segunda-feira, 30 de junho de 2014

Dez erros na melhor das hipóteses


Assente num mau diagnóstico sobre as causas da crise, demasiado condicionado por preconceitos ideológicos e limitado pelos poucos instrumentos de política disponíveis na zona euro, o programa acabou por exigir uma factura desproporcionada a Portugal.

Rui Peres Jorge, Os 10 Erros da Troika em Portugal, 2014, p. 15.

Este livro é a continuação do trabalho jornalístico de Rui Peres Jorge no Negócios por outros meios, combinando informação e análise económicas em porções bem doseadas e revelando um conhecimento profundo dos debates académicos e políticos sobre a austeridade na Zona Euro, condição necessária para os destilar e avaliar com a clareza com que o faz. Registei as muitas concordâncias – são tantos os “erros” da troika – e também as poucas discordâncias, chamemos-lhes assim por simetria – por exemplo, uma tendência natural para valorizar elementos intelectuais e políticos mais contingentes, em detrimento dos mais estruturais, associados à natureza da Zona Euro e a um país sem soberania e sem forças capazes de a reconquistar, e para considerar aqui e ali, implicitamente, como único contrafactual uma austeridade menos excessiva na periferia no quadro de um ajustamento mais simétrico da zona. Guardo-as talvez para uma recensão.

Por agora, gostaria apenas de assinalar que Rui Peres Jorge assume a melhor das hipóteses sobre a troika: cometeu erros. Isto compreende-se e até facilita a análise a um certo nível, mas sabemos que há mais do que erros: há interesses de classe bem racionais, em termos dos meios mobilizados para os fins dados, internos e externos, ou seja, resultados bem intencionais. Pelo menos três dos dez erros identificados – protecção “excessiva” dos bancos, a lógica anti-laboral das alterações das regras do jogo laboral e a criação de um país mais desigual – são todo um modelo favorável aos grupos dominantes. Este livro também é um modelo, mas de trabalho de análise competente ao “maior programa de engenharia económica e social a que Portugal foi sujeito em décadas”.

6 comentários:

Diogo disse...

Santa ingenuidade! Continuam a acreditar na bondade dos indivíduos que têm o controlo e o monopólio de criar dinheiro a partir do nada. E que depois trocam esse nada pela riqueza criada pelas pessoas.

R.B. NorTør disse...

Concordo na íntegra com o parágrafo final. Como já tive ocasião de expressar noutros comentários aqui nos Ladrões, considerar que a troika errou (e por conseguinte o ajustamento foi um falhanço) anda a roçar o branqueamento de tudo o que foi feito.

O título desse livro apenas peca por não ter o subtítulo "da perspectiva do cidadão comum".

Jaime Santos disse...

Desde logo, o uso do termo 'reformas' para qualificar o trabalho deste Governo e da Troika releva da Novilíngua neoliberal. Reformas fazem-se no sentido de preservar o essencial de um sistema. Ora, como diz na sua peça, o objectivo é claramente outro, o de destruir aspectos essenciais do nosso Estado Social (protecção laboral, o SNS, alienação da propriedade pelo Esatdo de empresas essenciais e rentáveis, etc). Portanto, não tenho dúvidas que se há por um lado muita incompetência e zelo ideológico sobre a bondade de certas soluções (com o FMI a aceitar agora que deveríamos ter logo reestruturado a dívida, p.e.), por outro lado o essencial é mesmo método, como os países em vias de desenvolvimento em que o FMI interveio têm aprendido desde há anos...

Jose disse...

Havia um grupo dominante antes da troika que dizem estar à beira da se afundar.
Provavelmente foi o peso da transferência vinda do trabalho...

R.B. NorTør disse...

Caro Jaime,

Discordo que não se chame "reformas" ao que foi feito. O que foi feito é de facto uma "reforma" e negá-lo acaba por ser alinhar no discurso da direita que está a sair do armário (ver a peça mais abaixo neste blog).

Como poderá constatar em http://priberam.pt/dlpo/reforma há vários entendimentos e um deles reza que uma reforma é uma nova organização ou modificação de uma organização existente. Com o fecho de escolas, de postos médicos, de tribunais, despedimentos, venda de fontes de receita (sem qualquer critério benéfico para o vendedor), etc, aquilo a que assistimos foi factualmente uma reforma do Estado.

Podemos argumentar se foi a reforma que o cidadão comum pensa quando pensa em reforma. A tal reforma que melhora, como om Jaime refere. Aí entramos com preferências políticas. Para alguns esta não era a reforma, para outros a direcção é a correcta mas o alcance limitado.

O que não se pode negar, e é tão fundamental recusar essa narrativa como a de que o "ajustamento" falhou, é que se tratou factual e efectivamente de uma reforma do Estado. Uma de que só com muita dificuldade e sofrimento se poderá retroceder.

Jaime Santos disse...

Caro R. B. NorTor, Não vou insistir se o uso da palavra 'reforma' é adequado neste contexto, mas parece-se que a sua utilização pela Direita que nos governa se destina a 'dourar a pílula' relativamente ao que está a ser feito (a palavra tem apesar de tudo uma conotação positiva), saindo por isso direitinha do mesmo manual de instruções que nos deu os termos 'empregabilidade', 'colaboradores', 'flexi-segurança' e sabe Deus que mais. Eu não descreveria este 'programa de ajustamento' (mais uma palavra saída da novilíngua, ajuste deriva de 'pôr justo ou certo', 'regular') sequer como revolucionário, ele é, isso sim, contra-revolucionário, ou seja destina-se a restaurar privilégios, ajudando no processo alguns dos responsáveis pela crise presente, mas isso não nos deve surpreender. Nessa medida, a definição do Conservadorismo dada pelo Corey Robin no seu livro 'The Reactionary Mind', de que os 'Ladrões' já falaram, assenta que nem uma luva a quem nos governa...