesmo o perigo da deflação e os seus efeitos perversos: aumento do fardo real da dívida e destruição da capacidade produtiva. Os EUA estão dispostos a usar, ainda que de forma tímida para a dimensão dos problemas, alguns dos instrumentos de política disponíveis para superar a crise. O grande problema, claro, é que a política orçamental está politicamente bloqueada e o crédito não tem enquadramento público suficiente.

E a UE? Na UE, os tratados separaram explicitamente a política orçamental da política monetária. Uma bizarria que vai custar caro aos cidadãos europeus e, em última instância, ao próprio euro, como sublinha William Mitchell, um excelente economista keynesiano australiano, que sugere, numa análise impecável, e em alternativa, o desmembramento do euro, a criação de uma verdadeira política orçamental europeia, suportada pela política monetária, ou a emigração para a Austrália, dado o inferno económico europeu, em especial nas periferias atingidas pelo desemprego de massas duradouro. A segunda opção é uma impossibilidade política. A primeira e a terceira são as mais prováveis...

Dar confiança aos 'mercados' é o último objectivo

O gráfico ao lado mostra-nos a evolução das taxas de juro da dívida pública de Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda face às da Alemanha. Ele dá-nos uma ideia das dinâmicas em causa algo contrastante com o que nos vendem todos os dias os economistas do regime.

1. A evolução das taxas de juro da dívida soberana de Portugal, Grécia e Irlanda (e da Espanha até Setembro) tem sido paralela. Isto revela que o custo imposto a cada Estado pelos compradores de dívida tem menos a ver com a ‘seriedade dos esforços de consolidação orçamental’ do que com uma multiplicidade de factores menos referidos pelos economistas do regime.

2. Entre esses outros factores destaca-se as posições que vão sendo tomadas ao nível da UE, sendo o peso da Alemanha preponderante. A subida dos juros verificada desde o início de 2010 até Maio é indissociável dos sinais contraditórios que iam sendo dados pelas instituições e governos da UE quanto a uma eventual intervenção conjunta para estancar a especulação financeira em torno da dívida soberana (cada vez que um dirigente político alemão ou do BCE sugeria que não existira apoio europeu, as taxas de juro saltavam). Quando, no início de Maio, foi anunciada a criação de um fundo de estabilização conjunto da UE e do FMI, as taxas de juro caíram abruptamente. Finalmente, quando nos últimos dias de Outubro a Alemanha avançou com a proposta de rever do Tratado da UE para introduzir não apenas a possibilidade de resgate, mas também de reestruturação de dívidas pelos Estados em dificuldades (o que, na prática, significa aumentar o risco de emprestar dinheiro a esse países, qualquer que seja a causa) as taxas de juro voltaram a aumentar. As posições europeias contam. Infelizmente, nem sempre no melhor sentido.

3. Outro dos factores determinantes da evolução das taxas de juro menos considerados pelos eco-comentadores lusitanos diz respeito às perspectivas de evolução económica e social de cada país. O aumento das taxas de juro da dívida grega em meados de Junho esteve associada às fracas perspectivas de desempenho do sector do turismo, em resultado das greves e da instabilidade social decorrente das medidas de austeridade tomadas. O aumento das taxas de juro verificado na Irlanda, em Portugal e na Grécia coincide com a publicação de dados sobre o fraco desempenho económico destes países. Não é difícil antecipar que o desacelerar do crescimento económico nas principais economias da UE (decorrente, por exemplo, de uma valorização do euro face ao dólar ou de uma subida significativa dos preços do petróleo) ou o agravar das tensões sociais (expectável, dado o nível de austeridade que está a ser imposto nos vários países) conduza em breve a novos saltos nas taxas de juro sobre a dívida soberana.

Estes factos permitem-nos perceber qual seria o caminho de saída da crise que se vive: planos de consolidação orçamental faseados, que dessem prioridade no curto prazo ao relançamento das economias e que evitassem o agravar das tensões sociais, apoiados por decisões tomadas ao nível europeu que evitassem o acentuar da incerteza (com reflexos no custos do financiamento). Em suma, o oposto do que está a ser seguido pelas instituições de UE e pelos governos dos Estados Membros.

O objectivo da estratégia seguida começa ser claro para todos: não se trata de dar ‘confiança aos mercados’, mas antes fomentar a redução dos salários e dos direitos sociais através do aumento prolongado do desemprego e da redução dos benefícios sociais. Esta Economia da Idade das Trevas não pode acabar bem.

Tempos de insanidade

Como numa tribo cuja vida colectiva é determinada pelo humor dos deuses, obrigando a pensar na melhor forma de lhes agradar ou de aplacar a sua ira, o debate político-económico tem sido preenchido, entre nós, pela discussão sobre as melhores formas de desencadear uma boa reacção dos mercados e evitar a sua cólera. É isto que justifica os PEC I e II, bem como a austeridade imposta pelo OE de 2011: se fizermos sacrifícios, os mercados ficam contentes e deixam de agravar os juros que pendem sobre a dívida soberana.

A razão de ser das políticas de austeridade que nos tem sido apresentada não recorre, todavia, a estas lógicas metafísicas, mas antes a fundamentos supostamente racionais. Como explicou Durão Barroso, "um país que se endivida tem depois de mostrar que é capaz de pagar as dívidas que tem (...), é importante agora que Portugal faça o que for necessário para restabelecer a confiança, a confiança dos mercados na sua capacidade para consolidar as finanças públicas".

Tudo isto poderia fazer sentido, não fosse o caso de uma evidência e uma perplexidade estragarem a racionalidade que nos tem conduzido, de forma asfixiante, nos últimos tempos.

A evidência reside no facto de, tal como já se tinha tornado claro nos casos da Espanha e da Irlanda, os mercados se borrifarem para sacrifícios. Não é essa, manifestamente, a sua lógica de funcionamento. Como o gráfico ao lado permite demonstrar, os juros da dívida têm subido paulatinamente desde os 4,3% de Março para os 6,3% actuais, indiferentes portanto - nessa trajectória - às duras opções que, como seria suposto, comportam a capacidade de inverter essa subida.

A perplexidade reside em pensar que, se as coisas funcionassem nos termos em que Durão Barroso as coloca, o melhor sinal que um país poderia dar relativamente à sua capacidade para pagar dívidas consistiria em desenhar boas políticas e estratégias, conducentes à revitalização económica e à criação de riqueza. Isto é, políticas capazes de estimular o consumo, o emprego, o crescimento económico e a receita fiscal. Tudo ao arrepio, portanto, das medidas de austeridade que foram recentemente agravadas.

