quarta-feira, 16 de junho de 2021

O fetichismo da disciplina orçamental

Numa curta carta publicada no Financial Times, 142 economistas vêm responder ao artigo de opinião de Schäuble (que referi aqui há uns dias), apelando a uma nova abordagem da Europa relativamente à sua política orçamental. Mais importante que o conteúdo da carta é a lista de signatários e o reconhecimento da importância de prontamente combater a narrativa austeritária que já se prepara por aí. É importante que fique bem claro que a austeridade nunca foi nem será uma inevitabilidade económica, mas sempre uma opção política.

Recomendo também este "fio" do principal autor da referida carta, com links bastante interessantes que reforçam a argumentação.

Segue então a referida carta, traduzida com as minhas limitações...

“Contrariamente ao argumento apresentado por Wolfgang Schäuble, acreditamos que o tecido social da Europa não suportará um regresso às "políticas orçamentais do costume" - as políticas de austeridade falhadas do passado, que transformaram o choque financeiro de 2008 numa prolongada recessão. Precisamos de uma nova abordagem para a política orçamental, começando por reconhecer que défices públicos insuficientes podem causar danos sociais, económicos e ambientais irreversíveis.

Quando o setor privado está a passar por dificuldades, “disciplina orçamental” pode resultar numa queda permanente na procura agregada e na produção, o que reprime desnecessariamente o emprego e o rendimento das famílias, enquanto deixa as gerações futuras em pior situação.

A experiência mais recente de consolidação orçamental europeia falhou nos seus próprios termos, resultando em rácios mais elevados de dívida relativamente ao produto interno bruto, devido às cicatrizes económicas permanentes e associadas reduções das receitas fiscais.

A disciplina orçamental, e não a expansão, amplia o abismo entre ricos e pobres (especialmente numa recessão). Impostos regressivos e cortes profundos de despesa na Europa desmantelaram medidas que apoiam o crescimento equitativo, resultando em níveis mais elevados de pobreza e desigualdade. Cortes no investimento público também prejudicam a “transição justa” e a luta contra o colapso ambiental e podem resultar numa ampla gama de perdas financeiras relacionadas com o meio ambiente.

Uma década de estímulos monetários não convencionais e de metas de inflação não atingidas, claramente não conseguiram aumentar as expectativas de inflação, indicando que as próprias preocupações do autor sobre a inflação são equivocadas. Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do FMI, que não está preocupado com possíveis efeitos inflacionários, veio corrigir Schäuble. Philip Lane, economista-chefe do BCE, sugeriu que não há alarme em torno da inflação transitória decorrente de constrangimentos temporários do lado da oferta (em vez dum sobreaquecimento do lado da procura).

Além disso, despesas insuficientes do governo podem aumentar a falência de empresas e levar a menos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, prejudicando o lado da oferta das nossas economias - potencialmente exacerbando as pressões inflacionárias.

A UE passou por uma década de estagnação da procura, com um desempenho bem abaixo do seu potencial produtivo. As forças inflacionárias da década de 1970 não estão já intactas, sobretudo devido ao declínio do poder negocial dos trabalhadores, mudanças demográficas, elevada desigualdade e dívida privada pendente. Sem uma expansão orçamental concertada para aumentar o investimento e proteger os vulneráveis, a procura agregada permanecerá reduzida e os padrões de vida estagnarão.

Em vez de fetichizar a disciplina orçamental, devemos dar prioridade a resultados sociais, económicos e ambientais mais importantes - como criar empregos verdes bem pagos, retirar milhões de pessoas da pobreza e implementar projetos de infraestrutura verde.

Se há uma lição de John Maynard Keynes para Schäuble, esta é ‘cuide-se do emprego e o orçamento cuidará de si mesmo’.”

4 comentários:

Jaime Santos disse...

Infelizmente, de tudo isto, uma coisa sobra. As políticas contra-cíclicas defendidas pelos anti-austeritários resumem-se ao desapertar do cinto em épocas de recessão. Quantos são os países capazes de superavits orçamentais em tempo de bonança? Talvez a Alemanha e Portugal, graças às cativações de Centeno.

Nada contra o ativismo orçamental contra-cíclico, exceto que deve igualmente implicar o apertar do cinto num momento qualquer. De outro modo, ficamos condenados a fazer como a Rainha Vermelha de Caroll (com a devida vénia à Deputada Mortágua) que tinha que correr muito (leia-se crescer) para ficar no mesmo lugar (com o mesmo ratio de dívida em relação ao PIB).

Ora, esta espécie de Economia de Guerra Permanente irá necessariamente dar mau resultado quando a maré baixar... E do ponto de vista ecológico, é um desastre (o crescimento verde é uma treta)...

TINA's Nemesis disse...

Wolfgang Schäuble, o carrasco de milhões de europeus, especialmente do sul da Europa não tem qualquer credibilidade.
Só o facto de se saber que a austeridade foi uma opção e não um erro é o suficiente para provar as mentalidades patológicas de Schäuble, Passos Coelho e restante canalha troikista.
A canalha troikista nunca teve boas intenções, NUNCA!
A União Europeia e o Euro não mais são que ferramentas de controlo e opressão para as euro “elites”, sempre foram assim desde que as implementaram.

A Europa é hoje um continente em decadência, a começar pela Europa do sul cuja a decadência é inegável apesar dos tremendos esforços propagandísticos em fazer crer o contrário.
O que o euro-liberalismo está a fazer à Europa não é estagnação é impor a decadência, e essa decadência se vê claramente nas vidas daqueles que não tiveram qualquer responsabilidade nesta integração europeísta feita pelas “elites” e para as “elites”. Os baixos rendimentos, a precariedade, a exclusão ao acesso de bens essenciais como habitação são evidências desta decadência.

A União Europeia e Euro são um custo muito elevado para a generalidade mas é especialmente elevado para os mais novos que estão a apanhar com as pancadas conspiradas na falsa capital da Europa Bruxelas pelos anti-democráticos comissários e por políticos que até se dizem de “esquerda” e anti-austeridade mas no fim concordam sempre com os comissários bruxelenses.

Não é fácil ver o país, o continente dominado por uma ideologia tão regressiva e destrutiva de vidas, do ambiente e das ambições de progresso da população...

Carlos disse...

Pois, mas por muita razão que eles tenham (e têm!) a máquina austeritária já está em marcha: a comissão já veio dizer isso, lá para 2023, o BCE é o que se sabe, a Alemanha está a forçar novamente essa sua opção. Ou seja, daqui a 2 anos há que contar com uma austeridadezinha para agradar aos poderosos. Que as políticas não dependem do lado da razão, mas sim do lado onde estão os interesses do capitalismo dominante: já foi assim com o euro, foi assim com a crise de 2008, e vai voltar a ser assim na crise que se avizinha...

Paulo Marques disse...

Nem os comunas do FMI concordam...
https://voxeu.org/article/fiscal-austerity-intensifies-increase-inequality-after-pandemics?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter