quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Se querem alterar o Tratado, vão à raíz dos problemas

Segundo consta, o governo Merkel quer alterar o Tratado da UE. O objectivo é ultrapassar as reservas do Tribunal Constitucional alemão ao fundo europeu criado para socorrer a Grécia (e os outros 'problemas' que hão de vir). É que o Tratado da UE, desde Maastricht, proíbe que uns Estados assumam as dívidas dos outros - o que, em boa medida, é o que está a acontecer. Desde o início que essa cláusula de 'no bailout' foi criticada pelo seu irrealismo (ver, por exemplo os trabalhos de Paul de Grauwe) - quando a coisa doesse, já se sabia, ninguém iria aceitar que um Estado membro da zona euro entrasse em bancarrota, pondo em causa o valor internacional da moeda única. Mas a cláusula ficou lá na mesma, com o argumento de que seria necessária para sossegar os eleitores alemães.

Agora que o governo alemão é confrontado com a realidade dos factos e manda à fava o 'no bailout', inventa-se uma nova forma de sossegar os eleitores germânicos. Desta feita trata-se de introduzir no Tratado a possibilidade de os Estados reestruturarem a dívida (na prática, dizerem aos credores que, enfim, não podem pagar o que era suposto nos prazos previstos). O objectivo declarado é comprometer os investidores privados com as 'práticas orçamentais irresponsáveis' dos Estados a quem emprestam dinheiro. Por outras palavras: se os privados souberem que as dívidas podem ser reestruturadas, irão impôr custos superiores aos Estados 'prevaricadores', o que aumenta para estes os custos da 'irresponsabilidade', tonando-os 'mais bem-comportados'.

Esta retórica da responsabilidade e da punição assenta bem no clima de histeria e preconceito que hoje domina o debate público na Alemanha - e, por imitação básica, em países como Portugal - alimentado pelos sectores mais conservadores das sociedades respectivas. Acontece que estas medidas não vão ter resultados que não sejam acentuar a frequência e intensidade das crises e dificultar a resposta aos problemas quando eles surgem - tal como aconteceu com a cláusula do 'no bail-out'.

Já várias vezes discutimos aqui porque motivo a arquitectura de gestão macroeconómica europeia está condenada a falhar (ver, por exemplo, aqui). Sumariamente: o euro implicou colocar sob a mesma política monetária economias com estruturas muito distintas e sistemas político-sociais com prioridades e constrangimentos diversos; esta diversidade de estruturas e sistemas sócio-económicos implica que os seus ciclos estejam frequentemente desalinhados; no entanto, os países deixaram de controlar a política monetária e cambial, instrumentos utilizados com utilidade por economias com moeda propria; noutros casos de unificação monetária foram criados mecanismos alternativos para compensar os desalinhamentos (e.g., uma política orçamental federal de dimensões significativas, como nos EUA); na UE não existem mecanismos que atenuem os desalinhamentos de ciclo económico; e como os sistemas económicos não se tornam idênticos só porque se cria uma moeda única, a UE estará sujeita a estes problemas até que se decida introduzir mecanismos orçamentais que permitam fazer face a desempenhos conjunturais desalinhados entre os Estados Membros.

Assim, se o Tratado de Lisboa vai ser revisto, aproveite-se a oportunidade para fazer o que está certo - crie-se uma união económica a sério, acompanhada de mecanismos de controlo democrático das decisões tomadas em Bruxelas. Mais do mesmo é que não vale a pena.

11 comentários:

Helena Araújo disse...

Pode explicar um pouco melhor a frase "Esta retórica da responsabilidade e da punição assenta bem no clima de histeria e preconceito que hoje domina o debate público na Alemanha"?
Em especial as palavras "histeria" e "preconceito".

Ou, perguntado de outra forma: é ilegítimo que os eleitores alemães comecem a desconfiar que são eles quem paga sempre o preço, aconteça o que acontecer e sem que ninguém lhes pergunte se estão dispostos a pagar?

JP Santos disse...