Nos termos da lógica que nos tem guiado, num mundo e num tempo normal, esperar-se-ia que esses novos deuses - os mercados - reagissem pois negativamente a tudo o que tem sido proposto como caminho de saída para a crise.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O que é que os mercados querem?

No Le Monde diplomatique deste mês defendo que tentar desenhar políticas a pensar nos voláteis e especulativos “mercados” é um exercício votado ao fracasso. Os cortes comprimem o mercado interno, o que gera recessão e aumenta o desemprego. Ao prever um crescimento de 0,2%, assente exclusivamente nas exportações, o governo mostra a mesma miopia face ao desastre de que foram vítimas outros governos: por exemplo, na precoce Irlanda previa-se um crescimento de 1% para 2009, no seguimento da austeridade, e acabou-se com uma quebra de 10%.

Enfim, em Portugal pergunta-se de forma cada vez mais obsessiva e subserviente: o que é que os “mercados” querem? Através de Paul Krugman, descobri uma resposta original e arrojada e provavelmente mais próxima da verdade do que as neoliberalices dos Cantigas Esteves desta vida, os que monopolizam a opinião nessa coisa que dá pelo nome de serviço público de televisão: “os mercados querem dinheiro para droga e prostitutas...” A explicação está aqui...

Economia zumbi

Vale a pena ler o artigo de John Quiggin, um dos mais destacados economistas australianos, na Foreign Policy: cinco ideias zumbis que não morrem, mas que contribuem para as crises. Entretanto, podem ler também este artigo do José Castro Caldas num dossiê sobre o orçamento, esse produto da Economia Zumbi...

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Entretanto, para lá da Lapa...


“As reduções no abono de família que se vão sentir já em Novembro deverão afectar sobretudo as famílias de menores recursos e agravar o risco de pobreza infantil, um dos indicadores onde Portugal pior pontua ao nível europeu.”

Raquel Martins

De facto, Portugal, acompanhado pelo Reino Unido ou pelos EUA, países que fazem suspirar os nossos liberais, regista taxas de pobreza infantil anormalmente elevadas, e que irão aumentar, e níveis de mobilidade social muito abaixo da média dos países desenvolvidos que têm Estados sociais mais robustos, financiados com impostos mais progressivos, e mercados mais bem configurados, por exemplo, para reduzir as desigualdades salariais. Também se sabe que quanto mais desiguais são os países, menor é o contributo do crescimento económico para diminuir a pobreza. Pobreza e desigualdade económica não são separáveis, como muitos teimam em pensar.

Enfim, a decência de uma sociedade mede-se primeiramente pela forma como cuida das suas crianças, como assegura a igualização das condições para o florescimento das capacidades que permitem alcançar funcionamentos genuinamente humanos. De outra forma, como garantir que o discurso sobre o mérito tenha alguma adesão à realidade? A decência também se mede pela forma como se reconhecem as – e se cuidam das – nossas múltiplas dependências e vulnerabilidades ao longo da vida. Tudo isto tem a ver com a ética do cuidado e das virtudes cooperativas. É também por isso que um Estado Social universal e com serviços gratuitos para o utente é um ideal precioso, mas cada vez mais distante graças às políticas de austeridade assimétrica.

É reveladora a forma como os economistas da Lapa impõem o reforço da selectividade nas prestações sociais e no acesso com cada vez mais barreiras aos serviços públicos. Isto quando se sabe que é precisamente a sua universalidade que reforça a capacidade redistributiva, a eficácia e a legitimidade política do Estado Social, esteio da confiança, a partir do momento em que a generalidade dos grupos sociais beneficia dos serviços públicos e das prestações sociais. A universalidade diminui os custos administrativos dos programas ou a probabilidade de guetização dos mais pobres e pode ajudar a activar a simpatia, de que fala Adam Smith: a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de imaginarmos o contexto dos seus sofrimentos. Sem miopias ou relativismos morais.

A antropologia económica de Passos Coelho...


... é assombrada por uma figura antropomórfica chamada "Estado”.

“O Estado” só come e dorme. Não produz: nem educação, nem saúde, nem segurança, nem obras públicas... Nada. Em consequência, diz ele, se fizermos “O Estado” passar mal, deixamos de ter de fazer sacrifícios. Nacionalizamos os sacrifícios: transferimos "parte do sacrifício que era pedido às famílias para o próprio Estado". Elementar caro Watson.

Às vezes parece-me que muitas pessoas acreditam mesmo que o Estado é só despesa estúpida e pouco séria (que também existe). Que a educação, a saúde, o apoio aos desempregados, a segurança, as obras públicas, caem do céu.

Não são "os economistas" que gostam de lembrar que os recursos são escassos e que não há almoços grátis? Pois é. No final também somos nós quem vai pagar a dieta do monstro sob a forma de educação e saúde paga e de má qualidade, de desprotecção em caso de desemprego, de infra-estruturas degradadas, de insegurança.

Também me parece que é preciso fazer escolhas: ou serviços públicos custeados com base no princípio a “cada um segundo a sua riqueza e rendimento” , ou serviços privados acessíveis a quem dispõe de dinheiro suficiente.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O nexo finança-fome

Retomando o tema da minha última posta (a relação entre a penetração do capital financeiro e a crise alimentar mundial - ou, de forma sumária, o nexo finança-fome), gostaria agora de acrescentar algumas notas.

A primeira é para assinalar que, aquando da crise de 2008, o Nuno Teles discutiu já este tema nos Ladrões de Bicicletas - aqui, aqui e aqui.

A segunda é para sublinhar que embora também existam causas “reais” para o aumento dos preços mundiais dos alimentos ao longo dos últimos anos, estas não explicam a crise de 2008, nem a que está actualmente iminente. Como mostra o gráfico em cima, no qual está representada a evolução dos preços mundiais do arroz, trigo e milho (em índice), o que está aqui em causa não é meramente o reflexo ou a antecipação de uma qualquer crise “malthusiana”. Se estivéssemos perante um crescente desequilíbrio de longo prazo entre a procura e a oferta reais, correctamente antecipado pelos “mercados”, não haveria motivos razoáveis para o aumento dos preços ter sido tão brusco a partir de 2006-07, nem para estes terem decaído significativamente a partir de meados de 2008. Seria de esperar, isso sim, um aumento mais ou menos constante dos preços, eventualmente seguido da sua estabilização. Ora, aquilo a que assistimos é uma muito significativa tendência de aumento a par de uma forte e crescente volatilidade.

