terça-feira, 9 de abril de 2024

Anti-Neves


João César das Neves participa no livro reacionário a que Passos Coelho deu caução política. Neves tem a virtude de nos mostrar como está tudo ligado no neoliberalismo inevitavelmente autoritário: da violência laboral à violência doméstica, da exploração à opressão, da mentira à ocultação. Tem também a virtude de nos mostrar as monstruosidades intelectuais e morais que uma certa interpretação da economia convencional produz. Lembro que César das Neves foi um dos dezassete economistas do cortejo fúnebre da economia portuguesa promovido pelo PSD.

Em primeiro lugar, o Salário Mínimo Nacional (SMN) é visto como uma interferência malsã, destruidora de emprego, no “mercado de trabalho”, como se as relações laborais fossem uma ordem espontânea, onde tudo corre bem para todos, no melhor dos mundos. Não são e não corre. Na realidade, um SMN em atualização constante gera procura adicional de que dependem outros rendimentos, estimulando a economia. 

Nos inquéritos do Instituto Nacional de Estatística, os empresários dizem sistematicamente que as “expetativas de vendas” são a principal determinante do investimento, e não os impostos ou os custos laborais. Não é aliás por acaso que o aumento do poder de compra do SMN esteve associado à criação de tanto emprego, para lá de ser um instrumento de combate à pobreza laboral e logo de defesa da família.

Em segundo lugar, a economia neoclássica, com o seu utilitarismo, incluindo o pressuposto das preferências individuais ditas exógenas, implicitamente autodeterminadas, tem servido bem para naturalizar e racionalizar todas as relações humanas, mesmo as que são objetivamente mais opressoras e/ou exploradoras: se elas não se queixavam, qual era o problema? Elas lutaram, claro, mas isso é toda uma história rasurada por estes reacionários. 

Seja como for, não é por acaso que Amartya Sen, o mais feminista dos prémios em “memória de Alfred Nobel” de Economia, criticou o utilitarismo e reabilitou a tradição crítica da economia política, defendendo que as “preferências” individuais tendem a ser “adaptativas”, partindo, entre outros, dos seus estudos sobre a situação das mulheres na Índia: 

“As pessoas carenciadas tendem a acomodar-se às suas privações por causa da mera necessidade de sobrevivência e podem, como resultado, não ter a coragem de exigir qualquer mudança radical e ajustar mesmo os seus desejos e expectativas ao que, sem ambições, veem como alcançável.” 

Sim, este Neves é um economista abominável. Não, não é caso único. É uma cultura; uma incultura neoclássica com implicações neoliberais, na realidade.

4 comentários:

Anónimo disse...

A minoria a oprimir a maioria?! Como seria possível?!

Isto seria uma comédia se não fosse uma tragédia.

Anónimo disse...

O abominável economista Neves? Apropriado!

José Trindade disse...

O "número" deste senhor, que me recordo de ver nestas lides pelo menos desde os anos de chumbo da Troika, professor de economia e católico, como um certo beirão de má memória, sempre assentou nos três elementos da Retórica da Reacção, dissecados há um bom par de décadas por Albert Hirschman: perversidade, futilidade, e perigo, com particular enfoque, como se vê, na perversidade. Tudo o que tentarem fazer pelos de baixo vai tornar a situação deles pior.

Anónimo disse...

"essas senhoras, alegadamente tiranizadas, nunca se queixavam nem manifestavam o seu desagrado."
E consta também que antes do 25 de Abril não havia manifestações nem protestos públicos, sinal inequívoco de que todo o povo estava extremamente satisfeito com o regime. Não?