quarta-feira, 7 de maio de 2008

Não entreguemos à direita o monopólio das tradições

Hoje ficámos a saber que em Portugal existe uma aceitação passiva de todas as directivas comunitárias sobre segurança alimentar, mesmo quando é possível impôr excepções visando salvaguardar os produtos tradicionais.

Na última edição do Le Monde Diplomatique (versão portuguesa), Nadir Bensmail escreve sobre a tendência de redução da diversidade na produção do vinho em Portugal (em termos de castas, estilos, métodos de produção, etc.), associada à tentativa de imitar as soluções que estão na moda nos 'mercados internacionais'. Esta tendência tem como consequências não apenas o risco de desaparecimento de saberes ancestrais (os quais tiram partido das características próprias de cada região) como constitui uma estratégia altamente arriscada em termos de desenvolvimento do sector no longo prazo (cada produtor procura seguir a moda para vender mais no imediato, o resultado global é a crescente incapacidade de diferenciação do vinho de origem portuguesa), com consequências indesejáveis para as formas de ocupação do território e do desenvolvimento regional.

Nadir Bensmail mostra como a produção 'moderna' para os mercados internacionais mantém no essencial as estruturas sociais existentes (o recurso ao trabalho assalariado desqualificado, a concentração da propriedade, etc.); inversamente, discute como a associação entre produtores e uma postura mais consciente dos consumidores pode conduzir não apenas à preservação da diversidade cultural, mas também a modelos de desenvolvimento do sector agrícola mais sustentáveis, em termos ambientais, sociais e económicos. Ou seja, paradoxalmente, a produção 'tradicional' pode revelar-se mais progressista do que a produção 'moderna', desde que enquadrada por uma atitude crítica por parte de produtores e consumidores. O mesmo tipo de lógica é facilmente extensível à generalidade dos produtos tradicionais.

A notícia de hoje e o artigo de Nadir Bensmail apontam no mesmo sentido: a falta de empenho dos responsáveis governamentais portugueses na prossecução de uma estratégia clara sobre as produções tradicionais. Seria bom que a esquerda portuguesa não oferececesse de bandeja o monopólio destas questões à direita populista, procurando enquadrá-las na discussão mais geral sobre os métodos e as relações sociais de produção desejáveis.

Ainda a globalização no divã II

As desigualdades (salariais e não só) entraram assim finalmente na agenda: «o disparo das remunerações dos gestores de topo e a estagnação, ou mesmo o recuo em termos reais dos salários médios» (Luísa Bessa). O trabalho do Jornal de Negócios parece ser esclarecedor e reforça a necessidade de se começar a pensar em mudanças nas regras do jogo e nas melhores instâncias (nacionais e supranacionais) para as efectuar. Acho que o injustificado aumento das desigualdades salariais também é, como já argumentei aqui ou aqui, o resultado da ideologia da «corporate governance», paralela à financeirização do capitalismo, mais do que um sinal da sua ausência ou fracasso. Há aqui, como afirma Helena Garrido, um «desequilíbrio de poderes». Entre proprietários, gestores e restantes trabalhadores. É claro que reverter estes padrões exige mudanças coordenadas a vário níveis, incluindo na legislação laboral (num sentido oposto ao que tem sido preconizado). Mudanças que reforcem a «voz» organizada dos trabalhadores dentro das empresas e em instâncias fortes de concertação fora delas. Aliás nunca é demais relembrar que a forma das empresas e os direitos e as obrigações dos seus diversos «stakeholders» são o resultado de decisões políticas que influenciam quem se apropria do quê e porquê. No fundo, também é o velho tema do liberalismo que não fica à porta da empresa (caso de John Stuart Mill) - a democracia nos locais de trabalho e as suas virtudes - que terá de regressar.

Ainda a globalização no divã

Vale mesmo a pena ler este editorial, da autoria de Luísa Bessa no Jornal de Negócios, sobre a economia política da globalização e o aumento das desigualdades. Em Portugal, o debate começa a avançar. Alguns comentários, prosseguindo a discussão da última posta sobre globalização: (1) é verdade que quase todo o progresso em matéria de redução da pobreza absoluta tem ocorrido na China e na Índia: «Uma mais-valia para toda a humanidade, que aparece agora inesperadamente em risco pela subida dos preços dos alimentos»; (2) é curto falar em «abertura dos mercados» para descrever os ingredientes das trajectórias destas duas economias já que as «receitas» aplicadas estiveram muito longe da vulgata neoliberal (basta ver de quem é que ainda são as empresas chinesas que hoje adquirem activos de empresas norte-americanas ou prestar atenção aos controlos de capitais que estes dois países mantiveram); (3) é um facto que temos vindo a assistir a uma crescente discrepância entre a sorte das grandes empresas dos países avançados e as condições de segmentos cada vez mais vastos das classes trabalhadoras. Regressa assim o problema do brutal aumento das desigualdades e volta-se a colocar a questão da corrosão da legitimidade política do capitalismo ou pelo menos de algumas das suas configurações nacionais (o processo de aumento das desigualdades sendo geral não tem a mesma intensidade em todo o lado). Na ausência de reformas redistributivas («uma panela de pressão cuja válvula deixa de funcionar»), cada vez mais difíceis num contexto em que a livre circulação de capitais reergue o famoso ‘muro do dinheiro’, as «medidas proteccionistas» farão necessariamente parte da agenda. Os EUA têm uma forte tradição nesta área. Outros muros. Que às vezes podem bem ser necessários.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Globalização no Divã II

Algumas notas soltas para discussão: (1) o nosso capítulo sobre comércio internacional limita-se a recuperar a reflexão de List e a apresentar os contributos de alguns economistas contemporâneos mais ou menos heterodoxos; (2) as tradições com que simpatizamos podem ajudar a superar os estanques termos em que o debate sobre a globalização por vezes se encerra («globalização feliz» ou «orgulhosamente sós em economias locais»); (3) a questão interessante é perceber que o sucesso económico também depende da autonomia e capacidade nacionais para forjar políticas industriais estratégicas; (4) estas políticas devem moldar as forças de mercado numa direcção que permita uma inserção económica internacional que seja o mais vantajosa possível para o país em causa; (5) os países bem sucedidos construíram deliberadamente as suas vantagens competitivas através de um envolvimento activo do Estado totalmente contrário às prescrições universais do «consenso de Washington»; (6) o sistema de regras que estrutura as relações económicas internacionais no quadro da OMC corre o risco de atrofiar «o espaço de desenvolvimento» disponível para os países mais pobres; (7) acho que estas formulações de Dani Rodrik, economista neoclássico de Harvard, servem bem: «o facto de praticamente todos os países avançados terem embarcado no seu crescimento protegidos por barreiras alfandegárias e só terem reduzido a sua protecção subsequentemente oferece uma pista (. . .) No quadro de um conjunto de regras comerciais sensatas, os países industrializados teriam tanto direito de protecção dos seus arranjos sociais (. . .) como as nações em vias de desenvolvimento teriam de adopção de práticas institucionais divergentes»; (8) citações retiradas deste importante livro que vem dar um forte contributo para superar fundamentalismos: afinal o contexto conta e mesmo a economia dominante pode oferecer ‘um conhecimento prudente para uma sociedade decente’. Já agora vejam o que Lawrence Summers escreveu hoje sobre globalização. Alguns economistas de Harvard andam a ficar mesmo atrevidos.

Globalização no Divã

Os livros querem-se para debater, consolidar e rever posições. A Globalização no Divã e o capítulo que eu escrevi em conjunto com Nuno Teles já mereceram postas generosas de Pedro Lains. São um ponto de partida para um debate (mais um). Felizmente, e por iniciativa dos organizadores do livro, vamos poder discutir as questões da globalização e do desenvolvimento, em conjunto com o excelente contributo de Hugo Mendes - «O caos normal do Estado social num mundo em globalização» - e beneficiar da participação, entre outros, de Pedro Lains. Em data e local a anunciar. Para já fica o anúncio do lançamento do livro: 9 de Maio às 18h30m na livraria Pó dos Livros (Av. Marquês de Tomar 89A, Lisboa) com apresentação de Rui Tavares, Pedro Mexia e João Bernardo (a confirmar).

segunda-feira, 5 de maio de 2008

As virtudes e as limitações da caridade

A iniciativa do Banco Alimentar contra a Fome revela a extensão da pobreza, das escolhas trágicas e das desigualdades em Portugal. Neste contexto, o Banco Alimentar tem méritos assinaláveis: (1) mobiliza a disposição cooperativa de muitos, esse activo social potencial que é a base da acção colectiva imprescindível para construir uma sociedade decente; (2) mais importante, serve como mecanismo de provisão de bens alimentares a muitos que a eles não conseguem aceder (a exclusão pelo preço).

