É um exercício ingrato adaptar um livro como aquele. Nota-se que a narrativa deu saltos, para que o filme fosse o mais fiel possível (ver os making of aqui e aqui, bem como uma entrevista do realizador).
Apesar de tudo, o filme passa a ideia essencial: a regularização da dívida grega nunca esteve nos objectivos de quem governa a União Europeia; todo a pressão chantagista posta na assinatura de um Memorando de Entendimento entre a troika e o governo grego de Tsipras - cuja aplicação apenas iria agravar ainda mais a dívida - visou obrigar a Grécia a ajoelhar e a submeter-se aos ditames europeus e forçar o povo grego a pagar os empréstimos da troika, concedidos para resgatar de imediato os créditos em risco de quem beneficiou com os desequilíbrios externos e orçamentais gregos, surgidos no passado com a coxa moeda europeia. Ou seja os bancos alemães e franceses. E enquanto isso acontecia, vendiam-se - a baixo preço - os activos gregos a interesses internacionais, como os da Alemanha.
No filme há contudo um episódio - de que não me recordo de ter lido no livro - em que Varoufakis mostra numa conferência de imprensa na Alemanha, repleta de jornalistas agressivos, imagens da ascensão da extrema-direita grega, não neo-nazi, mas já só nazi. Uma ascensão que, como dizia Varoufakis no filme, era fruto do desastre social criado pela austeridade.
E isso bate certo com o caso português. E com a progressiva penetração da extrema-direita em Portugal.
Depois da promoção pela PSP da autodenominada manifestação de coletes amarelos em Portugal - que redundou num rotundo fracasso; depois de um vice-presidente da maior associação sindical ter sido afastado por pressão de associados por ter alertado para o risco de racismo na PSP; depois de na manifestação de polícias e guardas republicanos em direcção ao Parlamento, manifestantes do movimento zero - cujos dirigentes são desconhecidos (!) terem feito o gesto da Supremacia Branca (que coincide com o do movimento zero); depois de, nessa manifestação, ter sido permitido discursar ao dirigente do Chega!, acto nunca antes visto; desta vez, a página oficial da PSP no facebook associa a PSP ao lançamento de mais uma saga da Guerra das Estrelas e faz-se identificar com o lado negro da Força, isto é, força brutal da ditadura, dizendo tratar-se do "lado certo da força".
Tudo isto não parece ser uma ligeira brincadeira. Sobretudo dado o historial que se tem vindo a verificar na PSP.
Ela tem de ser vista, como dizia Varoufakis no filme, como mais um fruto da aplicação continuada, durante uma década, das políticas que, no grosso, mantêm os principais dispositivos austeritários, com o objectivo de rebaixar, esvaziar e retirar força a quem trabalha e manter sobre pressão os seus rendimentos. Assim parece ser, quando o Governo escolhe não repor a legislação laboral anterior a 2012, quando essa inversão da lei em 2012 foi bem eficaz para fazer estagnar os rendimentos dos trabalhadores.
O poder político parece, pois, estar manietado. Tanto em manter esses dispositivos legais, como a assistir impávido à escalada política de uma extrema-direita, sem nada fazer para a esvaziar. Na verdade, não faz porque não quer enfrenter - como Tsipras - os ditames europeus quanto à legislação laboral. E não quer enfrentar porque até lhe convém que a extrema-direita cresça, enquanto se oferecem uns trocos aos trabalhadores mais pobres.
O PS pode parecer ter uma política de esquerda, mas está a montar um caldo político em que pensa surgir como a força-fiel da balança entre dois extremos. Mas tal como 1974, quando surgiu a famosa estratégia do "PS sozinho" vendida como eficaz por Mário Soares a Henry Kissinger, o PS engana-se: por detrás de si, estará a direita mais violenta que armou e mobilizou a rede bombista até 1977/78, bem depois do 25 de Novembro de 1975.
E desta vez, o ambiente já não será o dos anos 70. Será outro bem mais duro. E dele, o PS sairá bem mais afectado do que pode esperar.
7 comentários:
Sendo a Terceira Lei de Newton (ou princípio da ação e reação) adquirida há já alguns séculos, ignorá-la é exercício insistentemente praticado por quem sempre se declara inocente, porque sim.
Políticos de esquerda a assumir protagonismo em acções sindicais é prática do quotidiano, mas se fôr o Chega o escândalo é quase traumático uma vez que todo o assalariado é suposto pertencer ao património ideológico da esquerda!