Existem efectivamente factores “reais” que têm tido algum impacto sobre a tendência – e a eles havemos de regressar numa próxima oportunidade. Mas o que explica a maior parte do aumento e da volatilidade nos últimos 4-5 anos é mesmo o afluxo massivo de capital financeiro com intenções especulativas. Como explica Jayati Ghosh neste artigo, esse afluxo deveu-se a um movimento, de proporções gigantescas, em busca de posições em activos baseados em mercadorias como o ouro ou os produtos alimentares, no contexto do rebentamento de bolhas especulativas em sectores como o imobiliário. Por sua vez, a queda dos preços no final de 2008 deveu-se à necessidade de muitos destes investidores aumentarem os seus níveis de liquidez para fazer face às perdas ocorridas no auge da crise financeira. E voltamos agora a assistir à recuperação em pleno da tendência de aumento dos preços (e à iminência de crises de insegurança alimentar), à medida que estes investidores restabelecem progressivamente as suas posições, beneficiando das gigantescas injecções de liquidez que os bancos centrais proporcionaram ao sistema financeiro. Na ausência de novas regras, o crédito concedido não está a financiar a recuperação económica, mas sim a voltar a alimentar a especulação financeira.

Como também explica Ghosh no artigo referido em cima, para tudo isto contribuiu sobremaneira a Lei da Modernização dos Contratos de Futuros sobre Mercadorias, introduzida em 2000 nos EUA (onde se situa o epicentro do mercado mundial de produtos alimentares). Ao abolir os limites quantitativos sobre os contratos de futuros sobre mercadorias, permitir a entrada no mercado por parte de compradores e vendedores sem qualquer relação com a oferta e procura “reais” e eliminar todos os requisitos em matéria de supervisão, esta Lei veio na prática criar uma gigantesca e volátil procura “fictícia” no mercado de futuros – que se reflecte prontamente nos preços do mercado “spot” (aos quais estão sujeitos os vendedores e compradores “reais” de alimentos).

Desregulação, especulação, aumento e volatilidade dos preços dos alimentos. A fome é política.

O orçamento servia para acalmar os mercados, não era?

Hoje de manhã os juros da dívida soberana portuguesa estavam a baixar. O Jornal de Negócios garantia que isso era consequência do acordo PS-PSD. Agora estão a subir passando a barreira dos 6%. O Jornal de Negócios garante que “a subida dos ‘yelds’ está ser acompanhada de um aumento da percepção de risco sobre o país”. Em que ficamos, o orçamento cria confiança ou aumenta a percepção de risco e … os juros?

O novo gestor do FMI para a Europa

António Borges (AB), economista neo-liberal e defensor das políticas de "choque e terror", acaba de ser nomeado para o cargo de director do departamento europeu do Fundo Monetário Internacional. A escolha é consistente com a doutrina do Consenso de Washington que o FMI aplica há dezenas de anos por esse mundo fora com os resultados que se conhecem.

Não vá alguém ter dúvidas sobre a actual orientação do FMI sob a presidência de um destacado membro do partido socialista francês (Dominique Strauss-Khan), AB veio dizer-nos o que pensa sobre o papel do sistema financeiro na presente crise. Numa conferência intitulada "Reformar o Sistema Financeiro", realizada na passada semana na Fundação Calouste Gulbenkian (notícia do Expresso-Economia, p. 29), AB afirmou:

"a missão principal do sistema financeiro não é apenas canalizar poupança para investimento, essa é apenas a ponta do icebergue. Deve ser permitido aos investidores exercerem o seu poder nas empresas, o que muitas vezes só acontece através do mercado, e a sua acção deve ser mais forte e incisiva para que não se voltem a cometer os erros do passado."

Logo na primeira frase, ficamos a saber que a poupança dos agentes económicos encaminhada para o crédito à economia "é apenas a ponta do icebergue". O resto, o "corpo do icebergue", é encaminhado para aplicações financeiras à margem, e frequentemente em prejuízo, da provisão de bens e serviços de que necessitamos. É esta esfera financeira que preocupa AB a ponto de discretamente sugerir que, se pudesse ter uma acção "mais forte e mais incisiva", esse capital especulativo teria impedido a ocorrência dos "erros do passado".

AB não diz a que "erros" se refere. Os de Jardim Gonçalves e sua trupe da Opus Dei no BCP? Os do BPN e BPP? Os de Madoff e outros? Os "erros" dos gestores que nos EUA concederam crédito a quem não tinha rendimentos? Percebe-se a intenção. AB refaz a história da crise procurando reabilitar a finança especuladora sob pretexto de que esta desempenha uma função socialmente útil. Assim, com grande desfaçatez, AB apresenta a crise do ponto de vista que convém aos interesses que defende. Vejamos.

AB deixa implícito que a crise foi causada por erros de gestão e pela actuação de indivíduos de mau carácter. Na realidade, AB está a ocultar a causalidade central: o excesso de liquidez dos países com excedentes na balança de transacções correntes foi (financeiramente) aplicado nos países onde a crise rebentou. O sobreendividamento dos EUA e da periferia da Europa foi a contrapartida das aplicações financeiras dos bancos da China e da Alemanha. Todos conhecemos a força de persuasão do "marketing" que os bancos portugueses mobilizaram para que as famílias se endividassem, quer dizer, utilizassem a poupança dos segmentos sociais mais favorecidos da Alemanha. Esta dimensão estrutural da crise é ocultada pela retórica da "individualização" das causas da crise e a retórica simplista do "despesismo".

AB e os seus amigos da Bolsa revelam um enorme descaramento ao virem agora dizer que a especulação financeira é socialmente útil. Querem fazer-nos esquecer que este capitalismo financeiro é intrinsecamente gerador de crises porque baseado numa dinâmica de efeitos amplificadores, geradores de "bolhas" que, em dado momento e sob a acção de um qualquer factor externo, fatalmente explodem.

Opondo-se a AB e seus amigos da bolsa, acertadamente diz Friedhelm Hengsbach, Jesuíta e Professor Emeritus de Economia e Ética em Frankfurt:

"[No capitalismo financeiro Anglo-Americano] Os gestores trabalham exclusivamente para o interesse dos accionistas e, portanto, baseiam a suas decisões (e o seu salário) nas cotações da bolsa que supostamente traduzem o valor da empresa. Os interesses dos trabalhadores, dos clientes, da administração local e organismos do estado são vistos como secundários. ... Tem bom fundamento a suspeição com que os cidadãos vêm a colaboração entre governo e elites financeiras."