Há quem acredite que pode ser parte da solução para os problemas estruturais da pobreza e das desigualdades em Portugal. Por exemplo, Paulo Ferreira do Público, cuja análise sobre este assunto já aqui critiquei, afirma: «aqui está um exemplo de como a sociedade civil pode fazer tanto como o Estado por quem mais precisa». Isto é apenas uma perigosa ilusão. Julgo aliás que uma perspectiva demasiado entusiástica só pode conduzir a frustrações desmobilizadoras.

Vale a pena assinalar algumas limitações destas iniciativas: (1) são um paliativo, necessariamente tosco e incompleto, dada a sua natureza descentralizada e voluntária, revelando as fracturas sociais da nossa perniciosa variedade de capitalismo sem as poder superar (aliás os seus mais lúcidos activistas, é o caso Fernando Nobre, fazem questão de o assinalar quando defendem um Estado Social robusto); (2) a sua visibilidade mediática tende a alimentar um discurso demagógico que acha que a caridade pode ter a eficácia de uma política social de combate à pobreza assente em intervenções públicas bem organizadas e coordenadas que, no quadro de direitos de cidadania politicamente reconhecidos, mobilizem as competências e os recursos necessários.

Na realidade, o problema não está nas iniciativas da sociedade civil, mas nos discursos que as parasitam. Seja como for é sempre bom relembrar que os países mais bem sucedidos no combate à pobreza e às desigualdades (as duas coisas estão intimamente ligadas) são países com Estados fortes e políticas económicas e sociais bem afinadas que tenderam a eliminar a necessidade da caridade. Num certo sentido, ela é mais parte do problema do que da verdadeira solução.

A fraqueza selectiva do Estado

«Há seis mil gerentes e directores de empresa que garantem ganhar apenas o salário mínimo. Nestas empresas, portanto, nem um trabalhador tinha um vencimento mais baixo do que o do responsável máximo (. . .) Descontando os casos de reais problemas financeiros, os gestores garantem ser impossível encontrar no mercado de trabalho quem assuma a responsabilidade de gerir uma empresa, por mais pequena que seja, por um salário tão baixo». No Jornal de Notícias. O «Estado fiscal de classe» em todo o seu esplendor. A relembrar que o «problema» do défice, para além da conjuntura económica difícil, é afinal de contas a melhor ilustração da fraqueza do Estado perante quem detém mais poder económico. Um Estado que não cobra impostos a quem deve e que abdica de instrumentos preciosos no combate à fraude não tem legitimidade para exigir «sacrifícios» aos grupos que já são tão penalizados pela penosa situação socioeconómica do país. É altura de acabar com estas assimetrias. Definitivamente, as contas bancárias não devem fazer parte dos segredos de família.

domingo, 4 de maio de 2008

A esquerda italiana em estado de choque IX

O debate em Portugal sobre a derrota da Esquerda Arco-Íris nas últimas eleições italianas parece estar condenado a centrar-se na questão da participação no governo. Tal como escrevi no 'post' anterior sobre o tema, esta não é uma questão menor. As condições em que os partidos da esquerda crítica participaram no governo Prodi (aderindo à coligação de centro-esquerda de forma incondicional), aliada à escassa maioria parlamentar que apoiava este executivo, imobilizaram a acção daqueles partidos: no governo não tiveram força para fazer vingar as suas propostas, fora dele viram-se obrigados a conter as suas críticas para não serem acusados de estar a favorecer o regresso da direita ao poder.

No entanto, mais do que saber se em 2006 a Esquerda Arco-Íris poderia ter optado por manter-se fora da coligação de centro-esquerda ou do 2º governo Prodi, ou se deveria ter reivindicado condições programáticas mínimas para essa participação (e quais seriam os custos políticos das várias alternativas), creio que importa reflectir neste momento sobre as opções tomadas pelos líderes da esquerda crítica italiana em matéria de organização e de formas de intervenção política nos anos mais recentes.

Aquilo que os 4 partidos que constituíram a plataforma Esquerda Arco-Íris nestas últimas eleições (PRC, PdCI, Verdes e SD) tinham de comum era a (vontade de) identificação com os vários movimentos sociais e de protesto que marcaram a Itália no período 2001-2006. Como aqui escrevi, este foi um dos períodos mais significativos de mobilização popular das últimas décadas em Itália, envolvendo muitos milhões de pessoas que faziam questão de se distanciar das políticas de centro-direita, prosseguidas pelo 2º governo Berlusconi, tanto no plano interno como no externo.

Impressionados pelo sucesso dos movimentos sociais de protesto e perante a opção recorrente por parte do centro-esquerda de não se misturar com estes movimentos (supostamente para não afastar o eleitorado centrista), os líderes dos partidos do Arco-Íris convenceram-se que poderiam constituir-se como representantes da Itália da paz, do ambiente e da resistência a Berlusconi - um espaço político amplo, onde cambiam comunistas e socialistas de várias extracções, pacifistas, feministas, activistas LGBT, ambientalistas e católicos progressistas.

Neste processo destaca-se o papel da Refundação Comunista (PRC), o partido mais representativo deste espaço político e cujo líder histórico, Fausto Bertinotti, encabeçou a lista da Esquerda Arco-Íris às eleições de 2008. Procurando sinalizar a sua predisposição para dar voz aos 'movimentos', a direcção de Bertinotti começou por promover o envolvimento dos activistas do PRC nos movimentos sociais (em detrimento da vida partidária), e por favorecer a integração de figuras destacadas (sem filiação partidária) dos vários 'movimentos' (nomeadamente, dirigentes de ONGs dedicadas a temas como a paz, a cooperação, o ambiente, etc.) nas listas eleitorais do PRC. Percebendo que esta estratégia corria, ainda assim, o risco de ser vista como uma tentativa de controlo hegemónico do PRC sobre os movimentos sociais em Itália - o que tenderia a fragilizar tanto aquele como estes - Bertinotti foi promovendo uma aproximação aos outros partidos de orientação 'movimentista', e a crescente diluição do PRC no seio de uma plataforma Arco-Íris.

Em certa medida, os Verdes pela Paz representaram para o PRC o mesmo que a Margherita representou para os DS, ou seja: um parceiro de coligação útil, capaz atenuar o preconceito existente em algum eleitorado relativamente à herança comunista do partido, permitindo o alargamento da base eleitoral. Tendo em vista promover a aproximação à esquerda não comunista, o PRC optou por privilegiar os temas consensuais entre a esquerda de protesto (paz, ambiente, direitos civis), em detrimento dos temas de potencial divergência (e.g., questões laborais); reforçar a crítica relativamente às experiências de 'socialismo real', sem insistir na discussão sobre modelos alternativos de sociedade; aligeirar a organização partidária (e.g., desvalorizando as células locais e de empresa), assentando a intervenção política numa lógica essencialmente mediática e personalista (centrada na figura de Bertinotti); promover uma imagem de respeitabilidade institucional (simbolizada pela eleição de Bertinotti para a presidência da Câmara dos Deputados em 2006).

Esta estratégia de diluição da identidade e da organização do PRC no conjunto das forças pretensamente representativas dos 'movimentos', e de institucionalização da imagem do partido, revelou-se bem-sucedida nas penúltimas eleições (2006), quando o PRC obteve mais 2,5 milhões de votos (e o conjunto da esquerda movimentista quase 4 milhões), tornando-se incontornável neste período da vida política italiana.

Mas o custo a pagar por esta estratégia não demorou tempo a fazer-se sentir: a base eleitoral ampla assente nos sectores menos ligados à tradição crítica não resistiu a um contexto de bipolarização; a diluição da identidade política favoreceu a perda eleitores tradicionais para o voto útil; finalmente, a opção de criar um 'partido ligeiro', guiado mais pela abertura aos movimentos sociais do momento do que pela tentativa de construir uma presença orgânica no território e nos locais de trabalho, acabou por alienar muitos militantes e simpatizantes entre o eleitorado popular menos atento às dinâmicas macro-sociais.

O espaço deixado livre pela esquerda italiana (seja a Esquerda Arco-Íris ou a do Partido Democrático, que herdou as principais estruturas do PCI), ao desistirem da forma de partido de massas, próximo da vida quotidiana das populações, foi eficaz e utilmente ocupado por parte das direitas pós-'Operação mãos Limpas' - o que ajuda a explicar porque é que a Esquerda Arco-Íris perde parte do seu eleitorado para a Lega Nord. Mas sobre isto escreverei noutra oportunidade.