O racismo, depois de largos anos de cultura multirracial, é desenterrado por uma esquerda idiota que sempre busca identificar rupturas de que possam arvorar-se como definidora de medidas correctivas com base num construtivismo decorrente de uma superioridade moral que vai adaptando às necessidades propagandísticas de cada momento, mobilizando o seu stock de vitimados, desde a Jamaica à Fonte da Moura.
E se há dívidas é evidente que não há que pagar, e se há consumo a mais é bom de ver que só mais consumo resolve, e se há crise ecológica é porque o mercado a provoca.
Não há pachorra!!
A pergunta que se impõe é qual o papel dos governos e dos mais altos dirigentes do país nestes últimos 10 anos? Porque é que tanta gente insiste em não dizer a verdade? Quem é que tira e tirou partido de todos estes abusos que na realidade representam autênticos golpes de estado? Porque razão não é reconhecida esta hostilidade? O que representa efectivamente não ter qualquer plano para proteger um estado democrático e a sua respectiva democracia? Em que medida é que tudo o que foi feito nos últimos anos não é uma clara e flagrante violação da nossa constituição?
Absolutamente espantosa a tentativa de colar o PS à Extrema-Direita, ou, no mínimo de o expor como um joguete dela. Seja pois consequente e defenda a apresentação pelo PCP ou pelo BE de um moção de censura na AR ao Governo de Costa.
E a tentativa de reescrever a História esquecendo a tentativa de tomada do poder pela Extrema-Esquerda, resistida em 1975 nas ruas pelos Portugueses, culminando numa tentativa de golpe que foi derrotada a 25 de Novembro de 1975, por pessoas como Costa Gomes, Ramalho Eanes, Vasco Lourenço, Vítor Alves e Melo Antunes. Tudo do escol da Extrema-Direita, pois claro (estou a ironizar). Já sei que o PCP tem 'a sua própria versão da História', como disse Jerónimo de Sousa no velório de Soares. Mas isso é aliás costume...
A ascensão da Extrema-Direita tem muitas razões, incluindo as políticas de austeridade, mas destrua a Economia com políticas redistributivas baseadas em endividamento e vai ver quanto tempo demora até as classes médias começarem a votar no Chega! Já aconteceu antes, em 1924, quando a Alemanha desvalorizou a sua moeda para pagar dívidas de guerra, gerando hiper-inflação. Quem muito fala de Brunning esquece onde a base social de Hitler se formou.
Se deixássemos de lado a linguagem da 'solidariedade europeia' e olhássemos para a UE como uma associação de estados em que cada um trata dos seus interesses particulares, talvez ganhássemos alguma coisa em clareza e falta de hipocrisia.
As renegociações de dívida fazem-se sempre nas condições dos credores e quando estes percebem que têm menos a perder em fazê-las do que continuar com a ilusão de que um País pode pagar as suas dívidas. Foi isto que aconteceu na Grécia e seria isto que aconteceria em Portugal se o BE ou o PCP levassem a sua avante.
Varoufakis e Tsipras tinham um escolha simples a fazer, ou aceitavam as condições draconianas da EU, ou apresentavam um plano consistente de saída do Euro, coisa que, como depois se percebeu, claramente não tinham. Em vez disso, apontaram uma arma às suas próprias cabeças e ameaçaram dispará-la. O resultado foi o que se viu.
Quem propõe algo de diferente deve começar por elencar as vantagens e os inconvenientes de o fazer. Como se limitam as dizer que será tudo rosinha do lado de lá do arco-íris, já se sabe a resposta que levam nas urnas. Como Corbyn, aliás. As pessoas preferiram Johnson...
Caro Jaime,
Mais uma vez, perde-se em vários tabuleiros. Mas vamos a cada um.
1) 1975: muito haveria a dizer sobre isso. Mas
a) desde cedo, o PS abriu o "chapéu de chuva" para albergar em si todo o descontentamento de direita, mesmo da extrema-direita.Se nessa altura não era incómodo para o PS, a razão dessa facilidade ideológica é bom tema de discussão;
b) creio que, desde Julho de 1974 que golpes foram quase um monopólio da direita. Se o processo revolucionário se acelerou em Março 1975 não foi devido a um golpe de esquerda. E mesmo em Novembro de 1975, creio que o ambiente era mais o de quem "mexesse", perdia. Ou seja, havia receios de parte a parte sobre a eventualidade de um golpe. E nesses cenários, um deslize paga-se caro. Mas não se branqueie a direita e o PS que já tinham preparado a divisão do país ao meio, com o apoio dos serviços secretos britânicos e norte-americanos, chefiados pelo seu embaixador em Lisboa, que fez numerosas deslocações pelo norte do país. Aliás, quando o questionavam sobre isso, Carlucci respondia que era embaixador em Portugal e não em Lisboa...