A tal conferência em que AB discursou tinha o seguinte subtítulo: "O que sabemos e o que podemos esperar". Do centrão português (PS+PSD) já sabemos o que podemos esperar. De uma esquerda preparada para governar deve esperar-se uma política que foi bem resumida por um economista insuspeito de esquerdismo: "É preferível sobre-regulamentar de imediato [o sistema financeiro] e, depois, corrigir os erros, do que arriscar uma nova era de mercados financeiros, instrumentos e instituições auto-regulados e suavemente sub-supervisionados."

Amanhã há um debate sem muros

"Lançamento de livro A Economia Sem Muros, 2 de Novembro de 2010, 18h30, CES-Lisboa, Picoas Plaza, Rua Tomás Ribeiro, 65.

Um diálogo com Vítor Neves, José Castro Caldas (coordenadores do livro) e Pedro Lains (Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa).

A economia é um mecanismo dotado de leis naturais que não devem ser transgredidas, ou a economia é uma construção social e política? A economia é um assunto apenas para economistas, ou deve dizer respeito a todos?

A Economia Sem Muros, livro recentemente publicado na colecção CES-Almedina, reunindo contribuições de investigadores com diversas proveniências disciplinares, interroga-se quanto à natureza da economia e do conhecimento económico. São 'velhas' questões, mas que continuam actuais e sem uma resposta consensual. A Economia Sem Muros pretende precisamente contribuir para clarificar os termos do debate. Um debate para o qual todos estão convidados."

domingo, 31 de outubro de 2010

Orçamento à Lapa

PS e PSD chegaram a acordo, como se sabia desde sempre. A encenação não enganou ninguém. A austeridade ficou apenas um pouco mais assimétrica. Os 390 milhões de euros para os injustos benefícios fiscais dirigidos às chamadas “classes médias” terão de ser compensados com mais cortes, provavelmente nas despesas sociais. No entanto, isto são detalhes. O mais importante já era conhecido: um orçamento para cortar salários, directos e indirectos, um orçamento gerador de desemprego e de recessão. Uma desgraça. Um orçamento com assinatura na casa de Eduardo Catroga à Lapa, com direito a exibição em telemóvel, vincando, também simbolicamente, a submissão do PS aos interesses que contam.

Publicado no Arrastão

Na política portuguesa, não há mesmo vida para além do défice

«Ambas as delegações convergiram na necessidade de, a par da sustentabilidade das finanças públicas, reforçar e aprofundar as acções estruturais em curso para a melhoria contínua da produtividade e da competitividade, tendo em vista o aumento do potencial de crescimento da economia, na medida em que consideram ser esta a grande questão estratégica da economia portuguesa.» Termina assim o texto do acordo entre o PS e o PSD para viabilizar o orçamento.

Já nos habituámos a ver os partidos do arco governamental e os economistas do regime jurarem que o problema da economia portuguesa está no seu potencial de crescimento. Esta é a grande questão, dizem, e é aí que devem centrar-se as atenções.

Mas alguém sabe o que pensam os principais partidos sobre o assunto e em que é que divergem? Por exemplo, será que convergem no diagnóstico sobre o peso relativo dos principais constrangimentos que impedem o crescimento da produtividade - qualificações de trabalhadores e empresários, níveis de investimento em inovação tecnológica ou em factores imateriais de competitividade, práticas organizacionais, posicionamento das empresas nacionais nas cadeias internacionais de valor, estrutura e dimensão de empresas, mercado de trabalho, níveis de fiscalidade, custos de bens e serviços intermédios de natureza transversal (e.g., energia, telecomunicações, gás), infraestruturas de transporte e de logística, ordenamento do território, etc.?

E será que concordam nas estratégias a prosseguir para ultrapassar esses constrangimentos - a título de exemplo, privilegiar o desenvolvimento das maiores empresas nacionais (EDP, Galp, PT, construtoras, etc.), mesmo que tal implique custos acrescidos de bens e serviços no tecido económico português? Apostar no desenvolvimento de sectores específicos (e.g., energias alternativas, tecnologias de informação, tecnologias da saúde) ou tentar que a presença do Estado seja tão neutra quanto possível? Continuar a investir no sistema científico e na formação de doutorados, ou fazer depender esse investimento da sua relevância para as empresas? Alargar a base territorial da competitividade da economia portuguesa, ou reforçar as dinâmicas de aglomeração?

E qual o papel que julgam ter os vários instrumentos de política pública na prossecução dos objectivos (e.g., benefícios fiscais, subsídios às empresas, compras públicas, regulação da concorrência)?

PS, PSD e economistas do regime falam do 'problema da produtividade' como se fossem óbvias para todos as origens do problema, as estratégias para o resolver e as medidas concretas a pôr em prática. Não o são. E a incapacidade que revelam na discussão específica destas questões são um dos sinais mais significativos da mediocridade do debate político-económico neste país.

sábado, 30 de outubro de 2010

De Wall Street à periferia de Maputo


Dos protestos populares que tiveram lugar nos bairros da periferia de Maputo no início de Setembro, a opinião pública portuguesa, mesmo a mais informada, ter-se-á apercebido apenas de um reduzido número de elementos: a causa da insatisfação generalizada (o aumento dos preços do arroz, pão e outros bens essenciais); a intensidade dos protestos e a violência da repressão policial subsequente (que causou 13 mortos e centenas de feridos); e o desfecho, desta feita favorável às pretensões dos manifestantes (o anúncio, por parte do governo moçambicano, de 25 medidas visando reduzir o custo de vida, entre as quais o congelamento do preço dos produtos alimentares em causa).

Difíceis ou impossíveis de descortinar por entre a espuma dos dias, tal como habitualmente veiculada pela maior parte da comunicação social, foram os factores estruturais subjacentes a este episódio. E estes foram, e são, de diversa ordem. Paulo Granjo, num excelente artigo na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique (Outubro), chama a atenção para um dos aspectos da questão: o cisma entre a maior parte da população moçambicana e a classe política. Uma crise de representatividade no contexto de uma economia e de uma sociedade crescentemente duais, em que o progressivo desmantelamento das estruturas de solidariedade comunitárias e tradicionais não se tem feito acompanhar pelo preenchimento, por parte do Estado “moderno”, das funções sociais que dele são esperadas.

Porém, o facto da cadeia ter quebrado precisamente pelo elo dos preços dos produtos alimentares, tem, ele próprio, causas estruturais mais amplas. Recuemos no tempo até 2008, àquela que foi uma crise alimentar mundial de proporções inusitadas – por mais que tal possa ter passado em grande medida despercebido nos países do ‘Norte’. Nessa altura, o aumento dos preços dos alimentos reflectiu-se, por exemplo, no facto do índice de preços alimentares da FAO - um índice compósito que incorpora os preços internacionais dos cereais, arroz, açúcar, óleos e gorduras, leite e derivados e carne – ter quase duplicado face ao valor de 2003-2004. Entre as consequências, um acréscimo em mais de 150 milhões no número de pessoas em situação de fome a nível mundial, para além de protestos ou motins em mais de 30 países - como recorda este artigo do The Guardian.