A terceira via no ensino superior

«No caso do financiamento das universidades, a alternativa aparentemente mais interessante passará pela conjugação de dois princípios: a cobrança de propinas no valor dos custos reais da formação; e o diferimento do pagamento dessas propinas para depois da inserção do ex-estudante no mercado de trabalho». Rui Pena Pires, sociólogo do ISCTE. Pergunto-me se é a mesma pessoa que escreveu isto: «Sendo Portugal, de há muito, o mais desigual dos países da UE, importa clarificar o efeito das escolhas políticas locais sobre este legado. Em particular, deveria ser sempre incluída, na avaliação das políticas públicas, o seu efeito sobre os níveis e padrões da desigualdade na sociedade portuguesa». Num país com assinaláveis défices de formação superior e onde as origens de classe muito influenciam o percurso escolar dos indivíduos, é difícil pensar numa medida com efeitos mais perniciosos para a promoção da democratização do acesso ao ensino superior, peça essencial no combate às desigualdades. As propinas, mesmo que diferidas, não deixarão de ser o que sempre foram: um poderoso mecanismo de exclusão para os indivíduos sem «colateral» familiar.

O pretexto para estas engenharias é, para não variar, o défice. Que parece autorizar todas as derivas mercantis do «socialismo moderno». Na realidade, acho que esta proposta é apenas mais um dos produtos da ideologia que preside às transformações em curso no ensino superior. Transformações inspiradas no modelo anglo-saxónico de capitalismo. O tal modelo que é marcado por abissais desigualdades. Rui Pena Pires ainda tenta dar uma pincelada progressista à proposta com uma comparação com o sistema de reformas (ainda que invertido) e com uma referência vaga à «solidariedade entre gerações de trabalhadores». Acho que a comparação com o sistema de reformas por capitalização faz mais sentido. Trata-se da mesma aposta na atomização social através da fragmentação dos percursos, mediada pelos mercados financeiros (com maior ou menor suporte público) e da mesma erosão dos mecanismos de solidariedade entre gerações e entre grupos sociais. O «efeito de enquadramento» é claro: se eu só recebo o que eu pago (ainda que possa pagar a prestações) então eu só estou disposto a pagar por aquilo que eu recebo. É a instituição da ficção do egoísmo racional que, entre outras coisas, reduz o ensino superior a um investimento privado em «capital humano» com retorno mercantil para o individuo. É nisto que consiste a «actualização» da social-democracia?

sábado, 3 de maio de 2008

O fim da terceira via?

A estrondosa derrota eleitoral do novo trabalhismo nas eleições municipais assinala o esgotamento político de uma fórmula que durante mais de uma década representou a capitulação da social-democracia perante as aventuras neo-imperiais dos EUA e perante o neoliberalismo herdado de Thatcher. Com grande e perniciosa influência na trajectória global da social-democracia europeia. Pesado balanço. Não é por acaso que a direita intransigente blogoesférica, na figura de André Azevedo Alves (AAA), exibe uma grande candura em relação ao arquitecto de um projecto político «relaxado» com o aumento das desigualdades, com a especulação mais desenfreada e com a subversão dos serviços públicos por processos de engenharia mercantil. No fundo, AAA sabe bem que enquanto a «social-democracia» prosseguir nesse caminho continuaremos no plano inclinado que nos leva para as suas utopias de mercado temperadas com autoritarismo político. Como bem argumenta, Nigel Lawson do Compass («think-tank» da ala esquerda do Partido Trabalhista), agora «que o novo trabalhismo morreu» é altura de reconstruir um projecto político igualitário ambicioso. Isto é urgente que mais não seja porque a crise financeira parece sinalizar a necessidade de uma profunda mudança estrutural no modelo anglo-saxónico de capitalismo. Quando até Mervyn King, governador do Banco de Inglaterra, vem a público dizer que a explosão dos incentivos pecuniários na City de Londres tem grandes responsabilidades na actual turbulência financeira, sabemos que é altura de reformas estruturais que revertam décadas de fé no mercado e na empresa privada. Pode ser que daqui até às eleições legislativas o trabalhismo redescubra as razões do seu nome. Iniciativas como esta podem ajudar.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

1º de Maio


A esquerda italiana em estado de choque VIII

Se as eleições italianas de 13 e 14 de Abril tiveram um grande derrotado esse foi a coligação Esquerda Arco-Íris que juntava a Refundação Comunista (PRC), os Comunistas Italianos (PdCI), os Verdes pela Paz e a Esquerda Democrática (ala esquerda dos ex-DS que se recusou a aderir ao novo Partido Democrático).

Se é verdade que o Partido Democrático de Veltroni e os seus aliados do movimento Itália dos Valores (do ex-juiz DiPietro) não foram capazes de vencer a coligação liderada por Berlusconi, é de notar que o centro-esquerda praticamente manteve o número de votos face às eleições de 2006. Pelo contrário, os partidos à esquerda do PD reunidos em torno da coligação Arco-Íris (símbolo do movimento pacifista em Itália) viram-se reduzidos a cerca de ¼ dos votos obtidos há dois anos atrás, ficando sem qualquer representação parlamentar.

Embora não se esperasse a repetição do sucesso das anteriores eleições - realizadas no culminar de um período de grande mobilização das esquerdas, com o entusiasmo em torno do movimento alter-globalista, a contestação às guerras do Afeganistão e do Iraque e os protestos contra o governo de direita - poucos esperavam uma situação tão dramática neste final de Abril. O drama não é apenas político-simbólico - a vitória da direita populista, xenófoba e autoritária, e o primeiro parlamento italiano desde o pós-guerra onde não tem assento nenhum partido socialista ou comunista - mas é também de ordem pragmática - são às centenas os activistas políticos que ficaram sem emprego e significativa a redução de receitas partidárias associadas à perda dos assentos parlamentares.

Um dos grandes motivos de desmobilização do eleitorado Arco-Íris tem a ver com o facto de quase não se ter feito sentir a presença destes partidos no governo liderado por Prodi, o qual integraram desde as eleições de 2006. Por um lado, a prioridade política centrou-se no controlo do deficit orçamental, inviabilizando qualquer proposta que implicasse um aumento, mesmo que transitório, da despesa pública. Por outro lado, os partidos dominantes na coligação governamental prosseguiram uma linha moderada nos temas internacionais (e.g., a presença de tropas italianas no Líbano) e tendencialmente conservadora no que respeita aos direitos cívicos ou às relações com a Igreja, contrariando assim algumas das principais bandeiras da esquerda crítica.

Paradoxalmente, os partidos do Arco-Íris são também acusados por alguns dos seus eleitores de assumirem uma atitude excessivamente crítica e destabilizadora do 2º governo Prodi, contribuindo assim para o seu desgaste.

Difícil equilíbrio este para os partidos de esquerda, o de participar num governo em que as condições para prosseguir uma agenda própria são altamente limitadas (frustrando as expectativas dos seus apoiantes), mas em que as condições de estabilidade são de tal forma frágeis que qualquer tentativa de distanciamento é vista como irresponsabilidade ou traição. Para os eleitores mais críticos, os partidos do Arco-Íris não fizeram a diferença; para os eleitores mais moderados, não foram suficientemente colaborantes. Resultado: os partidos do Arco-Íris perderam votos para os partidos do centro e para a abstenção, ficando reduzidos a um conjunto de forças extra-parlamentares com destino incerto. Agora é tempo de questionar as opções estratégicas feitas pelos partidos da esquerda italiana nos últimos anos. (Continua)

quarta-feira, 30 de abril de 2008

A China e a crise II

BZ, do Insurgente, responde a um post meu, publicado em Setembro de 2007, onde defendi que, graças à sua forte regulação financeira, a China estava a escapar à crise financeira. BZ mostra um gráfico comparativo dos índices bolsistas americano e chinês. No último ano, a instabilidade do índice chinês é maior. Certo. Mas estará a China a viver uma crise financeira? Não, não está. Embora o sistema financeiro tenha sido obviamente afectado por perdas externas, não existe nenhum indício de que os seus bancos estejam no «vermelho», como assistimos nos EUA e na Europa. Pelo contrário.

BZ pretende avaliar um sistema financeiro baseando-se num mero índice bolsista. Não serve. O sistema financeiro chinês dificilmente se pode avaliar pelo que se passa na sua bolsa. Com mercados muito regulados, o financiamento da economia é feito sobretudo através de empréstimos bancários. A bolsa não exerce grande poder na restante economia.

Mas como explicar a abrupta queda do índice? Segundo a The Economist, esta queda é provocada pelas previsões de recessão nos EUA. Se os EUA entram em recessão a China exporta menos, logo as suas empresas não valerão o mesmo na bolsa. Ou seja, a queda na bolsa não reflecte fragilidades no sistema financeiro, mas sim receios de uma desaceleração da economia. Ainda assim, pelos últimos números, a economia chinesa parece bem saudável.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Até quando?

