quinta-feira, 12 de junho de 2014

O estado a que chegámos


No dia 10 de Junho, o Presidente da República teve um desmaio que obrigou à interrupção do seu discurso por longos minutos. A imagem do comandante supremo das Forças Armadas desfalecido, a ser retirado em braços, teve para mim um evidente simbolismo. Não pude deixar de a associar à célebre expressão usada por Salgueiro Maia na madrugada do 25 de Abril: "o estado a que chegámos".

De facto, no Dia de Camões, o dia da Pátria, o Presidente apelou a um entendimento entre PSD, CDS e PS sobre reformas políticas de fundo que garantam a sustentabilidade da dívida pública, afirmando até que esse entendimento deve ir além das "vicissitudes partidárias ou de calendários eleitorais". Ou seja, o Presidente apelou a um acordo político "de tempo longo" por forma a eliminar diferenças substantivas nas propostas dos maiores partidos da democracia portuguesa. Estes foram instados a aceitar uma política única, seja na votação do Orçamento para 2015, seja nas próximas eleições legislativas. Quarenta anos após o 25 de Abril, é este o estado a que chegou a nossa democracia.

No fundo, o Presidente está a dizer aos portugueses que, para cumprir o Tratado Orçamental, Portugal tem de esvaziar de conteúdo a sua democracia. Como agora está bem à vista, não é possível (1) viver num Estado-nação, (2) prescindir da soberania monetária e orçamental e, ao mesmo tempo, (3) manter um Estado social, de direito e democrático (ver o meu texto "O trilema", 31 Outubro 2013). O Presidente da República assume que devemos ignorar o Artigo 7º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, que condiciona o exercício dos poderes das instituições da UE ao "respeito pelos princípios fundamentais do estado democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial". De facto, a sujeição permanente do país a uma política depressiva não é compatível com estas condições que a Constituição fixou para a nossa participação na União. Não sendo jurista, arriscaria mesmo dizer que o Tratado Orçamental que a Assembleia da República ratificou é, em última instância, inconstitucional.

Os resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu foram expressivos, pelo menos num ponto: qualquer avanço no sentido do reforço dos poderes da Comissão Europeia está vedado. É esse o significado da dificuldade em colocar Jean-Claude Juncker, um federalista, à frente da Comissão. Mais ainda, com o sucesso eleitoral da Frente Nacional em França e do UKIP no Reino Unido, a que se junta a significativa votação no Alternativa para a Alemanha, os partidos "do arco da governação" destes países ficam sob pressão para recusar qualquer reforço da integração europeia. Pelo menos, no centro da UE há cada vez mais quem pense que "Juncker faz parte de uma facção do continente que sonha transformar a união monetária europeia numa união da dívida" (Spiegel, "Europe's Juncker Bond").

Neste contexto político, não estão à vista condições que permitam ao BCE intervir nos mercados financeiros comprando tudo o que for necessário para trazer a inflação de volta aos 2% (em todo o caso, pouco provável sem o apoio da política orçamental) e, quando a volatilidade regressar, para manter as taxas de juro da periferia nos actuais níveis. Como disse um operador financeiro, "O receio é que [o BCE] não pode, e que não realizará, o impulso tremendo que é necessário para dar plena saúde à zona euro. No entanto, [o que foi decidido] é mais do que suficiente para antagonizar a opinião pública alemã" (ver "The Telegraph", "Mario Draghi takes historic gamble").

Com a democracia esvaziada, desemprego em massa, emigração em larga escala, serviços públicos a degradarem-se, uma dívida impagável, totalmente dependentes dos mercados financeiros, é este o estado a que chegámos. Se sair do euro não é a alternativa, então qual é a alternativa?

(O meu artigo no jornal i)

6 comentários:

Ricardo disse...

Sem dúvida que é a alternativa(no quadro actual)mais séria se quisermos um Estado soberano e ao mesmo tempo com progresso e justiça social,nesta UE não teremos nenhuma das duas.(Entretanto quem está no comando dos partidos dos centrão continuam a teimar no euro como se fosse algo sagrado,um deles até acredita que o BCE nos vai descer pelas chaminés em noite de natal).

Jose disse...

«...está a dizer aos portugueses que, para cumprir o Tratado Orçamental, Portugal tem de esvaziar de conteúdo a sua democracia.»
Mais uma vez a democracia como o lugar dos desejos, o querer que ignora o poder e o dever!
É assim por todo o lado, comete-se à política a felicidade geral, quanto mais não seja falando nela a todo o tempo...

R.B. NorTør disse...