Ora, após um período de relativa acalmia, estamos novamente perante a iminência de uma nova crise mundial dos preços dos alimentos - de que os tumultos de Maputo terão constituído um dos primeiros sintomas. O índice da FAO está já muito próximo do nível de 2008 e são já muitas as vozes que alertam para o perigo iminente e para as suas potenciais consequências.

Tanto em 2008 como agora, quais as causas destes aumentos dos preços dos alimentos? Johnston e Bragawi, do Centre for Development Policy Research de Londres, enumeram-nas neste resumo de um simpósio sobre o tema. Algumas são conjunturais: choques climáticos, como secas ou inundações. Mas as principais são de natureza estrutural. Falarei de algumas delas em próximas postas. Para já, assinalo apenas que, em lugar de destaque, surge a crescente entrada de fundos especulativos no mercado internacional dos produtos alimentares. Muito longe de contribuir para qualquer suposta “eficiência” na determinação dos preços, neste como noutros mercados, a combinação de açambarcamento e especulação associada à penetração do capital financeiro tem, nesta como em muitas outras áreas, consequências sociais e humanas devastadoras. Da ganância bolsista ao desespero nas periferias do Sul, vai apenas um passo: o descontrolo e desregulação dos mercados.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Começar pelos Fins

A Assembleia aprovou hoje na generalidade um projecto no sentido da elaboração de um Orçamento de Base Zero (OBZ) no ano de 2012. Este projecto terá, tudo indica, um trajecto difícil para chegar à aprovação final, mas representa um sinal positivo nos termos do debate sobre despesa em Portugal.

Infelizmente, o debate sobre despesa tem sido, desde sempre, marcado por um discurso que trata todos os gastos do Estado como sendo basicamente dinheiro deitado à rua e atrás do qual se escondem as mais várias agendas. Assim, despesa social, investimento público, contratos ruinosos, os salários da função pública ou as redes clientelares dos partidos, tudo é corrido pela mesma grelha de análise do "Estado gordo".

A opacidade dos orçamentos, obviamente, não ajuda. Muitas das dotações dos quadros orçamentais não têm nenhuma desagregação ou descrição que as torne inteligíveis. Por exemplo, só no conjunto das rubricas "outros" dos vários Ministérios, somam-se quase mil milhões de euros. Até pode ser despesa muito importante, mas o que sabemos é que não sabemos.

Talvez a primeira explicação sobre o OBZ deva incidir sobre o que o OBZ não é. O OBZ não resolve o problema das escolhas sobre políticas orçamentais. Nem deve. O OBZ não exime quem apresenta um Orçamento de fazer toda a despesa que decorre da aplicação da lei ou de obrigações contratuais. Nem pode. O OBZ permite apenas uma maior clareza nas escolhas, uma melhor adequação dos recursos às políticas e uma maior transparência na execução.

O método actual (o que alguns chamam o orçamento incremental) consiste na prática na definição de grande parte das áreas da despesa a partir dos dados da execução orçamental do exercício anterior. Até parece fazer sentido. Mas tem um problema. Como não temos garantias de que a execução do ano anterior foi eficiente, este método tende a reproduzir, eternizar, e até promover os factores de ineficiência.

Nos últimos anos, têm-se multiplicado os exemplos de serviços que, no final do ano, aumentam a despesa de forma a esgotar a verba de que dispunham. A lógica é, portanto, a do Benefício ao Infractor. Se os serviços que poupam e conseguem uma redução da despesa em relação ao orçamentado são penalizados no orçamento posterior e os cortes, quando a coisa aperta, tocam a todos, independentemente do seu desempenho, que incentivo existe para promover a eficiência na administração pública?

Esta metodologia existe porque é mais simples, mas também porque dá ao Governo mais margem de manobra para gerir dotações misteriosas. O OBZ, pelo contrário, é mais complicado e até dispendioso (o que desaconselha a sua utilização contínua) mas permite fazer um reset da estrutura da despesa, fora dos compromissos legais e contratuais.

O levantamento de necessidades, a especificação e justificação detalhada das despesas não nos garante, obviamente, que serão feitas as melhores escolhas de política económica. Basta ver o discurso dos liberais, que dizem que em tempo de crise, com contracção do investimento privado, também não pode haver investimento público.

Mas tem o mérito de obrigar o Governo (e toda a oposição) a explicar do que falam quando falam de despesa. E, se todos compreendermos isso, talvez possamos ter um debate mais inteligente e menos populista sobre o que é a despesa pública e qual o seu papel na retoma económica.

Isto não se vê na TV



Mark Blyth é um dos meus economistas políticos preferidos ou não fosse ele um dos principais autores neo-polanyianos. A economia não vem com uma ficha de instruções em anexo, como costuma dizer. Este vídeo explica a crise com uma clareza impar, começando com os balanços financeiros, como eu aqui tenho tentado fazer, sem moralismos, e termina com uma crítica à austeridade assimétrica e à loucura económica em que entrámos. Tudo em pouco mais de cinco minutos. É pena não ter legendas porque isto não se vê na TV. Quem se oferece para as colocar?

Mais algumas notas sobre política industrial

No Vias de Facto, através do Zé Neves e do Miguel Madeira, a discussão à volta da política industrial tem continuado. Uma discussão bem oportuna nos tempos que correm. De forma esquemática, queria responder a alguns dos seus pontos.

1- O Miguel Madeira chama a atenção para a forma como a política industrial foi conduzida na Coreia do Sul e no Japão, beneficiando grandes conglomerados industriais, os chaebols e keiretsu, respectivamente. É verdade que assim foi, mas parece-me muito limitado olhar só para estes dois casos de sucesso. A política industrial continua a ser seguida por muitos países, dos EUA à Dinamarca. As suas configurações são muito diversificadas e plásticas, no que toca à propriedade e aos arranjos de classe que lhe são subjacentes. Através do que aqui escrevi antes, penso ser bem claro o modelo que favoreço: por um lado, empresas públicas, onde a participação dos trabalhadores não seja um mero simulacro e onde a avaliação de projectos e resultados possa ser escrutinado por todos; por outro, políticas públicas (por exemplo, de crédito) que favoreçam determinadas “associação dos produtores”, como nas cooperativas. Estas opções não são puramente ideológicas. Penso ser a melhor forma de alcançar o sucesso, devido aos canais de informação que se desenvolvem e à pressão democrática para a escolha de projectos socialmente mais rentáveis.

