Enquanto grande parte da população se sente deixada para trás, interesses e sectores que têm enriquecido a cada crise apostam agora na extrema-direita, a que o campo mediático escancarou as portas, para aproveitar as falhas de uma social-democracia crescentemente social-liberal e conseguir invadir o terreno social — sem abdicar do liberalismo económico. Mais de um milhão de eleitores dirigiu o voto para o Chega, muitos deles votando pela primeira vez (jovens ou anteriores abstencionistas). A génese deste neoliberalismo oportunista e autoritário de rosto social tem as suas raízes num passado de décadas. O facto de o país estar agora no mapa da extrema-direita não significa, porém, que se possa olhar para os mais de 18% de actuais votantes do Chega como motivados por racismo ou xenofobia. A sociologia eleitoral deste acto será complexa, mas tudo indica que os votantes deste partido, não deixando de incluir outras proveniências, reúnem uma geografia do ressentimento, do protesto e da cólera contra um poder político que não resolve os problemas das suas vidas. A «máquina dos sonhos está avariada», também em Portugal (...) Trata-se agora de disputar o sentido da desilusão, para reabrir caminhos de democracia e igualdade.
Sandra Monteiro, O choque da extrema-direita nos 50 anos da revolução, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, abril de 2024.
A dimensão internacional do movimento da extrema-direita não é uma coincidência ou um mero processo de contágio político. A extrema-direita cresce à escala europeia porque o recuo do Estado social e dos direitos do trabalho é uma tendência europeia estável, com várias décadas, que foi destruindo laços de solidariedade, enfraquecendo o movimento dos trabalhadores e os seus partidos. O envolvimento da social-democracia nesse processo criou um grande centro político de sentido único, ainda que com velocidade e ferocidade variáveis. Em Portugal como na Europa. As eleições legislativas de 10 de Março decorreram após oito anos de governos do Partido Socialista (PS). O país chega a eleições com uma gravíssima crise de habitação, problemas nos serviços públicos, uma desvalorização dos rendimentos, lucros recorde de grandes empresas e um excedente orçamental que ultrapassou as próprias expectativas do governo. O ministro das Finanças do PS, Fernando Medina, continuou a congratular-se com o que continua a designar erradamente como «contas certas».
José Gusmão, Extrema-direita: o que tem o Algarve que é diferente dos outros?, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, abril de 2024.
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