segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Haja esperança

O Público de ontem tem um texto magnífico da autoria de Manuel Gusmão. Não me ocorre melhor forma de fechar um ano sombrio: «E contudo tudo se transforma. Transforma-se o mundo em nós e fora de nós. E da mudança dos tempos e das vontades, nós participamos. Não como animais caminhando para o abate, nem como demiurgos incondicionados. Mas como agentes procurando o máximo de consciência possível, estendendo as mãos e tacteando os possíveis; fazendo de acordo com os tempos a vinda de um outro tempo. Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar. O carácter profundamente transformador do trabalho humano, o facto de uma criança de dois anos ser capaz de produzir uma frase que nunca ouviu, o facto de a poesia reinventar a língua em que se escreve, o facto de as artes serem construções antropológicas e de os humanos se configurarem e reconfigurarem, segundo uma auto-poiesis histórica, são fundamentos suficientes para que nos possamos, sem mais garantias, prometer um futuro, 'uma terra sem amos'. Porque nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa». Bom ano de 2008 para todos.

6 comentários:

Zé Neves disse...

"Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar".

Então João, isto não é "abstracto" e "vago" e "inconsequente"?

Estás-me a dizer que a tua esperança numa mudança depende do facto de uma criança de dois anos se reinventar e no facto da poesia reinventar a língua que escreve?

um abraço camarada

João Rodrigues disse...

Caro Zé Neves,

Não te esqueças do 'máximo da consciência possível' e do resto do artigo, sobretudo da crítica ao 'sujeito pós-moderno'. A minha esperança assenta nas possibilidades da acção humana orientada por princípios e valores. E são estes que vamos continuar a discutir. Como afirmou o E. P. Thompson: 'por detrás de um conflito de classes existe sempre um conflito de valores'. Além disso, temos que considerar as 'liberdades poéticas' e a verdade e beleza que podem encerrar. Mas estas não são para todos...

um abraço camarada,
João Rodrigues

Zé Neves disse...

as liberdades poéticas podem não ser para todos mas só alguns é que são crianças de dois anos?

quanto ao pós-moderno, um dia ainda vais ter que explicar o que é e depois quero ver...

confesso porém que me sinto identificado com o teu apelo - mesmo se vago e abstracto - de que a esperança "asenta nas possibilidades da acção humana orientada por princípios e valores".

abç

João Rodrigues disse...

Ainda bem que te sentes identificado. Assim, podemos discutir as questões em termos dos arranjos possíveis e desejáveis. As regras, as instituições, as motivações individuais ou a moral andam sempre a rondar por aqui...

Atenção eu não quero entrar nessa discussão, mas não resisto a colocar esta citação de Manuel Gusmão: «O sujeito pós-moderno teria finalmente reconhecido que as acções humanas seriam no limite inconsequentes ou, no mínimo, de fraca consequência, quando não perversamente contraproducentes, uma vez que a evolução das sociedades seria um processo de tal forma multivectorial e complexo que seria de facto incomensurável para a inteligência, a consciência e acção humanas. As tentativas de orientar os processos sociais, para além de alguns ajustes e correcções com objectivos à vista, seriam uma tentação voluntarista, própria de um sujeito moderno, que implicaria de raiz uma violência destruidora, desencadeada sobre "o curso natural (= fatal) das coisas" e traria no seu cerne a ameaça do totalitarismo».

abraço

Zé Neves disse...

pronto, sem prolongar muito mais a discussão, mas também me parece que aqui ninguém nos ouve...

há uma crítica à ideia de "grande narrativa" que não é a crítica que os liberais fazem à vontade política socialista "a partir de cima".

por exemplo o negri, parece-me, não abdica da ideia de "grande narrativa" (mas teríamos que ver isto melhor e, sinceramente, parece-me que o contributo crítico do Perry Anderson ao Negri, no artigo que referes, é um pouquito desonesto).

e também entre os que abdicam da "grande narrativa" há muitos que não lhe opõem a política dos pequenos passos ou do não há nada a fazer.

parece-me tb muito abusivo reduzir-se a pós-modernidade a um só sentido. a dicotomia do boaventura, com problemas, pode ser aqui útil: pós-modernidade de resistência (que seria a dele) e pós-modernidade celebratória.

abç

João Rodrigues disse...

Caro Zé Neves,

Aqui toda a gente te ouve e te lê atentamente. Não sei o que é que te leva a dizer isso. Temos mesmo de discutir o texto do Perry Anderson e os apontamentos, na minha opinião justos e até generosos, ao Negri. Não creio é que a blogoesfera seja o espaço ideal para o fazer. Não é por nada, mas tenho a sensação que este meio é pouco propício para discussões "de pormenor" entre pessoas que partilham o essencial para os tempos que correm. É que eu não quero escrever postas com muitos caracteres. Concordas?

Uma das vantagens (ou desvantagens) do conceito de pós-moderno é que ele se presta a múltiplas interpretações e sentidos (muito pós-moderno). A dicotomia do BSS entre as duas pós-modernidades é interessante, mas na minha opinião não é necessário sair das promessas da modernidade, desde que bem interpretadas. Mas pode ser que tudo se resuma a uma questão de definição. De qualquer forma, acho esta ruptura modernidade/pós-modernidade pouco profícua para aquilo que me interessa.

abraço