2- Tem razão o Miguel quando afirma que na economia neoclássica há exemplos de trabalhos que têm em conta economias com rendimentos crescentes à escala, nomeadamente o do Krugman, como aliás eu e o João Rodrigues mostrámos num dos capítulos deste livro. No entanto, a negligência da teoria neoclássica em relação a esta realidade não se deve somente a uma questão de formalização matemática. É toda a teoria do equilíbrio geral e de defesa cega do comércio livre que é colocada em causa.



O Zé Neves levanta outro tipo que questões, que se desviam da nossa discussão inicial à volta da política industrial, mas que me merecem três breves notas:

1- Se bem percebi, o Zé acusa-me de ter dois pesos e duas medidas quando crítico a economia neoclássica no campo das “diferenças políticas e morais”, mas de o não fazer no que eu próprio defendo. Não tem razão. A discussão política e moral deve estar sempre presente, mas ela não exclui a análise científica. A realidade existe e as teorias e análises devem ser testáveis, admitindo a falibilidade. Aliás, é neste campo que a economia neoclássica mais redondamente falha. É também neste ponto que eu e o Zé talvez diverjamos.

2. De resto, ter conta em conta que parte da realidade económica é nacional e que temos aí um esfera autónoma de acção é bem diferente do que dizer que devo “confinar” a minha análise à esfera nacional, ou que me preocupo mais com os trabalhadores portugueses do que com os trabalhadores moçambicanos. Obviamente, a minha acção, como a do Zé, está constrangida pelo que me é próximo (se vivo em Alvalade é mais fácil organizar os precários em Lisboa do que em Estocolmo). Aqui acho que o Zé está a ser deliberadamente incorrecto e a criar divisões artificiais.

3. As perguntas finais do Zé sobre relação entre consumo e produção, “pueris q.b.”, são provocações, às quais o Zé sabe bem como responderia. Fica só a recomendação de um excelente livro que responde a muitas delas.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Se querem alterar o Tratado, vão à raíz dos problemas

Segundo consta, o governo Merkel quer alterar o Tratado da UE. O objectivo é ultrapassar as reservas do Tribunal Constitucional alemão ao fundo europeu criado para socorrer a Grécia (e os outros 'problemas' que hão de vir). É que o Tratado da UE, desde Maastricht, proíbe que uns Estados assumam as dívidas dos outros - o que, em boa medida, é o que está a acontecer. Desde o início que essa cláusula de 'no bailout' foi criticada pelo seu irrealismo (ver, por exemplo os trabalhos de Paul de Grauwe) - quando a coisa doesse, já se sabia, ninguém iria aceitar que um Estado membro da zona euro entrasse em bancarrota, pondo em causa o valor internacional da moeda única. Mas a cláusula ficou lá na mesma, com o argumento de que seria necessária para sossegar os eleitores alemães.

Agora que o governo alemão é confrontado com a realidade dos factos e manda à fava o 'no bailout', inventa-se uma nova forma de sossegar os eleitores germânicos. Desta feita trata-se de introduzir no Tratado a possibilidade de os Estados reestruturarem a dívida (na prática, dizerem aos credores que, enfim, não podem pagar o que era suposto nos prazos previstos). O objectivo declarado é comprometer os investidores privados com as 'práticas orçamentais irresponsáveis' dos Estados a quem emprestam dinheiro. Por outras palavras: se os privados souberem que as dívidas podem ser reestruturadas, irão impôr custos superiores aos Estados 'prevaricadores', o que aumenta para estes os custos da 'irresponsabilidade', tonando-os 'mais bem-comportados'.

Esta retórica da responsabilidade e da punição assenta bem no clima de histeria e preconceito que hoje domina o debate público na Alemanha - e, por imitação básica, em países como Portugal - alimentado pelos sectores mais conservadores das sociedades respectivas. Acontece que estas medidas não vão ter resultados que não sejam acentuar a frequência e intensidade das crises e dificultar a resposta aos problemas quando eles surgem - tal como aconteceu com a cláusula do 'no bail-out'.

Já várias vezes discutimos aqui porque motivo a arquitectura de gestão macroeconómica europeia está condenada a falhar (ver, por exemplo, aqui). Sumariamente: o euro implicou colocar sob a mesma política monetária economias com estruturas muito distintas e sistemas político-sociais com prioridades e constrangimentos diversos; esta diversidade de estruturas e sistemas sócio-económicos implica que os seus ciclos estejam frequentemente desalinhados; no entanto, os países deixaram de controlar a política monetária e cambial, instrumentos utilizados com utilidade por economias com moeda propria; noutros casos de unificação monetária foram criados mecanismos alternativos para compensar os desalinhamentos (e.g., uma política orçamental federal de dimensões significativas, como nos EUA); na UE não existem mecanismos que atenuem os desalinhamentos de ciclo económico; e como os sistemas económicos não se tornam idênticos só porque se cria uma moeda única, a UE estará sujeita a estes problemas até que se decida introduzir mecanismos orçamentais que permitam fazer face a desempenhos conjunturais desalinhados entre os Estados Membros.

Assim, se o Tratado de Lisboa vai ser revisto, aproveite-se a oportunidade para fazer o que está certo - crie-se uma união económica a sério, acompanhada de mecanismos de controlo democrático das decisões tomadas em Bruxelas. Mais do mesmo é que não vale a pena.

«os economistas»

RTP1, Telejornal, 20.37h. Depois de dissecar a não consumação do acordo entre o Governo e o PSD relativamente ao Orçamento de Estado, José Rodrigues dos Santos (minuto 37 do vídeo) refere que “a ruptura entre o PSD e o governo foi mal recebida pelos economistas”, anunciando assim uma peça com entrevistas a Ferraz da Costa (antigo presidente da CIP), João Salgueiro (ex-presidente da Associação Portuguesa de Bancos), Fernando Ulrich (Presidente do BPI) e Mira Amaral (ministro nos governos de Cavaco Silva).

Estava dada, nos termos em que José Rodrigues dos Santos apresentou o conjunto de entrevistas, a opinião de «os economistas», que o jornalista sintetizaria – perante as questões colocadas – no facto de estes acharem ser “preferível um orçamento adequado e eficaz do que um documento aprovado a qualquer custo”.

Com outro painel, a síntese obtida poderia ser eventualmente a mesma. O ponto não é esse. O ponto é o de se pressupor que, ouvindo estas quatro individualidades, se torna possível conhecer, à partida, a opinião de «os economistas» sobre as mais diversas matérias.

