quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A nova caridade e o desmantelamento do estado social

O Público de ontem tem um editorial, da autoria de Paulo Ferreira, que revela uma das linhas de força do pensamento liberal com 'consciência social': substituir o estado social e a sua lógica de provisão baseada na solidariedade, ancorada em direitos, por um vago «empreendedorismo social» baseado nos «cidadãos empenhados» em «organizações voluntárias». Caridade com novas roupagens. Assim se alimenta a ideia de que o desmantelamento do estado social e a contracção dos mecanismos de redistribuição podem ser encarados com complacência porque milhares de iniciativas da «sociedade civil» florescerão para ‘cuidar’ dos ‘pobres merecedores’, substituindo as organizações ‘burocráticas’ do estado social por estruturas mais ‘flexíveis’ e ‘próximas das pessoas’. Nada, a não ser um projecto político de regressão social, autoriza estes idealismos. Como afirmou Michael Walzer, em As Esferas da Justiça: «a caridade privada produz a dependência pessoal e, portanto, também os vícios habituais da dependência: de um lado deferência, passividade e humildade; arrogância do outro». Só a provisão pública, bem organizada, pode encarar e respeitar os indivíduos como cidadãos com direitos. Rendimento garantido, educação pública, prestações sociais decentes, políticas de pleno emprego, serviços públicos acessíveis a todos, solidariedade assente em impostos progressivos e na provisão coordenada de bens e serviços essenciais. Só assim se constrói uma sociedade decente. A caridade da «sociedade civil» é pouco mais do que a administração ineficiente de paliativos que alimentam os piores vícios e distorções. Sobre isto vale a pena ler a excelente posta de Jerome do blogue European Tribune: «a privatização da solidariedade, em larga escala, é um sinal de falhanço, não de sucesso».

15 comentários:

Pedro Sá disse...

Concordo em absoluto. Juntando também que essas ideias de safety net têm claramente por base a sociedade norte-americana, e são totalmente inaplicáveis designadamente em todos os países do Sul da Europa.

Anónimo disse...

Como avaliar então uma iniciativa como o Banco Alimentar contra a Fome?

Filipe Castro disse...

Aqui nos EUA Bush tornou praticamente insustentável a existência de instituições de caridade que não sejam religiosas. Quem quiser uma sopa primeiro tem de levar com uma Bíblia em cima, mais o discurso do costume de ódio contra "quem não se ajuda a si próprio" (Deus só ajuda quem se ajuda a si próprio) e a culpabilização dos pobres pela pobreza.

Filipe Castro

João Rodrigues disse...

Ainda bem que concorda Pedro Sá. Há poucas coisas mais importantes do que a defesa do Estado Social.

Conheço mal as actividades do Banco antónio carlos. Até porque a imprensa tende a não escrutinar as actividades destas instituições. É tudo perfeito. Julgo, no entanto, que se trata de uma iniciativa meritória. Mas paliativa.

Claro filipe castro. Os pobres quando não são tratados como cidadãos têm que suportar todas as formas de imposição das "preferências" arbitrárias do "benemérito".

Vitor Correia disse...

Sem grandes conhecimentos, nem teóricos nem práticos, nem títulos sonantes que possa citar, sempre direi que um hábito de entreajuda entre os cidadãos não me parece relevar da caridade, mas sim da mera solidariedade, e não carece de todo de ser mediado por funcionários anónimos e pouco interessados. Simplesmente, esse hábito ainda não existe, a não ser em pequenas comunidades, que funcionam com referência a valores exógenos (a putativa "Lei de Deus", por exemplo), quando a consideração do outro como igual seria suficiente.
O nunca demasiado elogiado caso do Banco Alimentar (e não só...) enferma, a meu ver, de duas limitações principais: 1 - Nunca hão-de ser os Bancos Alimentares a resolver o problema da fome; 2- Mesmo sem ser essa a intenção, arriscam ficar prisioneiros da lógica da caridade, o que é de rejeitar.
Mas, como sementes de sociedades auto-organizadas e auto-geridas (na medida do possível), não deixam de ser casos interessantes...

João Ricardo Vasconcelos disse...

Sempre achei curiosa essa esperança de que os cidadáos (ou "sociedade civil", se preferirem) deverão substituir o Estado em algumas das suas funções sociais.
Sempre achei ainda mais curiosa a ideia que a suposta organização e espirito benemérito dos cidadãos não acontece mais porque o Estado ocupa excessicamente os referidos espaços de acção.

Pedro Sá disse...

Já agora uma pequena precisão. Quando disse que concordo em absoluto com o post, referia-me à questão da solidariedade pública em contraponto com a caridade privada.

Aliás, no contexto relevante aquilo em que discordamos no conteúdo do post são coisas menores face ao assunto essencial deste:
- as prestações sociais decentes serão aquelas que é possível atribuir e dentro de um quadro de consideração de quais é justo atribuir;
- como sabe não acredito em políticas de pleno emprego, porque salvo situações catastróficas não me parece que o Estado possa fazer seja o que for nesse sentido;
- provisão coordenada de bens e serviços essenciais é passadismo (e, já agora, tresanda a caridade, parecendo que não).

Mas, repito, são pormenores face ao essencial, que é a defesa da segurança social pública.

Anónimo disse...