2) As políticas redistributivas alimentam a extrema-direita: que se saiba é precisamente o contrário do que acontece. Vidé exemplo da social-democracia. Quanto mais criar uma sociedade saudável e justa, menos haverá tendência para uma percepção extremada do que deveriam ser os destinos de um país. O endividamente tem outras causas que não a política redistributiva. Tem mais a ver com a política monetário-cambial do país, em que as baixas taxas de juro com fracos rendimentos impulsionam um sector bancário arisco a arriscar em investimento;
3) A UE como uma associação de países: pois, isso é o que a UE não é. Se o fosse, haveria espaço para políticas soberanas e não estaríanos hoje nesta situação estúpida de tudo ter de importar e aumentar a nossa dívida externa de cada vez que investimos, mercê de uma rigidez da política monetário-cambial que determina que uma moeda forte é optima porque controla a inflação, inflação esta "vendida" a todos como um imposto sobre os pobres. Na verdade, a inflação é, também e talvez sobretudo, um imposto dos grandes credores que, dia após dia, vêem os seus montantes emprestados esfumarem-se.
4) A Grécia aconteceria se o BE e o PCP levassem a sua adiante: claro que acontecia! Portugal seria objecto de uma imensa pressão para aceitar a política estúpida da austeridade que, mais uma vez, representaria um instrumento compulsório para aumentar ainda mais a dívida nacional (e a sua dependência) sem que os montantes emprestados pelos credores fossem atingidos. Tudo sintetizado na máxima - repetida por Passos Coelho - "as dívidas são para se pagar".
5) A Grécia não tinha um plano para a saída do euro. É falso. Leia o livro de Varoufakis e esse plano existia. Estaria preparado à minúcia? Não sei. Mas essa ideia percorreu o pensamento de quem estava à frente da Grécia. E o problema foi que - apesar do resultado do referendo maioritariamente contra os ditames europeus - certa classe política acobardou-se. Teve medo da asfixia criminosa do BCE e da corrida aos bancos. Tal como se acobardou em parte em Inglaterra quanto ao Brexit. Mas vai ver que a Inglaterra estará muito melhor fora da UE do que dentro...
6) Quem propõe algo de diferente deve... - Tem inteira razão. A esquerda deveria discutir, com a máxima amplitude, as consequências de uma política alternativa. Mas também o status quo deveria discutir os custos da permanência nesta estúpida armadura europeia. E não comparar as vantagens do Erasmus com a estagnação económica e a injustiça social!
E ainda... Há a considerar que o filme de Costa Gravas talvez seja ainda uma visão parcial e centrada na perspectiva de Varoufakis, escamoteando as duvidosas cumplicidades deste último (Varoufakis) que desempenhou o seu papel como ministro das finanças grego com um grau de ambiguidade que se torna mais evidente à medida que os factos vão sendo conhecidos.
A este respeito ver a carta aberta de Zoé Konstantopoulou, presidente do parlamento grego à altura, aqui em tradução francesa:
https://www.les-crises.fr/lettre-ouverte-de-l-ex-presidente-du-parlement-grec-au-cineaste-costa-gavras/
Para a esquerda socialista (socialismo há só um) clamar pela chegada da extrema-direita é uma inevitabilidade.
Sendo a democracia liberal o seu principal inimigo ideológico, apelam a um inimigo comum para manter a sua acreditação como mal menor.
Incapazes de revolução, apostam no gigantismo do Estado que pela sua natureza e pela acção dos seus agentes que o povoem sempre promoverá o totalitarismo.
Se não der em socialismo dá pelo menos em emprego público, com seu ambiente aproximado ao da nomenclatura do 'governo do povo'.
Jaime,
Ok, vamos tratar dos interesses particulares do país e desvalorizar a moeda para exportar. Não dá? Pois. Construir habitação? Ah, pois. Reparar, pelo menos, a ferrovia? Também não, ok. Rasgar contractos públicos que não são cumpridos? Hmmm, pois, também não. Impedir a exportação de jovens qualificados? Pois, também não dá.
Isso é que é soberania, carago.
E a República Alemã que fazia em 1924? Deixava de produzir bens, deixava de taxar a importação, e financiava alegremente a boa vida dos cosmopolitas importando tudo em moeda estrangeira - qualquer semelhança com Portugal em 2020 é pura ficção, claro.
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