Faça-se o exercício de tentar posicionar estes comentadores no espectro político-partidário, no campo de perspectivas do pensamento económico e nas tendências de parecer face a questões concretas. E ter-se-á uma noção clara sobre a estreiteza do conceito de pluralismo de opinião que o serviço público de televisão recorrentemente tem, em matéria de debate económico.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Kirchner

O ex-Presidente argentino Néstor Kirchner morreu hoje, aos 60 anos, anunciaram fontes médicas. Um presidente que teve a coragem de romper com a ortodoxia económica: renegociou a dívida, defendendo os interesses do país, e pôs em marcha políticas de estimulo económico e de protecção social. A economia argentina saiu do buraco para onde tinha sido levada pelas utopias neoliberais. Um exemplo a não esquecer.

Adenda. Ler o artigo de Mike Weisbrot sobre "o herói da independência argentina" no The Guardian. Obrigado José M. Sousa.

Da raposa no galinheiro...

António Borges nomeado director do Departamento Europeu do FMI. O lobbyista dos fundos especulativos chega ao FMI. Está na natureza da coisa. Ferreira Leite perdeu as eleições, mas as suas ideias estão nos poderes e nas políticas que contam. A democracia está em processo de suspensão...

Keynes 2.1

Enquanto que na Europa estamos condenados a uma política económica inspirada na teoria económica que presidiu à Grande Depressão dos anos trinta, no resto do mundo há vontade para aprender com a crise financeira. Bom exemplo disso é a forma como os controlos de capitais estão a ser reinstituídos em vários países, da Islândia ao Brasil, passando pela Tailândia, como bem aponta este artigo de opinião de Ilene Grabel e Ha Joon Chang, hoje publicado no Financial Times. Os controlos de capitais não são nenhuma panaceia para o desenvolvimento. No entanto, se bem desenhados e implementados, eles permitem a estabilização financeira e, assim, sólidas fundações para o crescimento económico, como, aliás, aconteceu no período que precedeu os últimos trinta anos de política neoliberal.

Como bem apontam Grabel e Chang, estas políticas devem ser acompanhadas pela refundação do sistema financeiro internacional, por forma a garantir soluções concertadas para a instabilidade económica e para o desemprego. Existem já alguns esforços meritórios para o conseguir. Um deles é inspirado directamente na proposta de keynes para a criação de uma moeda “internacional”, sem existência real, o Bancor, que servisse de meio de pagamento internacional e que, aliado a um fundo internacional, fosse um instrumento para a correcção dos desequilíbrios externos dos diferentes países. Chama-se “SUCRE” e envolve os países da Alba (Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Nicarágua). Este sistema foi desenhado como unidade conta gerida por uma entidade regional, onde todos os países têm os mesmos direitos de voto. Pretende-se promover o comércio regional nas moedas locais, ganhando assim autonomia face ao dólar, ao mesmo tempo que prevê o uso dos excedentes comerciais “excessivos” em investimento produtivo, direccionado para as exportações, nos países deficitários. Política industrial, lembram-se? O sistema é embrionário e depara-se como inúmeros problemas, já que os diferentes países têm políticas cambiais e de capitais muito diversas, dificultando a concertação. Contudo, é certamente um exemplo a seguir de perto.

A autodestruição da globalização neoliberal?

“Face à depressão da procura agregada na Europa e nos Estados Unidos, os governos viram-se naturalmente para os mercados exportadores para aliviar o desemprego interno. Mas os países não podem ter todos, simultaneamente, excedentes comerciais. A tentativa de os alcançar levará a uma depreciação competitiva da moeda e ao proteccionismo.

Como Keynes, inteligentemente, observou, ‘se as nações aprenderam a alcançar o pleno emprego como políticas domésticas… não existiria um motivo para que um país precisasse de impor os seus produtos a outros ou rejeitar as ofertas dos seus vizinhos’. O comércio entre países ‘deixaria de ser o que é, um recurso desesperado para manter o emprego em casa forçando as vendas nos mercados estrangeiros e restringindo as compras’. Em vez disso, passaria a ser um ‘intercâmbio voluntário e sem impedimentos de bens e serviços em condições de vantagem mútua’.

Por outras palavras, a actual turbulência relacionada com as moedas e o comércio é o resultado directo do nosso falhanço em resolver os nossos problemas de emprego.”

Robert Skidelsky no Negócios. É um dos mais lúcidos economistas ou não fosse ele o principal estudioso do pensamento de Keynes. Isto permite-me sublinhar um ponto: a actual configuração da globalização pode bem estar em processo de autodestruição devido à austeridade generalizada, que alimenta o desemprego e erode o Estado Social. Acontece que um Estado social robusto, segundo indica alguma investigação empírica, é uma condição para a legitimidade da abertura comercial. Os neoliberais têm de ter cuidado com o que desejam.

A liberalização financeira e a abertura comercial desregrada são o problema. A refragmentação da economia global poderá ser necessária para que possam emergir modelos com maior enfâse na procura e na criação de emprego. Não resisto a invocar Keynes:

“Simpatizo com aqueles que querem minimizar, em vez de maximizar, as interdependências económicas entre as nações [ou os blocos regionais…]. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que, pela sua natureza, devem ser internacionais. Mas deixemos que os bens sejam produzidos localmente sempre que seja razoável e conveniente, e, sobretudo, asseguremos que a finança seja nacional. No entanto, aquele que querem reduzir as interdependências devem ser lentos e cautelosos. Não se trata de arrancar a planta pela raiz, mas de orientá-la lentamente para que cresça noutra direcção.”

Os acordos de Bretton Woods, que fixaram o quadro do pós-guerra, parcialmente inspirados pelas ideias de Keynes, previam mecanismos de controlo de capitais (a finança nacional) e criaram condições para que os países definissem o seu espaço de desenvolvimento através de uma abertura comercial gerida (orientar a planta). Só faltou o crucial bancor, parte de um projecto de gestão politica supranacional que evitasse a acumulação de défices e de superávites comerciais persistentes.

