quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Irlanda


Publicado em stereo no sítio da Iniciativa para uma Auditoria cidadã.

A anunciada reestruturação da dívida irlandês tem sido objecto de enorme confusão nos media. É fácil perceber porquê. Aquilo é complicado. Mas há limites e esta semana Marcelo Rebelo de Sousa, no seu comentário semanal, afirmava, com a sua habitual confiança, que a Irlanda, num "sucesso espectacular", tinha emitido dívida a 40 anos no valor de 20 mil milhões de euros a 3%, como se Irlanda tivesse ido "aos mercados". Asneira. A coisa é complicada, mas vale a pena tentar perceber.

1-Devido à crise financeira, a Irlanda foi obrigada a nacionalizar dois grandes bancos que se encontravam insolventes e sem acesso a liquidez. O problema de liquidez foi resolvido através de empréstimos de emergência (ELA) do Banco Central Irlandês (BCI) - o famoso Emergency Liquidity Assistance. Com os depositantes a fugirem destes bancos, os empréstimos do BCI permitiram que os compromissos com os depositantes fossem assumidos.Entretanto, estes bancos foram fundidos num novo, o IBRC.

2-O recurso ao ELA está longe de ser um exclusivo irlandês. O mesmo se passou (passa?) em Portugal. No entanto, estes empréstimos necessitam de "colateral": activos que servem de garantia ao Banco Central nos seus empréstimos. A banca Irlandesa não tinha activos suficientes e a recapitalização pública era demasiado elevada para o Estado se conseguir financiar nos mercados.

3-A solução alternativa foi a emissão de notas promissórias de dívida do estado Irlandês ao novo banco reestruturado. O Estado comprometeu-se a um conjunto de pagamentos a este banco ao longo de vários anos. Este novo banco ficou assim com activos, que podia dar como garantia no seu financiamento junto do BCI, resolvendo assim o problema de liquidez.

4-Todavia, estes títulos de dívida tinham uma maturidade curta e juros elevadíssimos (indexados aos títulos de dívida pública irlandesa nos mercados). Depois de um período de carência de juros que terminava este ano, o esforço financeiro do estado irlandês nos próximos tempos seria brutal, obrigando a novas "ondas" de austeridade.

5-O que parlamento irlandês aprovou na passada semana, foi a liquidação do IBRC, com as notas promissórias a serem trocadas por títulos de dívida pública, com menos juros e maiores maturidades. Na prática, a dívida do estado Irlandês reduz-se com esta troca de dívida.

6-Dado o seu objectivo inicial (garantia nos empréstimos ao BCI), esta troca só foi possível com a aquiescência do BCE. O BCE permitiu na prática um redução da dívida irlandesa com custos para si mesmo (as garantias valem bem menos agora) e os cidadãos irlandeses não serão obrigados a fazer o esforço que estava anteriormente previsto. Uma reestruturação, no fundo.

4 comentários:

pedro romano disse...

Olá Nuno,

Julgo que o pagamento de juros pode ser ignorado neste caso, na medida em que o ELA é uma operação feita a título individual pelo BCI. Ou seja, é o BCI que assume os riscos - e colhe os louros - implícitos a este empréstimo. Se os juros forem posteriormente entregues ao Estado a título de remuneração accionista (ao invés de serem divididos pela pool de accionistas europeus, como aconteceria numa operação normal de política monetária), a operação acaba por ser neutra do ponto de vista orçamental.

Abraço

pedro romano disse...

Só mais uma adenda: pela mesma ordem de razão, será o BCI, e não o BCE,a assumir os riscos implícitos à degradação do seu balanço. O que na prática significará, parece-me, a obrigatoriedade de ser o Governo irlandês a recapitalizar o BCI - ou, alternativamente, a ser o BCE a aceitar a efectiva monetização do défice, caso aceite deixar o BCI com capitais negativos. :)

Nuno Teles disse...

Olá,

Não, o juro não pode ser ignorado. As obrigações são para ser vendidas a privados já a partir de 2014.

Abstraindo-me disto e partindo que esta reestruturação não se fazia, o juro continua a pesar por dois motivos. 1- O BCI paga taxa de juro pelo ELA no Eurosistema (provavelmente ao bundesbank); 2- qualquer pagamento feito hoje, ainda que devolvido amanhã, tem efeitos de curto prazo já que implicará mais austeridade se se quiser cumprir os limites orçamentais definidos pela troika. A austeridade de hoje tem efeitos no produto e na capacidade fiscal do estado amanha.

Isto no juro. Se formos à questão das maturidades então é ainda mais claro. O principal tem de ser pago no eurosistema dadas as características do ELA em causa.

O BCI ou qualquer outro banco central não pode usar o ELA a seu bel prazer. Tal corresponderia à inibição do BCE controlar a emissão monetária na zona euro.


abr

Nuno Teles disse...

obviamente tudo isto faz com que esta operação não seja neutra do ponto de vista orçamental

da tua fonte:

"While the amount of interest paid on the promissory notes has little long‐run impact, these interest
payments are set to have an unfortunate impact on the Irish budgetary process over the next few
years. This impact relates to Eurostat’s accounting treatment of the promissory notes.
Eurostat’s accruals‐based accounting for budget deficits counted the full €31 billion principal of the
promissory notes on Ireland’s general government budget deficit in 2010. The interest payments on
the promissory notes are then counted on the general government deficit (GGD) in the years that
they occur. However, Eurostat’s rules allow for debt instruments to have “interest holidays” in which
no interest is charged and the promissory notes were designed with such a holiday period over
2011‐2013.12
When this period is scheduled to end, the interest payments on the note will go from having no
impact on the GGD this year to a €500 million impact in 2013 and a €1.8 billion impact in 2014. Even
though the cash flow impact of the notes will not change during these years, the government will
need to find an additional €1.8 billion in spending cuts and tax increases over the next two years if it
is to stick to its official targets for this measure of the deficit."