A comissão europeia confirma a desaceleração do crescimento económico até 2009. A medíocre trajectória da economia portuguesa desde o início do milénio continua. Indefinidamente. Isto significa que o desemprego vai permanecer na casa dos 8%. Também indefinidamente. O desemprego elevado ajuda a assegurar a perda continuada do poder de compra dos salários e a quebra do seu peso no rendimento nacional: «Estes três anos seguidos de aumentos salariais abaixo da inflação são o período mais longo de que há registo desde 1981 até agora» (Público). É a economia política do desemprego. Diz que ajuda à promoção das exportações. Duvido. Em muitos países que são destino das nossas exportações faz-se o mesmo. O resultado global só pode ser perverso: um mercado europeu desnecessariamente contraído por uma orientação de política que depende da sua expansão. Para além disso, a apreciação do euro lá se vai encarregando de corroer a competitividade da nossa economia. É evidente que neste brilhante contexto, Cavaco Silva, esquecendo as histórias dos seus governos, tem de alinhar com os ortodoxos da Comissão Europeia e do governo e apontar para o fim último da política económica deste lado do Atlântico: a assegurar que o défice das contas públicas não aumenta. Custe o que custar. Num cenário de estagnação e de grande instabilidade internacional, isto é convidar o governo a continuar a ser parte do problema. Indefinidamente.

A cereja em cima do bolo da extrema-direita italiana

O novo presidente da câmara de Roma é um pós-fascista, dirigente da Alleanza Nazionale, partido herdeiro do Movimento Social Italiano (fundado logo após a 2ª Guerra Mundial por destacados membros do regime de Mussolini) e recentemente integrado no novo partido do Povo das Liberdades de Berlusconi.

Tal como é costume nos dirigentes pós-fascistas, Gianni Alemanno cavalgou os recentes incidentes de insegurança na capital e prometeu mão pesada sobre o crime. A começar pelos imigrantes, pois claro.

A candidatura de centro esquerda, encabeçada por Rutelli, conseguiu o feito histórico de perder votos entre a primeira e a segunda volta das eleições. Talvez não por acaso, nos últimos 15 dias Rutelli esforçou-se por mostrar que estava tão ou mais preocupado do que a direita com a questão da segurança e dos imigrantes. Ou seja, quis jogar no campo do adversário e perdeu. Como, aliás, vem acontecendo ao Partido Democrático (que junta ex-comunistas, ex-democratas-cristãos, ex-socialistas, ex-liberais, ...) que de tanto querer parecer pós-ideológico perde votos à esquerda sem conseguir conquistar o centro. São tempos tristes em Itália para quem não se revê no racismo e na xenofobia, no autoritarismo e num estado securitário, para quem se atreve a acreditar na normalidade democrática, na paz e na justiça social.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

MGMT - Kids



O mais desconcertante grupo dos últimos tempos.

Vírus - Uma revista de combate

Já saiu o segundo número da revista de reflexão à esquerda"Vírus". De entre os vários artigos, lá encontrarão um sobre privatizações da minha lavra (com o Gustavo Sugahara). Boas leituras.

As instituições contam: a política das desigualdades nos EUA

Frank Levy e Peter Temin são economistas norte-americanos do prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT). Escreveram recentemente um excelente artigo que os neoliberais e os deterministas de todos os partidos deveriam ler. O seu objectivo é explicar o contraste, para os EUA, entre o período de «prosperidade partilhada», iniciada com as políticas do New Deal, e que vai da 2ªGM até aos anos setenta e o período que vai do final dos anos oitenta até à actualidade. Este último é marcado por um assinalável desfasamento entre o crescimento da produtividade e o crescimento dos salários e por um brutal aumento das desigualdades, com a percentagem do rendimento captado pelos 1% que estão no topo a passar de 8,2% em 1970 para 17,4% em 2005. Tudo isto é conhecido. A explicação para este fenómeno é que é mais controversa. E é aqui que este estudo é muito útil porque vem dar peso à perspectiva institucionalista, até há pouco defendida apenas por um punhado de economistas políticos mais ou menos radicais: «argumentamos que a distribuição de rendimentos em cada um dos períodos foi fortemente moldada por um conjunto de instituições económicas. Os anos do pós-guerra foram dominados pelos sindicatos, um quadro negocial (. . .), impostos progressivos e um salário mínimo elevado - tudo parte de um esforço governamental para distribuir os ganhos do crescimento. Os anos mais recentes foram marcados por reversões em todas estas dimensões, num padrão que ficou conhecido por Consenso de Washington». Ou por neoliberalismo.

Isto melhora: os autores argumentam convincentemente que as explicações convencionais para o aumento das desigualdades - globalização ou o progresso tecnológico que criou um enviesamento nas qualificações requeridas - só funcionam se se levar em linha de conta as modificações institucionais acima referidas. É também interessante a análise comparativa em termos de eficiência das duas soluções: estilhaçam-se muitos preconceitos ainda em voga entre os economistas. O aumento das desigualdades é assim produto de «mudanças na política económica» com impactos nos arranjos prevalecentes. Não há inevitabilidades dizem os autores. Muito depende da luta social. Afinal de contas, a economia não é uma máquina, mas sim um conjunto de relações sociais potencialmente contestadas. Sempre assim foi e sempre assim será.

domingo, 27 de abril de 2008

A esquerda italiana em estado de choque VII

Enquanto a direita populista, pós-fascista e xenófoba ocupava o espaço político dos partidos tradicionais que implodiram na sequência da operação ‘mãos-limpas’ (DC e PSI, nomeadamente), a esquerda ‘reformista’ revelava-se incapaz de construir um discurso claro, distintivo e mobilizador do eleitorado do centro esquerda. Ninguém conseguiu sintetizar melhor esta situação do que Nanni Moretti no seu filme Aprile, numa cena em que, desesperado ao ver Berlusconi propagar os seus mitos num debate televisivo entre os principais candidatos às eleições de 2001, grita para o líder do centro esquerda: «D’Alema, diz uma coisa de esquerda, diz uma coisa mesmo que não seja de esquerda, de civilidade, diz qualquer coisa, reage!».


A incapacidade da esquerda 'reformista' italiana para construir um discurso claro, distintivo e mobilizador resulta de um misto de trajectória histórica, de opções estratégicas, de inabilidade comunicacional e de um contexto em que os principais meios de comunicação são sistematicamente utilizados a favor do principal adversário.

Como escrevi num post anterior, a esquerda italiana foi dominada pelo PCI desde o pós-guerra. Depois de 3 décadas na oposição, apesar de uma indiscutível força eleitoral e social, os dirigentes do partido decidiram em meados da década de 1970 que havia chegado o momento de participarem directamente na governação do país. Esta opção estratégica tem guiado a linha de actuação dos herdeiros do PCI até hoje.

Quando o PCI se transformou em PDS (Partido Democrático de Esquerda) em 1991, o novo partido não levou consigo apenas a maioria da direcção do partido e a maioria dos delegados ao congresso em que a decisão foi tomada. Grosso modo, toda a estrutura de influência política e social que havia sido construída pelo PCI - incluíndo aquilo que ainda hoje são a principal confederação sindical italiana (CGIL), a maior associação recreativa e cultural (ARCI), a maior cooperativa de distribuição do país (Coop), para não falar das sedes locais, regionais e nacionais do partido, das editoras, livrarias, jornais, revistas e outros instrumentos da intervenção do PCI na sociedade italiana - ficavam agora sob influência do novo partido.

O objectivo da mudança de nome e de símbolos era, obviamente, o de distanciar aquele partido da imagem associada à história do comunismo, num esforço de atrair o eleitorado centrista. O desaparecimento da URSS em 1991 e o colapso dos partidos italianos do centro-direita acentuariam esta trajectória: o primeiro evento convidava a um corte mais radical com a história do comunismo (o símbolo do PCI, que surgia em versão reduzida no símbolo do novo PDS foi definitivamente abandonado); o segundo evento reforçou o sentido de urgência de conquista do centro político em Itália.

Mas, para o PDS, conquistar o eleitorado não comunista não era tarefa fácil: os eleitores dos ex-PSI e ex-DC haviam sido educados numa retórica estritamente anti-comunista, e a sua relutância em apoiar aqueles que durante décadas tinham sido vistos como agentes ao serviço dos interesses soviéticos era grande. De facto, os principais líderes do PDS - incluindo D'Alema, Fassino e o próprio Veltroni (recentemente derrotado nas eleições) - foram dirigentes do PCI durante mais de uma década até à mudança de nome e de linha política do partido. E Berlusconi, com os vastos meios de comunicação que controla, nunca deixou esquecer este facto, usando até hoje o termo 'comunistas' para se referir àquele grupo de dirigentes.