"a UE estará sujeita a estes problemas até que se decida introduzir mecanismos orçamentais que permitam fazer face a desempenhos conjunturais desalinhados entre os Estados Membros"

Quatro questões/reflexões: i) os mecanismos orçamentais não poderiam ser mantidos à escala nacional no caso de política orçamental ser conduzida por forma a ter uma maior margem de manobra que permita uma verdadeira política contra-ciclica ? ii) Em caso negativo seria suficiente, para corrigir os desequilibrios, o estabelecimento de uma política orçamental central ? iii) Pelas limitações inerentes a esse instrumento, não se correria o risco de criar/perpetuar situações de dependência financeira entre as diferentes regiões da Europa ? iv) Last but not the least, existem condições políticas para que os "europeus" aceitem uma redução da sua autonomia orçamental e um aumento das transferências entre as diferentes regiões ?

José M. Sousa disse...

Helena

Não é verdade que os eleitores alemães paguem sempre o preço. Recordo-lhe que ninguém perguntou aos eleitores de toda a Europa pelo preço que custou a unificação Alemã. Nessa altura, o Bundesbank forçou toda a Europa a pagar altas taxas de juro reais para sustentar os custos dessa integração.

Anónimo disse...

ahahaha, muito fixe!
bem esgalhado!
parabens pa!

Diogo disse...

Mas devemos o quê a quem? Aos tipos do casino? Já alguma luminária deste blogue de ciclistas se deu ao trabalho de pensar nisso?

Anónimo disse...

eia diogo és bués man!
sabes cenas a brava!
parabens pa!

Semisovereign People at Large disse...

ainda pensa que os pedintes ricos da europa podem fazer o mesmo
que foi feito a mais 100 milhões no BPN?

se calhar um dia alguém lhe vai aparecer em casa e dizer

nós os sem-abrigo aqui do bairrol
decidimos democraticamente
deixar-te dormir connosco aqui
nesta casa que doravante é nossa


deve ser mais ou menos assim

Ricardo Paes Mamede disse...

Helena,
Para a Alemanha o euro foi um óptimo negócio. Passou a contar com uma moeda que se tornou unidade de reserva a nível mundial, o que lhe permite ter acesso a financiamento mais barato e poupar nos recursos afectos às trocas internacionais. Ao mesmo tempo, conseguiu (impor e dominar) uma solução institucional de gestão do euro que reflecte as suas prioridades e preferências. Finalmente, teve estas vantagens com custos quase nulos. É verdade que mobilizou recursos para o resgate da Grécia, mas até aí os interesses financeiros alemães saem a ganhar: estão a emprestar dinheiro a taxas bem superiores àquelas a que pedem emprestado.

E quanto a indisciplinas orçamentais, não esqueçamos que a Alemanha foi dos primeiros países a infringir as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento.

JP Santos disse...

Caro Ricardo,

A Alemanha já desfrutava em grande medida das vantagens que refere quando tinha o marco. Penso que mais importante que esses ganhos para a Alemanha será a estabilidade cambial que é sobretudo importante para as empresas multinacionais e evita aquilo que encaravam como desvalorizações competitivas de outros países.
De qualquer modo importa não esquecer que os parceiros também tiveram vantagens em termos de inflação e custos de financiamento
e, sobretudo, recordar que se tratou de um processo de adesão voluntário (a Suécia, a Dinamarca e o Reino Unido optaram por ficar de fora do euro).

Anónimo disse...

ena pois é!
tens montes de razao!

Anónimo disse...

De um economista "insuspeito", já citado neste blog:
Why was a restructuring not already part of
the original IMF/EU agreement for Greece? The
answer is that a Greek sovereign default would
not be costless to the rest of the Eurozone. The
reason is that most of the exposure to the Greek
sovereign and to other Greek borrowers (e.g.
the Greek banks) is with the banks from other
Eurozone member states (see below). The choice
faced by the French and German authorities in
particular is to either bailout Greece or to bailout
their own banks.

...it is clear that a minimal fiscal Europe
is necessary to make up for the loss of
independent monetary policy as a sovereign
default prevention mechanism.
Totalidade artigo http://www.cepr.org/pubs/PolicyInsights/PolicyInsight51.pdf