quarta-feira, 11 de julho de 2012

Do estado da nação


«Está na moda fazer um retrato estranho dos portugueses. Mimados, "piegas", mandriões, aldrabões, penduras, dependentes do Estado e dos subsídios. Não me espanto. Este é o retrato perfeito de uma elite que se habituou a viver do ouro do Brasil, das colónias, do condicionalismo industrial, das maroscas com os dinheiros europeus, da troca de favores entre o poder político e económico, das empreitadas das PPP, dos gestores mais bem pagos da Europa servidos pelos trabalhadores que menos recebem, do trabalho barato e semiescravo e de uma completa ausência de sentido de comunidade. De um país desigual.
A desigualdade não tem apenas efeitos económicos e sociais. Tem efeitos cognitivos. Com raras exceções, determinadas por um percurso de vida diferente ou por uma forte consciência social e política, a nossa elite não faz a mais pálida ideia do país onde vive. E tem a sua experiência e a experiência de quem a rodeia como única referência. Porque a desigualdade afasta os mundos sociais em que as pessoas se movem. Por isso acha que "só não trabalha quem não quer", que "os portugueses vivem acima das suas possibilidades", que "se desvaloriza o rigor e a exigência", que "a inveja é o nosso maior pecado" - como se ela não fosse um reflexo pouco sofisticado de um país desigual e injusto, onde a ascensão social raramente tem alguma relação com o mérito.
O outro País de que falam é bem diferente deste retrato castigador e ignorante. É sofrido, trabalhador, onde o quase nada que se tem foi conseguido com um enorme esforço. A miséria está sempre à espreita e quando vem esconde-se dentro de portas. Porque a última coisa que os portugueses são é piegas. A nossa pobreza envergonhada, que acaba por servir os interesses de quem não a quer combater, é o melhor exemplo de como os portugueses são em quase tudo diferentes do retrato que a nossa anafada elite faz deles.»

Do texto de Daniel Oliveira, a ler na íntegra, publicado em dia de debate sobre o estado da nação. É à luz deste retrato, estrutural, que devem ser avaliadas as opções do governo ao longo do último ano. Afastámo-nos dele ou aprofundámo-lo? (fotografia de Orlando Ribeiro).

1 comentário:

Tiago Santos disse...

Na minha opinião, quem melhor explica esta questão é o Boaventura de Sousa Santos no seu ensaio contra a autoflagelação. É extraordinário pensar como ao longo dos séculos as opiniões da elite sobre o país se mantém com as mesmas críticas feitas da mesma forma. A resposta é que tais opiniões não o são verdadeiramente, mas são sim, sintomas de algo mais importante na história e na cultura portuguesa.