Tais dificuldades não impediram os dirigentes do ex-PCI de se manterem fieis à linha inicialmente traçada, ou seja, a busca do poder por aproximação ao centro. Nesse sentido, procuraram diluir ainda mais a identidade do partido e aligeirar a sua ampla estrutura de influência social e política: primeiro com a transformação do PDS em DS (Democratas de Esquerda), procurando afastar-se do modelo de partido de forte presença orgânica na sociedade italiana (aderindo a um modelo de 'partido ligeiro'); depois, com a construção de uma coligação com os segmentos da ex-DC e do ex-PSI que não haviam aderido às novas direitas, colocando figuras destacadas oriundas desses campos à cabeça das listas eleitorais (daí Romano Prodi); finalmente, fundindo os DS com sectores da democracia-cristã, do ex-PSI e dos radicais-liberais num Partido Democrático, que apresenta o homónimo americano como exemplo a seguir.

Os resultados desta estratégia de diluição do ex-PCI não têm sido os melhores. Por um lado, o preço a pagar pela atracção dos sectores centristas tem sido a adopção de um discurso que em pouco se distingue do produzido pelo centro-direita - sendo até, por vezes, mais liberal no campo económico e mais conservador no campo dos valores. Por outro lado, o abandono dos símbolos, de um projecto e de uma estrutura de intervenção crítica na sociedade não tem sido recompensado no campo eleitoral - o 'perigo comunista' continua a ser acenado à direita e a afastar os eleitores mais conservadores. Finalmente, esta estratégia esvaziou o espaço eleitoral à esquerda, limitando, simultaneamente, a possibilidade da sua ocupação por outras forças - seja pelo domínio que os ex-DS mantêm de muitas estruturas e recursos de intervenção social, seja pelo permanente apelo ao voto útil (sobre a incapacidade da 'esquerda de protesto' de contrariar esta dinâmica escreverei noutro 'post').

sábado, 26 de abril de 2008

O fracasso da engenharia neoliberal

No dia 19 de Março, José Sócrates deu finalmente razão à esquerda socialista quando reconheceu publicamente a total irresponsabilidade das parcerias público-privadas (PPP) no sector da saúde: «Há uma grande dificuldade em fazer os contratos, o Estado gasta uma fortuna para vigiar o seu cumprimento e nunca foi possível eliminar a controvérsia. Por isso, é melhor o SNS ter gestão pública». Passadas algumas semanas, o Tribunal de Contas divulgou um relatório devastador para as PPP no crucial sector rodoviário. O relatório assinalava, entre outras coisas, a total falta de controlo dos contratos, a escassez de recursos humanos afectados a estas tarefas e a total submissão aos interesses dos grande grupos económicos rentistas. Isto num sector onde o Estado espera investir, através de PPP, 17 mil milhões de euros nos próximos vinte anos. O resto pode ser lido aqui.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Pedro Lains e a história - Resposta do Prof. José Reis

Pedro Lains, economista e investigador do ICS, inaugurou um blogue onde reage ao texto publicado no Le Monde Diplomatique pelo Professor José Reis (Universidade de Coimbra), criticando a abordagem histórica aí feita do período imediatamente anterior ao 25 de Abril. Publicamos abaixo a resposta do Professor José Reis que gentilmente acedeu ao convite que lhe dirigimos.



Pedro Lains e a história

Pedro Lains decidiu conceder atenção ao texto que publiquei na edição portuguesa de Le Monde Diplomatique, coisa que muito sinceramente lhe agradeço, tanto pessoal como academicamente. Ele é autor de uma obra valiosa (embora discutível, como qualquer outra) e isso dá peso aos seus comentários. Depois de deixar entender que lhe pareceria justificado que o texto não tivesse visto a luz do dia, declarou, a propósito do que eu escrevi, com a autoridade própria dos sacerdotes: «tantos mitos, tanta confusão»! (o ponto de exclamação é meu, e eu sou o herege que perturbou o que Pedro Lains quer solidamente instalado). Qual é o motivo de tal heresia? O que é que Pedro Lains quer pôr na ordem? Está devidamente sublinhado a azul (vá lá . . .) na transcrição que fez no seu blog e é o seguinte: eu escrevi que nos anos 60, apesar de um processo intenso de industrialização, não houve em Portugal «uma modernização do conjunto da sociedade. Não assistimos a um alargamento dos mercados de trabalho, nem da qualificação das pessoas, nem do seu bem-estar».

Há, pelos vistos, uma controvérsia sobre os anos 60. O meu ponto de vista é muito simples: sabendo-se, como todos sabemos e eu recordei, que essa é uma fase de crescimento e industrialização, o que é que vale o facto de tal industrialização ter sido contemporânea de uma intensa emigração, isto é, da deslocação de volumes significativos de mão-de-obra para as economias europeias que tinham criado mercados de trabalho amplos e generalizado o bem-estar? Não significa nada? Ficamos a glorificar os «factos característicos do crescimento» e paramos aí a conversa? Pedro Lains que o faça. Ou que se limite a acrescentar, como quiser, umas nuances à sua análise. Mas eu não faço isso. Porque sei que na década de 60 o emprego total em Portugal só em dois anos é que cresceu na casa dos 2% e houve 5 anos em que cresceu menos de 1%. O PIB, esse, crescia a taxas elevadas, superiores, em termos médios, à casa dos 5% que Pedro Lains nos indica para o período 1952-73. E não posso esquecer que, ao lado do crescimento e da industrialização, houve emigração massiva, uma enorme debilidade dos mercados de trabalho para acolherem a população que estava a sair da agricultura. E também sei que essa emigração foi largamente clandestina e que a democratização económica, vista pelo acesso ao consumo ou às políticas públicas, foi tão débil que éramos nessa época o país que todos sabemos: na educação, na saúde, nos direitos mais elementares à inserção na sociedade (não duvido, claro, que ambos tenhamos a mesma opinião sobre o significado de não haver democracia política).

Para Pedro Lains isto é apenas o lado acessório, o pormenor a acrescentar. O que é que ele esperava? Que estando o produto a crescer a taxas elevadas e as indústrias de base (siderurgia, cimentos, química, mais tarde construção naval) a consolidar-se não acontecesse nada? Que havendo taxas elevadas de investimento em capital físico isso não se reflectisse em nada? Claro que reflectiu: criou-se mais emprego que antes, mas pouco, distribuiu-se rendimento sob a forma de salários mais elevados, mas eles mantinham um nível baixo, a mão-de-obra das novas actividades assumia novas qualidades, mas os níveis de qualificação mantiveram-se baixíssimos. Basta ver o peso da alimentação na estrutura de despesas das famílias . . .

Mas não foi esta a única heresia («confusão», «mito»!) que incomodou Pedro Lains. Eu também disse (pois disse...) que, por causa de tudo isto ,«a internacionalização da economia se fez primeiro e mais intensamente pela exportação de mão-de-obra do que pela exportação de produtos ou serviços». Qual é a dúvida? Sobre o peso das exportações no PIB os meus dados são os do site do Banco de Portugal. E se lá não encontro a passagem de 17% para 30% entre 1960 e 1970 que Pedro Lains assume, também não vou agora discutir números. O que sei é que as exportações de mercadorias se limitaram a passar de 10% para 13% do PIB neste período de industrialização, enquanto a emigração se contou por centenas de milhares de pessoas. Não sabemos comparar as duas coisas?. É aqui que eu baseio a minha afirmação de que os mercados de trabalho europeus internacionalizaram mais a economia portuguesa, através da emigração, do que as exportações da nossa indústria.

Aparentemente, nada disto deveria ser matéria para grandes incómodos («mitos», «confusões»!), visto que se conhecem razoavelmente os contornos da economia e da sociedade. As coisas têm, aliás, a sua lógica e as explicações assentam em complementaridades inevitáveis entre as várias dimensões em presença. Mas não. O problema é que há quem queira ver na economia portuguesa dessa época um «tigre» europeu, fixar aí uma golden age do nosso desenvolvimento. E quem queira transformar essa leitura em ortodoxia com a qual se julgam os desviantes. E, aqui, é verdade que Pedro Lains tem razão em reagir ao meu texto. Eu conto-o, de facto, entre os investigadores que nos oferecem um imagem da história económica portuguesa anterior ao 25 de Abril altamente discutível, uma história em que se idealiza uma economia poderosa e se ignora a sociedade, a política, a vida das pessoas. Por isso é uma história parcial. A minha divergência é enorme. Mas não resolvo, por isso, chamá-lo gerador de confusões ou mitos. Limito-me a discordar e a classificar a abordagem como parcial. Aceito e aprecio que o incómodo de Pedro Lains o leve a discutir e a polemizar. Não faz sentido é declarar, sobranceiro, a confusão alheia. Aí tenho que lhe dizer que bateu à porta errada. Por isso, pode contar com o meu gosto pela controvérsia e com a minha frontalidade. Não pode é contar com o meu silêncio. Se quiser podemos prosseguir. Tenho gosto nisso e respeito quem discute.

O 25 de Abril faz hoje 34 anos. E não se trata de uma simples data simbólica.

Coimbra, 25 de Abril de 2008

A esquerda italiana em estado de choque VI

Imaginemos que desde alguns anos as investigações judiciais vinham revelando as relações perigosas envolvendo o crime organizado, instituições da Igreja, a maçonaria e alguns dirigentes políticos. Imaginemos que no espaço de alguns meses centenas de políticos, entre os quais quatro antigos primeiros-ministros, eram constituídos arguidos por corrupção e financiamento ilegal dos partidos, que muitos confessariam os crimes, outros se suicidariam na prisão, outros ainda fugiriam do país. Imaginemos que, de repente, os principais partidos que tinham gerido o Governo do país durante os últimos 50 anos deixavam de ter qualquer líder de relevo que pudesse ser apresentado como sério e incorrupto. Imaginemos ainda que se tornava público que o único dos grandes partidos que conseguiu escapar às acusações de corrupção tinha beneficiado durante anos do financiamento por parte de uma potência externa, apesar do seu declarado afastamento face à ideologia e às práticas de governo dessa potência.

O resultado na Itália de há 15 anos atrás foi aquele que seria de esperar na generalidade dos países: uma descrença generalizada no sistema de partidos existente e uma predisposição para a identificação com os discursos daqueles que se apresentavam como uma ruptura face ao sistema caduco.

A descrença afectou acima de tudo a Democracia Cristã e o Partido Socialista. Foi nesse espaço político que surgiram os partidos que estão hoje no governo: a Forza Itália de Berlusconi apresentava-se como um movimento de empresários bem-sucedidos, sem ligações à política, que se propunham governar o país como geriam as suas empresas de sucesso (na verdade, Berlusconi era já um empresário com ligações ao poder, nomeadamente ao PSI de Craxi, mas isso à época não era conhecido); a Lega Nord de Bossi aproveitava o descrédito dos políticos para atacar a distante Roma como corrupto sugadouro da riqueza produzida a norte; o antigo Movimento Social Italiano, partido mussoliniano liderado por Fini, aproveitava para se reciclar em Alleanza Nazionale e para se apresentar como uma força moderada de direita, capaz de representar aqueles que a Democracia Cristã então deixava órfãos, politicamente falando.

Enquanto o espaço do centro e da direita (que tipicamente absorvia ¾ dos eleitores) era assim renovado com o surgimento de novos partidos e novos protagonistas, à esquerda restava apenas o ex-PCI (agora PDS), com as caras de sempre e marcado pelos preconceitos de sempre, e abalado por dissensões relacionadas com a alteração de rumo político, ideológico e simbólico.

Foi apenas há 15 anos atrás, tempo insuficiente para que Berlusconi, Bossi e Fini deixassem de poder cavalgar a onda do populisto anti-política e do anti-comunismo. Tempo insuficiente, também, para a esquerda encontar um novo rumo.

Liberdade, descolonização, democracia, desenvolvimento

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Dez anos depois

«Passam dez anos sobre a fixação da taxa de conversão entre o escudo e o euro. Há ainda muitos sinais da velha moeda portuguesa ? Quase 40 milhões de contos estão por trocar. A moeda única está a ser boa para Portugal e para os portugueses? Como seria o país se não tivéssemos o euro?». No Expresso desta semana. É uma data importante. Será bom lembrar o que foi prometido. E comparar com a mediocridade do que foi alcançado. Lembrar quem criticou todo o processo de convergência nominal que nos levou à moeda única. Quem alertou para as consequências de uma arquitectura do governo económico absolutamente desequilibrada. Quem avisou para os perigos de tomar uma decisão com esta importância sem um debate digno desse nome. De repente, lembro-me de alguns economistas: Francisco Louçã, João Ferreira do Amaral, Octávio Teixeira ou Sérgio Ribeiro. Eu estava no ISEG nessa altura. E no ISEG organizou-se um referendo à moeda única. Perdemos, mas ali discutiu-se a sério. Pena que só tenha sido no ISEG. E, no entanto, a moeda única pode ser uma excelente ideia: com um banco central com outros estatutos, com um orçamento comunitário a sério (como foi possível ter-se avançado com um orçamento residual e incapaz de efectuar transferências com impacto para as «regiões» em dificuldades?), com harmonização fiscal ou com regulação da esfera financeira à escala europeia. A social-democracia avançou para a moeda única com o voluntarismo de quem acha que o resto vem naturalmente por acréscimo. Não vem. A economia portuguesa pagou um preço elevado por estas aventuras. E vai continuar a pagar. E o projecto europeu também.

A esquerda italiana em estado de choque V

Muitos, dentro e fora de Itália, se questionam sobre o motivo pelo qual a esquerda não conseguiu em 2006 (e ainda menos em 2008...) o apoio eleitoral necessário para governar de forma estável. É difícil compreender como é que os italianos continuam a votar maioritariamente numa coligação liderada pelo homem mais rico de Itália, que usa descaradamente a cadeira do poder em benefício pessoal e familiar, que mostra recorrentemente uma total falta de dignidade e bom senso nas suas intervenções públicas, que se alia a uma direita xenófoba e com tendências fascizantes e que está longe de demonstrar que consegue compensar todos estes defeitos com uma governação que responda aos problemas fundamentais que a Itália enfrenta.

A resposta a esta questão é tudo menos simples. Eu tenderia a realçar como factores mais relevantes os seguintes: os efeitos profundos e duradouros da operação 'mãos limpas’ no início dos anos 90; a capacidade da direita para ocupar o espaço deixado livre pelo colapso dos partidos dominantes desde o pós-guerra; a incapacidade da esquerda ‘reformista’ de construir um discurso claro, distintivo e mobilizador; a utilização sistemática e bem-sucedida por Berlusconi da comunicação social sob seu controlo para atacar os oponentes e para promover a sua imagem; a opção das esquerdas (a 'reformista' e a 'radical', para simplificar) por um modelo de intervenção política assente na personalização e no mediatismo; inversamente, a capacidade de parte da direita para intervir na sociedade italiana através de uma sólida presença junto das populações; finalmente, os problemas enfrentados pela economia italiana e a exploração populista por parte da direita do medo e da incerteza crescentes.

Cada um destes tópicos merece uma discussão mais detalhada, a seguir em próximos ‘posts’.

Quem recebe o doce?

A legislação laboral é matéria complexa. Tudo se joga nos detalhes. E as alterações levam tempo a perceber. Para já, quem acompanha o assunto deu destaque à criação de incentivos, através da alteração da taxa social única, para reduzir o uso e abuso dos contratos a prazo e dos recibos verdes. Positivo, mas curto. As questões da contratação colectiva, das regras que a definem e do que ela pode definir ou o enquadramento dos despedimentos são mais difíceis de avaliar. Sobre isto vale a pena ler o editorial de Pedro Guerreiro no Jornal de Negócios. Apesar de considerar, muito estranhamente, que o capitalismo é amoral, sabe bem que os arranjos que o definem e estruturam reflectem julgamentos de valor e têm sempre consequências para a vida das pessoas (como podem as relações económicas ser amorais?). Muito parece então depender da interpretação que for dada à inadaptação «por alteração da estrutura funcional do posto do trabalho». Pedro Guerreiro dá «um doce a quem explicar o que isto significa. Pode ser tudo ou nada, parecendo nada ou tudo». Pode ser que Van Zeller tenha direito a um doce: «Para o presidente da Confederação da Industria Portuguesa (CIP), Francisco Van Zeller, a proposta do Governo ‘é bastante profunda e não é cirúrgica’ como os patrões temiam» (Público). Mas pode ser que não. Até porque «nunca nada está encerrado no campo das relações laborais» (John Commons).

quarta-feira, 23 de abril de 2008

A crise da UE

«Estamos perante uma crise com natureza e dimensão muito difíceis, com conflitos em várias partes do mundo e com uma crise financeira que tem ainda um quadro muito complexo para que se percebam os seus contornos». A crise, sempre a crise. Agora serve a Luís Amado para justificar a expedita aprovação do Tratado de Lisboa. É uma estratégia a que o «socialismo moderno» já nos habituou. O compromisso vale muito pouco. Mas experimentemos levar a sério o argumento do ministro: alguém é capaz de me indicar um instrumento que este tratado introduza e que coloque a UE em melhor posição para combater a crise? Os estatutos do BCE foram modificados? O Pacto de Estabilidade foi abolido? Avança-se alguma coisa na regulação dos mercados financeiros? Claro que não. Na realidade, como já procurei argumentar (por exemplo, aqui e aqui), este tratado não inverte, longe disso, o processo global de aproximação da União Europeia a um modelo neoliberal de capitalismo cujas fragilidades socioeconómicas se tornam agora particularmente evidentes. Que tudo isto se faça sem um amplo debate público, que só um referendo geraria, apenas serve para reforçar a ideia de que a UE está hoje refém de um utópico e anti-democrático vanguardismo liberal que pode acabar por minar todo o projecto europeu. Blair segue dentro momentos.