Tendo lido o artigo do Spiegel, vi-me na posição ingrata de me encontrar a defender o Juncker. E isso magoa! O artigo ataca o Juncker por todas as razões erradas, e mais algumas, apenas revelando alguma lucidez quando entra pelos últimos três parágrafos.

Quando lhe apontam o dedo por criticar a postura alemã, esquecem convenientemente que o que estava em questão era o segundo (ou terceiro) pacote grego, não referindo a forma entusiasmada como alinhou pelo diapasão alemão no primeiro resgate grego, no resgates irlandês, português, espanhol, no apoio incondicional ou a tudo o que fosse medida de corte nas instituições e funções do(s) Estado(s).

Em relação à "democracia", o facto de as famílias políticas apresentarem o candidato que apoiarão à presidência é apenas um espelho do que se passa na quase totalidade dos países da União, inclusivé na Alemanha. Tal como o nome Juncker não figurava nos boletins de voto das europeias, também o nome de Merkel não figurava nos boletins do escrutínio para o Bundestag. Ou o de Passos Coelho para a Assembleia da República. Ou (a lista podia continuar). O facto de as famílias europeias dizerem antecipadamente quem apoiam é mais um sinal de abertura. (Podemos discutir consequências práticas, mas o facto é que é maior abertura democrática.)

Pessoalmente, acho que Juncker não é nem será um bom presidente da Comissão. É mais um joguete do Conselho, como revelou enquanto presidente do Eurogrupo, e não tem uma visão para a Europa que se afaste da Zona de Dívida Comum já mencionada. Lamento que, como nos parlamentos nacionais, todos se ponham atrás dele, sem negociar uma agenda clara, sem apresentarem uma visão. Agora, artigos como esse do Spiegel e as posturas dos estados membros que recusam olhar para as europeias, põem muita gente que discorda de Juncker, que o quer ver longe de tudo o que tenha uma bandeira europeia, a ter de o defender...

Anónimo disse...

Como é óbvio, face á constituição não só o tratado orçamental mas também o(s) proprio(s) memorando(s) (da pobreza) são inconstitucionais.
Daí que não se perceba que o P.S continue alegremente a fazer finca pé no tratado orçamental que bem sabe, irá levar o nosso país para um período de escravidão e de trevas.

meirelesportuense disse...

O 10 de Junho antes de 1974 era realmente um acontecimento de carácter Militar -eu cheguei a participar obrigado nessas comemorações, que serviam para medalhar especialmente os soldados que caíam em Serviço nas ex-Colónias Portuguesas- mas a partir daí já não o devia ser nem ter esse sentido, aliás passou a ser denominado de forma diferente: -10 de Junho Dia de Camões e das Comunidades!...
Só que os saudosistas fazem desta data uma celebração quase exclusiva dos veteranos ex-combatentes -aparecem todos aperaltados com bóinas de várias cores e medalhas ao peito- e de conservadorismo saloio!...
Fazer paradas Militares não tem sentido especialmente nestes momentos de dificuldades financeiras...Não há dinheiro para salários e há para andar a fazer Revista às Tropas de Jipinho?...Não há dinheiro para pensões e há para utilizar no desperdício de combustível numa série de Supersónicos só para dar nas vistas e fazer barulho?...Eduardo Lourenço foi condecorado por ter sido um heróico Militar ou apenas por ser escritor de qualidade tal como Camões?...
Quem foi Militar um dia sabe que ser-se herói é um sacrifício que nenhum político merece, muito menos quando se é herói por Obrigação e não por Consciência.
Só os nossos Pais, Familiares e Amigos e o direito à Liberdade, o devem reclamar!

andrade da silva disse...

Tudo em Portugal está bloqueado a politica, a moral ,a lei, e, assim, vai continuar,porque a Europa e o mundo também estão.

Os factos mais salientes deste 10 de Junho não é o desfalecimento do Presidente da República,mas são sim, por um lado a forte advertência do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas para que se respeite Portugal e as Forças armadas,o que não deve ser exclusivamente, ou, principalmente, para o Sr.Nogueira ( censuro o seu comportamento, muito desabrido, e com um 0 de coragem,ponto),mas deve ser sobretudo para os corruptos,os andeiros,os que vendem a pátria a pataco, (estarei enganado?)e por outro a falta de um cidadão anónimo:um soldado,um mineiro, uma mulher que luta pelos filhos, um soldado,um bombeiro, nesta República este povo não existe, logo seria bom, como diz o Papa Francisco irmos às raízes do 25 de Abril para se entender este presente: sem se entender, ter decifrado o passado não se constrói o futuro. andrade da silva