Temos de imaginar soluções razoáveis e convenientes para o trilema da economia política internacional e para a insustentável acumulação de brutais desequilíbrios, expressão da perversa configuração da globalização. A planta europeia também deveria poder crescer noutra direcção, antes que alguém a arranque. O proteccionismo pragmático é um bom antídoto contra a emergência da xenofobia e do nacionalismo agressivo, filhos das utopias (neo)liberais…

Há alternativa à austeridade

O cartaz é de Pedro Vieira. A resposta à pergunta vai ser dada por José Reis em Lisboa no próximo Sábado. A organização é da associação política Fórum Manifesto. José Reis deverá desenvolver a análise que fez no Público, indicando um conjunto de alternativas de política económica a estas escolhas orçamentais que nos levam para a recessão.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ensaio sobre a desfaçatez

Num debate ontem realizado na Universidade Católica, Daniel Bessa admite poderem “ser precisos outros PEC”, uma vez que Portugal vai “entrar num período profundo de recessão, durante muitos anos”. Isto é, um dos grandes arautos das políticas recessivas (cortes salariais, privatização dos serviços públicos e redução da receita proveniente do IRC, entre outras), considera que a cura para a recessão é somar-lhe mais recessão, através do reforço de medidas que estiolam ainda mais o consumo.

No silêncio da argumentação ficam quaisquer referências ao papel da dinâmica especulativa dos mercados na situação actual, aos impactos da crise financeira nos orçamentos públicos, ou um apontamento que fosse sobre as disfuncionalidades assumidas do actual modelo de governação económica europeia.

A desfaçatez deste economista do regime, que não se detém um segundo que seja na análise da coerência e sustentação do que defende, faz lembrar aquele notável momento de Marcelo Rebelo de Sousa por ocasião do referendo sobre a despenalização do aborto. "Os PEC têm em vista a saída da crise?", "Sim" - "Podemos então esperar que eles invertam a recessão?", "Não" - "Mas se necessário deverão ser adoptados novos PEC...", "Sim" - "Não vê problema em que eles agravem a situação...", "Não".

Internacionalismos


Face a todos os que pretendem, a todo custo, interpretar a onda maciça de contestação francesa como anacronismo do Maio de 68 ou das revoltas de há cinco anos, recorrendo ao argumentário sarkoziano, a melhor resposta está aí. Hoje, os trabalhadores belgas da TOTAL decidiram solidarizar-se com os trabalhadores franceses e bloquearam os depósitos de combustível belgas utilizados pelas petrolíferas francesas. Parabéns!

Foice em Seara Alheia

Vai na blogoesfera uma animada polémica entre dois economistas, Ricardo Reis, professor em Nova Iorque e João Galamba, deputado independente pelo PS. Boa parte da discussão é dedicada ao que se disse ou não disse no colóquio da Assembleia da República, com recurso a argumentos de autoridade pelo meio. Não me interessa, até porque não estive presente. Todavia, este post de Ricardo Reis merece uns breves comentários. Para este economista não é nada claro que os actuais cortes orçamentais tenham efeitos recessivos na economia. Há muitos estudos e teorias de sinal contrário em relação ao assunto, argumenta. Nomeadamente um trabalho de Alesina e Ardagna e o, já mencionado aqui, estudo do FMI. E assim o economista se mostra agnóstico quanto aos efeitos do actual orçamento. Cautela e modéstia intelectual? Nem por isso. Quando se argumenta que isto pode dar para os dois lados (crescimento ou recessão) está a defender-se a actual política de austeridade, que aliás vai de encontro às preferências de Reis: corte-se nos salários e na despesa social para mostrar credibilidade.

De qualquer forma, Reis parece, pelo menos, estar inclinado para os efeitos positivos da austeridade. Se este artigo não bastasse, comecei a ficar desconfiado da honestidade da posição de Reis na forma como argumenta que o efeito expansionista da austeridade orçamental foi “bem estudado e inspeccionado empiricamente”. Os dois estudos não são completamente independentes. O FMI é muito crítico nas escolhas metodológicas de Alesina e Ardagna. E fiquei ainda mais perplexo ao ler a forma como estes últimos prescindem de estudar os efeitos das taxas de juro e de câmbio (controlados no seu modelo, é certo, mas nem à forma de o fazer temos acesso), dois factores que também Reis prefere ignorar.

Finalmente, "pasmei" em saber que economistas que defendem uma redução salarial entre 10% e 20% em Portugal, como Blanchard, são de esquerda. Para Reis, o FMI deve ser uma instituição ao serviço dos trabalhadores. Pelo menos temos a vantagem de saber que, para Ricardo Reis, há economistas de esquerda e de direita, por mais desnorteado que ele pareça. Aliás pelo tom da sua posta ele deve afirmar-se nem carne, nem peixe. Um mero técnico do tofu.

A minha posição metodológica está longe dos debates entre o FMI e o Alesina. Só através estudo cuidado da realidade da economia portuguesa nos últimos anos e, recusando amálgamas estatísticas, podemos ter um melhor conhecimento do que o futuro nos reserva. Exemplo disso é este trabalho histórico do Instituto Roosevelt, analisando todas as variáveis onde, embora (ou se calhar, por isso) sem modelos econométricos, se conclui que austeridade em tempos de crise, sobretudo num contexto de impossibilidade de desvalorização cambial, só tem um efeito: recessão. Mais, como mostrámos aqui, pelo efeito dos balanços financeiros em que famílias, empresas e estado tornam remota, ao procurar aliviar simultaneamente o peso do fardo dívida, uma recuperação da economia portuguesa. Diagnósticos diferentes dão prescrições diferentes, como esta do CEPR, que argumenta bem pela necessidade actual de estímulo nas economias periféricas (no caso Espanha). Li no jornal que Reis falou da necessidade de se pensar na reestruturação da dívida. Ainda bem. Convém é que o processo seja liderado pelos devedores e não pelos credores.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mais Ladrões de Bicicletas

Damos as boas-vindas ao Alexandre Abreu. Doutorando em economia na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres. Neste momento está a fazer trabalho de campo na Guiné Bissau: economia política do desenvolvimento. Mais um economista de combate. Boas pedaladas!

Debater sempre

“Dizem que os portugueses vivem acima das suas possibilidades, mas quem é que vive acima das suas possibilidades? Os desempregados? Os 57 por cento de portugueses que vivem com 900 euros por mês? É preciso dizer quem é que vive acima das suas possibilidades. Nós temos um programa de endividamento que nos tira autonomia de decisão, sobretudo no estado em que se encontra a Europa. Nós aderimos a uma Europa de crescimento, de prosperidade social partilhada. Neste momento temos uma Europa em que a Alemanha ditou políticas de austeridade. Isso leva à recessão.”

Manuel Alegre

Amanhã (dia 26) estarei no Porto a debater a crise económica e as alternativas com António Figueiredo e José Carlos Ferraz. O debate começa às 21h30m e terá lugar na sede candidatura de Manuel Alegre (largo Tito Fontes, metro Trindade). Uma iniciativa da Comissão de apoio da candidatura de Manuel Alegre. Apareçam.