A esquerda italiana em estado de choque IV

Face aos resultados das eleições de 2006, era claro para todos que o novo governo Prodi duraria pouco. A escassa maioria obtida nas duas câmaras do parlamento (em particular no Senado, onde o governo dependia dos votos dos senadores vitalícios para fazer passar as suas propostas), associada à diversidade de formações políticas coligadas na L'Unione - onde se incluíam os ex-comunistas convertidos em ‘reformadores’ (DS), ex-democratas-cristãos convertidos em centristas (Margherita), verdes pacifistas, dois partidos comunistas (PRC e PdCI), radicais e outras pequenas formações - não permitiam prever outra coisa.

Aquilo que conduziu à coligação de forças políticas tão diversas (para além do habitual oportunismo daqueles que viam a vitória desta coligação em 2006 como certa) foi, acima de tudo, a urgência de expulsar do Governo a direita de Berlusconi e dos seus aliados pós-fascistas e autonomistas (urgência essa que era patente no eleitorado de esquerda e centro-esquerda).

Por seu lado, a revisão da lei eleitoral orquestrada pelo segundo Governo Berlusconi nas vésperas das eleições colocava a esquerda numa posição difícil. O novo arranjo não só representava um regresso ao sistema proporcional (dificultando a existência de maiorias estáveis), como obrigava as várias forças políticas a anunciar antecipadamente o seu candidato a chefe do governo, isto num contexto em que a união à direita era muito mais fácil de conseguir do que à esquerda. Sobre esta reforma eleitoral, o dirigente da Lega Nord que a conduziu resumiu recentemente, de forma bastante elucidativa, a sua acção: «ho fatto una porcata!», disse.

Perante isto, e face à necessidade de reunir na mesma plataforma partidos com posições tão díspares relativamente a questões concretas da política italiana - das leis laborais à política externa, da relação com a Igreja Católica aos direitos civis, dos serviços públicos às questões ambientais - a coligação liderada por Prodi não conseguiu estabelecer um programa mínimo que vinculasse a acção das várias forças que a compunham.

Depois de 30 moções de confiança em 20 meses e de muita tensão entre as forças políticas da maioria, Prodi acabaria por cair graças à deslealdade de um pequeno partido liderado por um personagem pouco recomendável do Sul do país (o líder da Udeur está indirectamente implicado num conjunto de processos judiciais por tráfico de influências). Era o início de Berlusconi III.

terça-feira, 22 de abril de 2008

A esquerda italiana em estado de choque III

Nos cinco anos que durou o segundo mandato de Berlusconi à frente do governo Italiano (2001-2006) assistimos a alguns dos momentos mais lamentáveis da politica transalpina desde o pós-guerra e, simultaneamente, ao desenvolvimento de novas dinâmicas sociais e reflexões politicas que constituíram um exemplo para a esquerda europeia.

Acusado pela justiça por inúmeros crimes económicos e por tráfico de influências, Berlusconi fez o que estava ao seu alcance para se ver livre do que apelidava de ‘perseguição pessoal e politica conduzida pelos juízes comunistas’. Sem sombra de pudor, reduziu o tempo de prescrição judicial à medida dos processos que o envolviam, descriminalizou as práticas de fraude contabilística e outros crimes económicos, e ajustou a lei das incompatibilidades dos políticos à necessidade de controlo do império comunicacional de que é proprietário. A nível internacional a sua imagem ficou ligada a sucessivas ‘gaffes’ de mau gosto (como aquela em que chamou chefe das SS a um eurodeputado alemão que o questionava no Parlamento de Estrasburgo). A política ‘séria’ deixou-a ao cuidado do seu principal parceiro de coligação, Gianfranco Fini, líder da Alleanza Nazionale (ex-fascistas), que procurou deixar a sua marca em diversas leis repressivas (e.g., limitação da possibilidade de redução de penas, reforço do proibicionismo em relação ao consumo de drogas, etc.).

Ao mesmo tempo que Berlusconi usava o governo para prosseguir os seus interesses pessoais e os ex-fascistas mostravam as suas garras na frente securitária, a esquerda italiana vivia um dos momentos mais activos e mobilizadores das últimas décadas. Na sequência dos protestos de Génova em 2001, aquando da reunião do G8, o movimento alterglobalista ganhou uma visibilidade e uma capacidade de mobilização raras. A força deste movimento fez-se sentir em varias ocasiões, como no protesto popular contra as guerras do Afeganistão e do Iraque (em que milhões de italianos, desde os vales dos Alpes às vilas costeiras da Sicília, colocaram nas suas janelas, durante meses, bandeiras com as cores do arco-íris em sinal de adesão ao protesto), na manifestação convocada pela CGIL que levou a Roma 3 milhões de pessoas em luta contra a liberalização da regras laborais (obrigando Berlusconi a recuar) ou ainda no Fórum Social Europeu de Florença, onde dezenas de milhares de activistas de várias causas se juntaram para trocar ideias e experiências, e procurar vias alternativas ao modelo de desenvolvimento neoliberal.

Quando chegaram as eleições de 2006, toda a esquerda se sentia preparada para expulsar Berlusconi e os seus aliados do poder, dando um rumo responsável e mais democrático à governação de Italia. Berlusconi também o percebeu - e tratou de minar devidamente o terreno. Antes de abandonar o poder procedeu a uma alteração da lei eleitoral com o objectivo declarado de perturbar a estabilidade do governo sucessivo.

O que poucos esperavam é que o novo Governo Prodi, eleito em 2006 com o apoio das várias esquerdas, fosse obrigado a viver com uma margem tão escassa no Senato Italiano. Logo após as eleições muitos perceberam o estado de fragilidade em que se encontrava a esquerda, agora no poder. Os festejos associados à derrota de Berlusconi e seus aliados não conseguiam, por isso, esconder que a esquerda italiana se encontrava, ainda e outra vez, em estado de choque.

Globalização no Divã

Um grupo de «jovens» investigadores (das áreas da antropologia, biologia, economia, história e sociologia) reuniu-se para explorar um tópico sempre tão fácil de definir e de circunscrever - a globalização. O resultado é A Globalização no Divã. Um livro que deve tudo ao diligente trabalho de coordenação do Renato Carmo, do Daniel Melo e do Ruy Llera Blanes. Eu e o Nuno Teles, com o artigo «Globalização e utopia de mercado - o ‘vício ricardiano’ à prova da história», limitámo-nos a fazer de economistas heterodoxos: as virtudes irrestritas do chamado comércio livre como meio para o desenvolvimento são manifestamente exageradas e uma política proteccionista bem temperada e temporária pode ser bastante útil. A Globalização no Divã já está disponível numa livraria perto de si.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A inflação não é a mesma para todos

Já se suspeitava, mas o Público quantificou o fenómeno. Quanto menor o rendimento maior a inflação sofrida. Para os 10% dos agregados familiares mais pobres, a inflação homóloga rondou os 3,5%, enquanto para o decil mais favorecido esta foi de 3%. A razão é simples: os preços têm subido de forma mais acentuada nos bens essenciais que, por serem essenciais, são consumidos em quantidade igual por todas as famílias, independentemente dos seus rendimentos. Em causa estão sobretudo os alimentos e a habitação. E, conforme salienta o artigo assinado por Sérgio Aníbal, as diferenças entre taxas de inflação seriam ainda mais acentuadas caso os cálculos levassem em conta a desagregação dentro da classe de bens alimentares, onde os bens fundamentais (como o leite ou o pão) sofreram os maiores aumentos.