Numa sociedade socialista jamais haverá(e houve!)destas porcarias da caridade que é de uma hipocrisia nojenta!A questão é:há uns bandidos alcandroados no Estado a trabalhar para os empreendedores,ou seja,exploradores daqueles que só têm para vender a sua força de trabalho e,isso já foi estudado e é comprovado no dia a dia.Tudo o resto é conversa para empatar.E voltaremos a vê-los a 'engordar' cheios de sucesso e mais pessoas a vegetar,o crime a aumentar(apesar das trapaceirices no BCP comandadas por esses gestores de excelência Jardim Gonçalves,o Teixeira Pinto,etc-jáagora vão ser constituidos arguidos?Qual justiça qual quê,é tudo tanga-olhem a Casa Pia,e os vigaristas todos do PS/PSD/CDS).F***-**

A.Teixeira disse...

Só pretendo deixar uma pergunta ao autor do poste e nem sequer é sobre ele, mas refere-se aos critérios que o autor usa para empregar as letras maiúsculas e as minúsculas.

É que ele há o Pedro Sá, aparentemente uma pessoa muito mais importante que o antónio carlos e o filipe castro, estes dois aparentemente secundários em relação a fenómenos como o Estado Social e instituições como o Banco…

É mesmo assim, ou é mais giro assim?

Anónimo disse...

Mas meus caros amigos: já alguma vez se interrogaram quanto ao milagre que se opera em cada ser quando, saído o mesmo das vilezas da sociedade civil, passa a abraçar o espírito e prática da Virtude apenas porque passou a ser funcionário público? Dir-se-ia que se trata um fenómeno de índole religiosa!
Haverá algo de semelhante na Função Pública, em qualquer espaço do aparelho estatal, Govero ou Tribunais, para deixar de fumar? Há um par de milhões de porugueses que agradeceriam uma resposta

João Rodrigues disse...

Concordo com o que diz Vitor Correia sobre a importância da solidariedade em comunidades auto-organizadas. A chamada economia solidária e cooperativa não deve ser confundida com a caridade que alimenta subordinações.

Tem toda a razão A. Teixeira. Às vezes uso os nomes tal como aparecem em letra minúsculas outras vezes uso os nomes em letra maiúscula. Sem critério. Vou passar a usar letras maiúsculas para todos os nomes próprios. Como deve ser. Em relação ao resto prometo deixar de abusar das maiúsculas. Obrigado pela chamada de atenção.

Anónimo disse...

Mas qual será a razão pela qual se chama à caridade do Estado solidariedade? Qual a profunda, diria mesmo telúrica razão, pela qual se apoda de caridade e não de solidariedade, as iniciativas levadas a cabo pela Fundação Bill e Melinda Gates? Ou pela Gulbenkian? Ou pela Champalimaud?

João Rodrigues disse...

A razão é clara Eduardo Freitas: o Estado democrático distribui bens e recursos e assegura oportunidades porque se considera que os indivíduos têm direitos e dignidade. São cidadãos. Isto tem uma dimensão expressiva que nenhuma caridade privada consegue reproduzir. Eu não quero que a sorte das pessoas dependa das preferências individuais de gente que tem dinheiro. Só porque tem dinheiro.

Anónimo disse...

Caro João Rodrigues,
Admiro sinceramente a singeleza da explicação que propõe. Resta apenas perceber de quem é a "mão que embala o berço" hesitando mesmo, invocando uma civilizada troca de galhardetes num dos posts acima, se não devo escrever "A Mão".

Mas aqui é preciso ter particular cuidado: é que um dos economistas e filósofos que usou a metáfora da Mão, talvez pela primeira vez, foi o Adam Smith!

Um bom Ano Novo de 2008

João Miguel Almeida disse...

Antes de mais, parabéns pelo blogue que descobri há pouco tempo.
Quanto à questão em debate, acho que o editorial do Paulo Ferreira abre caminho a uma solução para a pobreza perigosamente iluminada: o Estado social desmantelava-se e deixava o campo livre a um empreendedorismo social que não existe, mas devia existir a exemplo de alguns casos recomendáveis nos Estados Unidos.
O resultado podia ser desastroso: a falta de ajuda do Estado era certa; a ajuda privada incerta, dependente de variações de bons sentimentos.
Os serviços públicos de segurança social têm os seus vícios, degenerescências burocráticas e são alvo de fraudes. Mas o empreendedorismo social privado não é uma garantia de virtude. Veja-se o caso recente da «arca de Zoé». O «terrível» controle dos poderes públicos também serve para evitar que uma rede de adopção de crianças carenciadas seja um disfarce para uma rede de sequestro de crianças.
Mas não concordo com o estigma que coloca no empreendedorismo social privado de implicar um conceito retrógado de «caridade» e ser coisa de ricos. Muitas vezes são pessoas comuns que dão o seu contributo para organizações como o Banco alimentar contra a fome à saída dos supermercados. E muitas destas organizações privadas vivem da acção voluntária de adolescentes e jovens que ganham uma consciência social que não teriam de outro modo.
O Estado não pode proibir ou colocar obstáculos à iniciativa privada que procura responder a necessidades social nem suicidar-se das suas responsabilidades usando como pretexto essas iniciativas.
A pobreza é um atentado aos direitos humanos. Seria tão absurdo o Estado demitir-se de defender o direito de não ser pobre como marginalizar organizações não governamentais que defendem os direitos humanos. O Estado deve é zelar para que as ONG, em nome do combate à pobreza, não coloquem em causa outros direitos humanos - à liberdade de expressão e de associação, à liberdade religiosa, etc.