'Fome e acção pública'

As subidas imparáveis dos preços dos produtos agrícolas à escala global estão a ter consequências trágicas entre os grupos sociais que são «compradores líquidos» de bens alimentares nos chamados países em vias de desenvolvimento: «para as classes médias a crise implica um corte nas despesas médicas. Para os que vivem com dois dólares por dia implica cortar no consumo de carne e tirar as crianças da escola. Para os que vivem com um dólar por dia implica cortar na carne e nos vegetais e consumir apenas cereais. E para os que vivem com cinquenta cêntimos por dia, a crise é o desastre total» (The Economist). O espectro da fome alastra. Como sublinhou Amartya Sen, um dos economistas que mais percebe do assunto, a fome não significa que não existam alimentos suficientes para alimentar toda a gente; a fome significa que existem pessoas que não têm acesso a alimentos. Por isso é que a acção pública que garanta a sua distribuição directa ou a distribuição de recursos que permitam a sua aquisição é crucial. Aqui não convém confiar inteiramente nos resultados do mercado. Até porque o mercado não responde às necessidades, mas sim à procura suportada por dinheiro. E a reacção da produção ao aumento de preços é lenta, muito lenta. O argumento liberal de que a responsabilidade deve ser assacada às «intervenções» governamentais no sector agrícola esquece que a liberalização e abertura comerciais irrestritas nesta área poderiam gerar um aumento dos preços. Precisamos de tudo menos disso neste momento. A prazo não há alternativa à recomendação da FAO: «a combinação de crescimento económico com uma distribuição mais igualitária de rendimentos é condição necessária para vencer a fome».

domingo, 20 de abril de 2008

Perguntas socialistas

«[S]ão cada vez em maior número os trabalhadores que estão no limiar da pobreza e que procuram o Rendimento Social de Inserção. Não se trata de desempregados mas sim de trabalhadores. É uma realidade grave. Não é obrigação de um governo socialista criar condições para que cada trabalhador tenha um salário digno que lhe permita uma vida digna? Já não é possível viver do trabalho? Como se pode aceitar que os baixos salários e a precarização do trabalho aumente a pobreza?». Ana Benavente, militante do PS, em artigo no Público de hoje.

sábado, 19 de abril de 2008

Regulação e cepticismo

Vale a pena ler o artigo de Vital Moreira no Diário Económico. É sobre a necessidade de regular o capitalismo financeiro global: «A verdade, porém, é que há mais modalidades de economia de mercado do que o liberalismo radical quer admitir e que as grandes esperanças numa economia essencialmente entregue a si mesma, como manda a ortodoxia dominante, não se tornaram realidade. Em especial no que respeita ao moderno capitalismo financeiro global, ou ele é adequadamente regulado pelos Estados e/ou por instâncias internacionais, ou corre sérios riscos de crises mais ou menos agudas e prolongadas». O capitalismo financeiro global tem gerado um cortejo de crises «mais ou menos agudas e prolongadas» e se não for superado vai continuar certamente a fazê-lo. Para além disso, está associado, como já várias vezes aqui argumentei, às tendências fortes de polarização social e de corrosão da democracia. É por isso crucial falar de regulação e de controlo das actividades financeiras. Trata-se agora de saber que formas de acção pública devem ser adoptadas. Não me parece que seja suficiente alargar o âmbito da chamada regulação prudencial que se limita a tentar enquadrar as aventuras do capitalismo financeiro global, aceitando mais ou menos passivamente a sua existência e os seus mecanismos de funcionamento. Estou do lado dos «cépticos financeiros». A evidência que se vai acumulando mostra a sensatez de uma posição que até há pouco tempo era ultra-minoritária e apodada de irremediavelmente anacrónica pelo coro de entusiastas dos «mercados»: «[os cépticos financeiros] não estão tão convencidos que a recente inovação financeira tenha criado ganhos significativos (excepto para o próprio sector financeiro) e duvidam que a regulação prudencial possa alguma vez ser suficientemente eficaz. A verdadeira prudência exige que os reguladores beneficiem de um conjunto mais amplo de instrumentos de acção, tais como tectos quantitativos, taxas sobre transacções, restrições à securitização, proibições ou outras inibições directas às transacções financeiras - sendo todos eles um anátema para a maioria dos intervenientes dos mercados financeiros» (Dani Rodrik no Jornal de Negócios).

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A esquerda italiana em estado de choque II

A primeira experiência de Berlusconi no poder (1994-1995) foi breve. Como muitos antes dele e alguns mais recentemente, foi vítima de um sistema político em que uma miríade de pequenos partidos tem frequentemente o poder de fazer cair o governo. Mas foi o tempo suficiente para as novas formações partidárias na politica italiana - nomeadamente à direita, onde surgiram um partido liberal-populista apoiado pelos empresários (ou candidatos a sê-lo), outro de ex-fascistas com forte implementação no aparelho de Estado e outro ainda independentistas com um discurso xenófobo dirigido às populações do norte do pais - se instalarem.

Aos ex-comunistas, que haviam optado por uma estratégia centrada na conquista do poder a qualquer custo, restava coligar-se com os despojos moderados dos ex-democratas cristãos e dos ex-socialistas. A coligação liderada por Prodi, que chegou ao poder em 1995, era assim composta por uma miscelânea de sensibilidades, nas quais indivíduos e grupos que haviam sido adversários durante décadas se viam forçados à convivência. Mesmo esta coligação improvável não garantia a estabilidade parlamentar, forçando Prodi a depender do apoio parlamentar dos pós-comunistas do Partido da Refundaçao Comunista e de outras formações de diferentes orientações. Prodi não resistiu, forçando a procura de novas coligações governamentais, cada uma mais instável que a outra, erodindo a pouco e pouco a imagem dos partidos no poder durante a segunda metade da década de 90 - em particular os ex-comunistas da DS.

Ao mesmo tempo, Berlusconi usava as suas empresas de comunicação para fazer um ataque cerrado à DS e seus aliados, e para promover a sua imagem. Fiéis a uma estratégia há muito delineada, os dirigentes da DS faziam o que podiam para se apresentarem à opinião publica como uma força responsável e moderada. A cada acusação de 'comunistas' - a preferida de Berlusconi - reagiam com posições e afirmações que os afastavam dos eleitores mais à esquerda, sem por isso conquistarem os eleitores de direita (desconfiados dos ex-'papões vermelhos').

Instabilidade politica, descaractetização ideológica e políticas impopulares tiveram o resultado esperado: o segundo governo de Berlusconi eleito em 2001 (o primeiro desde o pós-guerra a durar uma legislatura inteira). A esquerda italiana ficou mais uma vez em estado de choque.

As consequências das utopias de mercado

Este expressivo gráfico, roubado de uma posta de Miguel Botelho Moniz do Insurgente, compara o crescimento cumulativo para diferentes segmentos de rendimentos (dos mais pobres aos mais ricos) em dois períodos cruciais da história do pós-guerra nos EUA. É de fazer corar de vergonha a direita intransigente. E não me parece que ponha em causa o estudo que compara o crescimento médio dos diferentes percentis de rendimento nas administrações democratas e republicanas. As desigualdades aumentaram no segundo período (maioritariamente republicano) e parecem ter aumentado mais nas administrações republicanas (ver este contributo de Paul Krugman).

Curiosamente, o primeiro período de «prosperidade partilhada» (o bolo crescia mais e as fatias eram mais bem repartidas, o que não é mera coincidência) corresponde à época do chamado consenso keynesiano, do capitalismo com trela encurtada por regras fortes e sindicatos pujantes e do famigerado sistema de Bretton-Woods, com câmbios bem geridos e mercados financeiros razoavelmente enquadrados.

O segundo período corresponde à chamada «era de Friedman», em homenagem ao patrono das ideias neoliberais hegemónicas na condução das políticas públicas nos EUA. Estagnação dos salários dos mais pobres, maiores desigualdades (sobretudo salariais, mas não só) e menos crescimento. É o resultado, entre outros factores, da alteração das regras que enquadravam os diversos mercados, dos processos de penetração das forças de mercado em áreas que lhes estavam vedadas, do grande enfraquecimento dos sindicatos, do processo de financeirização crescente do capitalismo norte-americano, das políticas fiscais regressivas ou da estagnação do salário mínimo (esta explicação institucionalista, que recusa inevitabilidades, tem vindo, felizmente, a ser defendida por um número crescente de economistas convencionais - por exemplo, Paul Krugman e Peter Temin). O neoliberalismo é, de facto, um feixe de ideologias socioeconomicamente desastrosas e moralmente repugnantes.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Aprender com os neoliberais?

«Existe uma enorme inércia - a tirania do status quo (. . .) Só uma crise - real ou imaginada - produz a verdadeira mudança. Quando a crise ocorre, as decisões que são tomadas dependem das ideias que estão disponíveis. Estou convencido que esta é a nossa principal função: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável». Milton Friedman (1912-2006), Capitalismo e Liberdade (no prefácio à edição de 1982). Ter paciência e tentar manter viva a distinção, difícil de identificar com rigor, mas crucial, entre derrota política e derrota das ideias. Não é que as ideias não se revejam, mas há que fazê-lo porque concluímos que estávamos errados e não porque perdemos politicamente. Aliás, o facto dos neoliberais nunca tenderem a fazê-lo pode vir a revelar-se uma das suas grandes fragilidades. O consenso em torno de algumas das suas ideias mais importantes esboroa-se. Por boas razões. A crise, sempre a crise.